Reforma sem estratégia
Carlos Henrique de Brito Cruz*
 

Nenhum país do mundo ocidental se desenvolveu até hoje sem ter um forte sistema de ensino superior público. Um dos países mais privatistas do mundo, os Estados Unidos têm 77% de suas matrículas em ensino superior em instituições públicas. Nos países europeus, o percentual de matrículas em instituições públicas é, em geral, superior a 90%.

No Brasil, desde os anos 70, a maior parte das matrículas no ensino superior está em instituições privadas. Em 2003, 70% dos quase 4 milhões de estudantes universitários estavam matriculados nessas instituições. Ao mesmo tempo, ano após ano, os sistemas nacionais de avaliação do ensino superior demonstram a qualidade superior das instituições públicas. Uma das classificações recentes, feita por pesquisadores da Universidade Jiao Tong, de Shanghai, listou as 500 universidades mais importantes do mundo, segundo critérios de desempenho acadêmico. Quatro universidades brasileiras constaram da lista, todas públicas: USP, Unicamp, UFRJ e Unesp.

O Estado brasileiro investe aproximadamente (os dados oficiais disponíveis são muito desatualizados) 4,3% do PIB em educação. Destes, 3,4% -ou seja, 79% do investimento público em educação- são destinados ao ensino básico (infantil, fundamental e médio) e o restante 0,9% -ou seja, 21% do investimento total- é investido em educação superior, excluindo-se despesas "não-educacionais", como previdência. Nos países da OECD, o investimento em educação é, na média, 5,3% do PIB, dos quais 1,3% é destinado à educação superior, ou seja, 25% do total investido.

A estratégia para o ensino superior brasileiro precisa incluir a expansão do número de matrículas com mais inclusão social em instituições públicas e o desenvolvimento acadêmico dessas instituições. Nenhum desses objetivos transparece no recém-anunciado projeto de lei da reforma universitária. O próprio nome, "reforma universitária", já demonstra a limitação do projeto, que, em vez de tratar de um "plano estratégico para o desenvolvimento do ensino superior brasileiro", se limita a reformar parcialmente uma parte das instituições de ensino superior, as universidades, especialmente as federais.

A simplificação é a tônica: o importante tema da inclusão social fica restrito ao dogma das quotas, sem que seja mencionado ao longo dos cem artigos da minuta os cursos noturnos, patente instrumento de inclusão social. Silencia completamente quanto ao acesso e à qualidade ao ensino médio público, requisito fundamental para o ingresso ao ensino superior. Em vez do compromisso da boa universidade pública com o avanço do conhecimento humano e com o diálogo com a cultura universal, reduz o papel dessas instituições ao atendimento de demandas regionais e de "grupos sociais", apequenando o conceito de universidade. é difícil pensar em objetivos menos republicanos (para usar um conceito em voga).

O carro está, francamente, na frente dos bois: enquanto se discute um projeto de lei de uma centena de artigos, uma outra parte da reforma já foi implantada por medida provisória -o Prouni- e fica-se sem saber quais são as metas e quais serão os meios para desenvolver o ensino superior brasileiro. Nem mesmo no diagnóstico há concordância, visto que não se conhecem os dados básicos mais recentes: no site do Inep, a última série sobre investimentos feitos pela Federação, pelos Estados e pelos municípios em educação fundamental, média e superior é de 1999 (veja-se ali o link "Gastos com Educação").

Havendo um diagnóstico objetivo e com alguma legitimidade, uma estratégia efetiva deveria explicitar metas para o ensino superior brasileiro. Se o projeto tomasse como objetivo, por exemplo, assegurar que, em 15 anos, 50% dos brasileiros entre 18 e 24 anos freqüentassem uma instituição qualificada de ensino superior, 50% dos quais em instituições públicas, haveria um rumo. Digamos que, nos mesmos 15 anos, se desejasse, por exemplo, ter 15 universidades incluídas na lista das 500 mais importantes do mundo em vez de quatro que ali constam. Seria desejável termos também 50% das vagas nas instituições públicas federais no período noturno em vez dos 25% que há hoje. Estabelecidas as metas, seria necessário especificar os meios para atingi-las: custos, necessidade de pessoal qualificado, professores, técnicos, fontes de financiamento. Depois de tudo isso, chegaria, aí sim, o momento de comparar alternativas, de acordo com o resultado e com o custo, e então criar os instrumentos legais para que o Estado brasileiro persiga e atinja as metas e gere os meios para tal: esse seria o momento de estabelecer as leis, determinando procedimentos e ações.

A educação é a base para o desenvolvimento, e uma estratégia para o desenvolvimento do ensino superior, especialmente o público, é fundamental para o Brasil. é preciso mostrar ao contribuinte brasileiro como e quando ele será beneficiado, recebendo mais e melhor educação superior, em vez de apenas apontar a alguns reitores, estudantes, sindicalistas e certos grupos sociais como suas demandas históricas serão atendidas. Aí está a principal limitação da reforma: dialogar só com alguns grupos e movimentos sociais em vez de fazê-lo com o Brasil.

* Carlos Henrique de Brito Cruz, 48, engenheiro eletrônico pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) e doutor em física pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é reitor da Unicamp. Foi presidente da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) de 1996 a 2002.

Fonte: Folha de S. Paulo, 22/02/2005


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