Reforma e desafios da universidade pública
José Tadeu Jorge*

 

Aos desafios que a universidade pública brasileira tem pela frente, no contexto de uma sociedade que ainda não descobriu de todo a importância da educação e da ciência para o seu desenvolvimento, soma-se este mais recente, pontual, mas não menos laborioso: o de uma reforma universitária que, ainda em estado de anteprojeto, clama por uma "reforma de si mesma", capaz de convertê-la em um plano estratégico para o ensino superior.

Reunido em duas ocasiões para discutir os cem artigos do anteprojeto, o Conselho Universitário da Unicamp, por iniciativa do reitor Carlos Henrique de Brito Cruz, produziu em março último um documento que foi enviado ao ministro da Educação, Tarso Genro, como contributo de uma universidade que há 16 anos atua no regime pleno da autonomia, tem avaliação de desempenho constituída, indicadores em permanente ascensão e que, portanto, está habituada a oferecer ao Estado a contrapartida da responsabilidade acadêmica, financeira e institucional.

Ao mérito de vir colocar ênfase na discussão do ensino superior no país, o que há muito não se fazia, o anteprojeto avança na questão do financiamento das universidades federais e de seu acesso ao regime de autonomia financeira, até aqui só praticado em plenitude pelas universidades estaduais paulistas. Ao lado desses pontos, entretanto, coexistem propostas no mínimo discutíveis que colaboram para a constatação de que, como diz o documento da Unicamp, "o anteprojeto não contém uma estratégia para o efetivo desenvolvimento do ensino superior no Brasil".

Se o anteprojeto exprime vagamente o propósito de aumentar a abrangência social do ensino superior, o que é justo e necessário, nada há ali sobre as ações que o Estado deveria tomar para melhorar o ensino médio e desenvolver qualitativamente o ensino fundamental. Escolhe-se começar a reforma do edifício da educação brasileira não pelo alicerce e pelas fundações, como seria recomendável, mas pelos andares superiores. Ou seja, fixa-se um sistema de reserva de vagas na graduação e espera-se que esse paliativo dê ao edifício uma aparência mais sólida e atraente, mesmo sobre uma base frágil.

Atribui-se à universidade uma missão utilitária de curto prazo com uma ênfase excessiva no seu papel extensionista, mas pouco ou nada se fala de seu compromisso maior com os valores acadêmicos da pesquisa e da educação superior. Por outro lado, não é imaginável que o texto de uma reforma do ensino superior se aplique igualmente a todas as regiões do país, com a heterogeneidade que se sabe. Só um planejamento que inclua conceitos como visão de futuro, diagnóstico, metas e identificação de meios evitaria tratar a heterogeneidade como homogênea e exigir dela resultados iguais, além de – e  aqui está o principal – abrir o escopo da reforma para uma mudança qualitativa que inclua uma regulação criteriosa do sistema de ensino superior como um todo e, ao mesmo tempo, tenha a coragem de fortalecer e ampliar as bases da universidade pública e gratuita, que, em geral, está apta a oferecer uma melhor formação por conjugar o ensino à pesquisa e à produção de conhecimento novo.

A este último reclamo se opõem alguns obstáculos conjunturais sérios, como o decrescente investimento federal na manutenção da pesquisa, a participação crescente do setor privado nos recursos públicos (exemplo: a estatização de 100 mil vagas nas universidades particulares em 2005), certa renitente campanha contra a universidade pública e, por fim, uma política de inclusão que não leva em conta as causas da exclusão, especialmente, como já foi mencionado, o baixo desempenho do ensino fundamental e médio – além das conseqüências decorrentes da má distribuição de renda e da falta de justiça social.

Ainda assim, a universidade pública sabe que não pode eludir as grandes demandas de seu tempo. A principal delas é continuar ampliando o número de vagas em seus cursos, especialmente na graduação, criando mais oportunidades com planejamento adequado e provisão de meios. Outra é, no contexto dessa expansão, encontrar formas de promover a inclusão social – e a maneira mais adequada é incluir a escola pública – sem  depreciação da qualidade e do mérito acadêmico (a Unicamp o fez recentemente, através de um programa de ação afirmativa que não reproduz o sistema de cotas).

Em paralelo, é patente a necessidade de a universidade pública fazer chegar à população, em grau maior, os frutos do conhecimento nela gerado. Uma tarefa nobilíssima e urgente, por exemplo, é o seu envolvimento mais profundo na qualificação de professores das redes de ensino, seja por meio dos programas governamentais (de que a Teia do Saber, em São Paulo, é um exemplo notável), seja por meio de iniciativas institucionais próprias.
 

* José Tadeu Jorge, 52, engenheiro de alimentos e professor titular da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp, toma posse hoje como reitor da universidade.
 

Fonte: Folha de S. Paulo, 19/04/2005.


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