Prolegômenos para uma ontologia do ser social
Ao
contrário do que alguns detratores do marxismo costumam afirmar, Lukács
buscava mostrar como não há em Marx um determinismo unívoco da esfera
econômica sobre as outras instâncias da sociabilidade: o cerne estruturador
do pensamento econômico de Marx se funda na concepção da determinação
recíproca das categorias que compõem o complexo do ser social. A base
econômica constitui o momento preponderante, mas interage com uma série de
superestruturas de forma dialética e recíproca. A Boitempo Editorial publica
pela primeira vez em português os Prolegômenos para uma ontologia do ser
social, de György Lukács, um dos pensadores marxistas mais importantes de
todos os tempos.
Redação
Após a publicação da
primeira parte de sua Estética, em 1963, o filósofo húngaro György Lukács
começou a trabalhar no ambicioso projeto de uma Ética que sintetizaria sua
longa trajetória intelectual. Em suas investigações, porém, notou a
“necessidade de uma elaboração prévia: a determinação histórico-concreta do
modo de ser e de reproduzir-se do ser social”, como aponta José Paulo Netto,
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esses esforços são
concluídos em 1969 e publicados postumamente com o título de Para uma
ontologia do ser social.
Com o objetivo de explicar melhor alguns conceitos apresentados, no início
dos anos 1970 Lukács passa a trabalhar no manuscrito do que seriam os
Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para
uma ontologia hoje tornada possível, publicados também postumamente, em
1984, e agora traduzidos pela primeira vez para o português pela Boitempo
Editorial.
Um dos pensadores marxistas mais importantes de todos os tempos, Lukács
tinha como objetivo ao escrever sua Ontologia reexaminar passo a passo as
categorias fundamentais do pensamento de Marx, “iniciando pela retomada das
considerações marxianas acerca do trabalho como complexo central decisivo do
ser social, passando pelo problema da reprodução, da ideologia, e culminando
no tratamento da alienação”, como explicam Ester Vaisman, professora de
filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, e Ronaldo Vielmi Fortes,
especialista na obra lukacsiana, responsáveis respectivamente pela
supervisão editorial e pela revisão técnica da obra, além de autores da
completa apresentação à edição brasileira.
Ainda segundo Vaisman e Fortes, o autor apresenta uma denúncia de que o
caráter ontológico do pensamento de Marx ficou obscurecido “pela rigidez
dogmática em que o marxismo se viu imerso desde a morte de Lenin, que
rechaçava a discussão acerca da ontologia, qualificando-a de idealista e/ou
simplesmente metafísica”. Ao contrário do que alguns detratores do marxismo
costumam afirmar, Lukács buscava mostrar como não há em Marx um determinismo
unívoco da esfera econômica sobre as outras instâncias da sociabilidade: “o
cerne estruturador do pensamento econômico de Marx se funda na concepção da
determinação recíproca das categorias que compõem o complexo do ser social”,
como explicam os autores da apresentação. A base econômica constitui o
momento preponderante, mas interage com uma série de superestruturas de
forma dialética e recíproca.
Além de introduzir e contextualizar a Ontologia – também inédita em
português e sendo preparada para publicação pela Boitempo – os Prolegômenos
acrescentam a ela novas reflexões e abordagens, complementando-a. Partindo
da premissa marxiana de que a realidade deve ser não somente analisada e
compreendida mas principalmente transformada, ao redigir este material
Lukács tinha nos ombros o peso de uma série de desilusões e derrotas da
esquerda no período posterior à Revolução de 1917. Buscava partir de Marx
para reformular as perspectivas revolucionárias de então, apontando
respostas aos impactos que o stalinismo causara no projeto comunista.
Certamente aqueles que ainda se preocupam com uma atuação social
transformadora não podem deixar de analisar esta importante contribuição
para o pensamento revolucionário.
Segundo Nicolas Tertulian, professor da École de Hautes Études en Sciences
Sociales, a obra “tem o valor de um testamento por constituir o último
grande texto filosófico de Lukács. Concebida como uma introdução ao texto
principal da Ontologia, representa, de fato, uma vasta conclusão”.
Trecho da obra
Nossas considerações visam determinar principalmente a essência e a
especificidade do ser social. Mas, para formular de modo sensato essa
questão, ainda que apenas de maneira aproximativa, não se devem ignorar os
problemas gerais do ser, ou, melhor dizendo, a conexão e a diferenciação dos
três grandes tipos de ser (as naturezas inorgânica e orgânica e a
sociedade). Sem compreender essa conexão e sua dinâmica, não se pode
formular corretamente nenhuma das questões autenticamente ontológicas do ser
social, muito menos conduzi-las a uma solução que corresponda à constituição
desse ser.
Não precisamos de conhecimentos eruditos para ter a certeza de que o ser
humano pertence direta e – em última análise – irrevogavelmente também à
esfera do ser biológico, que sua existência – sua gênese, transcurso e fim
dessa existência – se funda ampla e decididamente nesse tipo de ser, e de
que também tem de ser considerado como imediatamente evidente que não apenas
os modos do ser determinados pela biologia, em todas as suas manifestações
de vida, tanto interna como externamente, pressupõem, em última análise, de
forma incessante, uma coexistência com a natureza inorgânica, mas também
que, sem uma interação ininterrupta com essa esfera, seria ontologicamente
impossível, não poderia de modo algum desenvolver-se interna e externamente
como ser social.
Sobre o autor
Nascido em 13 de abril de 1885 em Budapeste, Hungria, György Lukács é um dos
mais influentes filósofos marxistas do século XX. Doutorou-se em Ciências
Jurídicas e depois em Filosofia pela Universidade de Budapeste. No final de
1918, influenciado por Béla Kun, aderiu ao Partido Comunista e no ano
seguinte foi designado Vice-Comissário do Povo para a Cultura e a Educação.
Em 1930 mudou-se para Moscou, onde desenvolveu intensa atividade
intelectual. O ano de 1945 foi marcado pelo retorno à Hungria, quando
assumiu a cátedra de Estética e Filosofia da Cultura na Universidade de
Budapeste. Estética, considerada sua obra mais completa, foi publicada em
1963 pela editora Luchterhand. Já seus estudos sobre a noção de ontologia em
Marx, que resultariam oito anos depois na Ontologia do ser social,
iniciaram-se em 1960. Faleceu em sua cidade natal, em 4 de junho de 1971.
Fonte: Ag. Carta Maior, Arte & Cultura,
22/11/2010.
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