Produtiva, mas ordinária – a produção científica brasileira
O
Brasil é um dos países líderes em produção científica, mas continua com
atraso tecnológico imenso, incapaz de atrair jovens para a atividade – e sem
um Prêmio Nobel; O governo federal prometeu anunciar nas próximas semanas o Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação, o "PAC da Ciência", que prevê investimento de cerca de R$ 41 bilhões na área até 2010. [Na realidade, o que está para ser anunciado é o texto final do Plano de Ação, cujas linhas básicas já foram divulgadas há vários meses e debatidas na SBPC (tanto pela diretoria como na Reunião Anual de Belém, realizada em julho passado), Academia Brasileira de Ciências e muitas outras entidades da comunidade científica brasileira, que formularam propostas ao texto original – esclarecimento do JC e-mail.] O lançamento é aguardado pela comunidade científica nacional com entusiasmo, mas também com uma boa dose de ceticismo. Dinheiro é sempre bem-vindo, claro, mas só ele não vai resolver os problemas que a pesquisa brasileira enfrenta, disseram os cientistas ouvidos pela Folha diante da pergunta: O que falta para o Brasil se tornar uma potência científica? A reportagem conversou com especialistas de diversas áreas, que apresentaram o diagnóstico na ponta da língua. Sozinho, o PAC não vai fazer milagre. Para dar um salto qualitativo, dizem, o país precisa derrubar entraves dos quais a comunidade científica já está cansada de reclamar, como a burocracia que cerca a importação de material científico e leis que dificultam os estudos da biodiversidade nacional. As respostas também foram unânimes sobre a necessidade de aumentar a quantidade Institutos de Pesquisa no país e espalhá-los por regiões do Brasil que sofrem de um vazio científico, como a Amazônia. Essas são medidas que, juntamente com um maior investimento, auxiliariam os cientistas que já estão na ativa e talvez tornassem a área mais atraente para novos profissionais. Mas, para fazer o país alcançar um novo patamar de excelência, as mudanças teriam de ser mais profundas. A solução passa por resolver problemas estruturais, a começar pela deficiência no ensino e a falta de uma postura política que enxergue o incentivo à pesquisa como a melhor forma de promover o desenvolvimento nacional. "Falta para a ciência brasileira o que temos no esporte – o efeito futebol de rua. Acho que um dos motivos pelos quais o Brasil se tornou campeão no futebol é porque existem milhões de crianças jogando bola na rua. É uma massa enorme, treinada desde a infância. É um ambiente que forja campeões", afirma Luiz Davidovich, físico da UFRJ e membro das Academias de Ciências do Brasil e dos EUA. "Mas com a ciência não é assim. A criança e o jovem não têm esse estímulo por conta das falhas na educação básica – professores que ganham mal, aulas de ciência sem sentido. Esse é um obstáculo poderoso para o Brasil se tornar uma potência científica. Se tivéssemos milhões de crianças interessadas em ciência, também seríamos campeões nesse setor." Por trás dessas questões estruturais, os cientistas acreditam que esteja um desinteresse quase crônico do país em investir no setor. "O modelo de desenvolvimento brasileiro só recentemente começou a se preocupar com a formação do conhecimento. O país tradicionalmente preferiu comprar tecnologia e conhecimento do exterior a desenvolver aqui", afirma o físico Ennio Candotti, ex-presidente da SBPC. "Nunca tivemos, por exemplo, políticas de longo prazo que promovessem a continuidade de programas em prol da ciência." A falta de investimentos no setor é o que melhor reflete isso. Praticamente todos os Estados do Brasil têm leis que estabelecem o repasse de determinada porcentagem da arrecadação para suas FAPs (Fundações de Amparo à Pesquisa). Mas o único a cumprir a regra é SP, que destina 1% de sua receita diretamente à Fapesp – sem que o dinheiro se perca na vala comum dos cofres da Fazenda, por exemplo, e acabe desviado para outras atividades. "Não é à toa que o Estado produz 55% da ciência nacional e abriga 30% dos doutores do país", lembra Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor-científico da Fapesp. Pouco impacto Hoje o Brasil é responsável por cerca de 2% da ciência mundial, ocupando o 15º lugar no ranking de países por produtividade, segundo levantamento da Capes. Em termos qualitativos, no entanto, a posição do Brasil é mais discreta – 20º lugar no ranking que mede o impacto dos estudos publicados, ou seja, o quanto eles são citados por outros trabalhos. Em primeiro lugar vem a Suíça (que fica atrás do Brasil em produção de artigos), seguida dos EUA e da Dinamarca. Para o presidente da Capes, Jorge Guimarães, esses números merecem ser vistos com otimismo: "Estamos crescendo cada vez mais na na produção total e mesmo a 20ª posição no ranking de impacto não é ruim. A nota do Brasil foi 2,95; a dos Estados Unidos, 6,6. Não é tão distante. E temos áreas de destaque, como os estudos de doenças tropicais. Todavia não temos vacina. As empresas farmacêuticas ainda não fazem pesquisa no Brasil, precisamos estimular isso." O ranking da Capes considerou todos os trabalhos brasileiros publicados em revistas científicas indexadas na base de dados do ISI (Instituto para Informação Científica). Mas o contraste entre publicação e citação fica ainda mais evidente quando se olha mais de perto, como fez Rogério Meneghini, da Unicamp, que há anos estuda esses indicadores. Em seu mais recente levantamento, ele considerou as 27 instituições nacionais que publicaram mais de cem artigos em 2005 e quanto esses artigos foram citados até setembro deste ano. As mais produtivas, como USP e Unicamp, foram superadas em citação pelo Instituto Butantan, que publicou pouco mais de uma centena de artigos. Mas mesmo ele ficou muito atrás no quesito impacto se for comparada com a Universidade Harvard, campeã em publicação e em citação. "A verdade é que não basta só publicar. O "publish or perish" [publicar ou perecer, ditado básico da pesquisa] é só o primeiro passo. Tem de ser citado e tem de ser algo que incremente, que traga uma nova idéia, uma nova perspectiva para a ciência mundial, além de ter impacto diante das questões que importam para a sociedade brasileira", comenta o neurocientista paulistano Miguel Nicolelis, que só alcançou destaque como pesquisador quando foi para os EUA. Ele defende uma mudança na forma de financiar a pesquisa. "Talvez seja caso de distribuir verba com novos critérios, de modo que ela vá para áreas que sejam estratégicas para o país e para grupos de qualidade comprovada. Para pesquisa que tenha mérito", comenta. Os Sem-Nobel Líder de um laboratório na Universidade Duke, Nicolelis é um dos idealizadores do Instituto de Neurociência de Natal, pensado como forma de atrair os cérebros brasileiros, que, como ele, tiveram de sair do Brasil para fazer ciência. "Acho que aqui ainda existe muita coisa errada, um corporativismo exagerado dentro da própria academia. É preciso mudar o paradigma de que ciência tem de ser feita só na Universidade. Ela pode ser feita na indústria. O governo tem de começar a incentivar que as multinacionais façam centros de pesquisa aqui", comenta. O incentivo à pesquisa nas indústrias foi defendido também por outros pesquisadores como forma de fortalecer a inovação, hoje um dos grandes gargalos do país. "A produção científica é uma beleza, mas cadê as patentes?" -pergunta Guimarães. "Em quase todos os segmentos ainda não vemos a transformação do conhecimento em tecnologia." O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor-emérito da Unicamp e membro do conselho editorial da “Folha de SP”, concorda com essa necessidade, mas faz um alerta. "Esse excesso de preocupação com os resultados imediatos é preocupante. A pesquisa, tem sim, de ganhar espaço na indústria. Mas não se pode esquecer que boa parcela da ciência se faz somente para aumentar o conhecimento sobre determinada área. E o cientista precisa ter absoluta liberdade para chegar a isso. Inovação não nasce no cabresto", afirma. Guimarães aposta, no entanto, que será esse investimento que poderá fazer a ciência do país deslanchar. "De modo geral, a posição no ranking de produtividade acompanha o PIB. O Brasil tem o o 12º PIB do mundo. Acho que é questão de tempo alcançarmos essa posição com a pesquisa." Apesar disso, o presidente da Capes disse não acreditar que o país terá um dia seu Prêmio Nobel em ciência: "Não acho que vai ganhar tão cedo, se é que vai ganhar um dia. Já tivemos nossa chance com Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, César Lattes. Perdemos." Com ou sem promessa de um Nobel, para essa ciência industrial funcionar vai ser preciso primeiro resolver as burocracias que prejudicam a importação de material científico. "Muitas empresas estrangeiras têm receio de trazer seus centros de pesquisa para cá porque temem não conseguir mantê-los competitivos, não conseguir importar equipamentos, enzimas etc", lembra Nicolelis. O pesquisador nato que o diga. Levantamento divulgado pela Federação de Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe) em seu congresso em agosto deste ano mostrou que o cientista brasileiro gasta em média três vezes mais do que o valor do produto por causa de impostos e custos de estocagem em portos e aeroportos. "Certamente nosso maior entrave é essa burocracia. Os preços que a gente paga pelas coisas e os prazos que a gente tem de enfrentar são uma das maiores causas do nosso atraso científico", afirma Luiz Eugênio de Mello, pró-reitor de Graduação da Universidade Federal de SP (Unifesp) e presidente da Fesbe. "O pesquisador tem de lidar com um conjunto de regras que às vezes brigam entre si, e o aplicador dessas regras normalmente não está suficientemente instruído para resolver os problemas", complementa. O pior é que, enquanto espera, o pesquisador brasileiro vai perdendo em competitividade. "Um americano ou um europeu que precisem de um produto o recebem no dia seguinte. Aqui leva em média três meses para chegar. E se, por um acaso, quando receber o material o cientista descobrir que não era daquilo que ele precisava, o europeu e o americano resolverão o problema no dia seguinte. Aqui serão mais três meses. Fica difícil competir assim." Mello defende que o PAC seria mais efetivo se de algum modo contemplasse esses problemas. "Deveria criar uma secretária da desburocratização, que simplificasse as coisas", brinca. "Mas aqui no Brasil se considera por definição que todo mundo é desonesto. As leis têm tantas dobras para evitar isso que no final eu acho que elas acabam fomentando a desonestidade e a corrupção. No desespero, o que vemos é o pesquisador tentando driblar o sistema mesmo, trazendo na mala, contrabandeando." Efeito Roosmalen Mello lembra que nesse mesmo nível de dificuldade se vêem os pesquisadores que estudam biodiversidade no Brasil. As leis que tentam coibir a biopirataria acabam por impedir, na verdade, a pesquisa. Não é à toa que muita gente tem considerado o primatólogo holandês naturalizado brasileiro Marc van Roosmalen, preso sob acusação de biopirataria, como quase um herói. "Talvez ele não queira respeitar lei nenhuma, mas, por outro lado, pode ser simplesmente o cientista fazendo as coisas dentro do que julga ético, moral, aceitável." Outro estrangeiro trabalhando na Amazônia resumiu a situação. "A verdade é que todos nós, biólogos, que fazemos o mesmo tipo de trabalho que ele estamos sujeitos ao mesmo risco de ser acusados erroneamente de sermos criminosos", disse Mario Cohn-Haft, especialista em aves do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Fonte: JC e-mail, ed. n. 3379, 29/10. (Folha de S. Paulo, Giovana Girardi, 28/10/07.)
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