Privilégios, mimos e
mordomias estatais
Em haia, holanda, pedalando entre uma reunião e outra, passamos, meu amigo holandês e eu, por um ciclista que falava ao celular. Meu amigo me informou então que se tratava do ministro da Justiça em pessoa, e comentou em seguida: “Isso é muito perigoso... Andar de bicicleta e falar ao celular. Ele deveria parar ou pelo menos reduzir a velocidade”. E, para minha estupefação, arrematou: “Qualquer criança aprende na escola que falar ao celular enquanto pedala é ainda mais perigoso que dirigindo um carro”. Tentando me refazer do choque cultural, fiquei refletindo sobre o estranho senso comum daquele pequeno país que, apesar de ter um décimo da população do Brasil, tem um PIB encostado no nosso e uma lista de 17 agraciados com o Prêmio Nobel. Com meu senso comum de brasileiro, ponderei a meu amigo holandês que o verdadeiro perigo era uma autoridade de tal estatura se expor em público, daquela forma, em tempos de terror mundial. E, como argumento final, acrescentei vitorioso: “Eu mesmo posso acertá-lo daqui com uma pedrada”.
“Certamente você pode.
Entretanto, é importante em nosso senso de democracia que nossos
representantes eleitos sejam vistos como parte do cotidiano das pessoas
comuns. Isso tem um sentido de manter nossos representantes conectados com
seus concidadãos, e vice-versa.” Calei minha boca e fiquei refletindo sobre
a democracia brasileira.
Uma vez tendo ascendido ao olimpo chapa-branca, todos se transformam nos “doutores”, servidos por carros oficiais, motoristas, secretárias, seguranças e copeiros pagos pelo contribuinte. Um território blindado, cheio de mimos, mordomias e foros privilegiados, que os mantém isolados de nossas angústias e ansiedades de clientes do Estado. O mais grave é que, mesmo nossos representantes egressos de setores populares, como o presidente Lula ou a ministra Marina Silva, não esboçam nenhuma tentativa de produzir uma ruptura do padrão dominante. Nossa ex-ministra, senadora e governadora do Rio de Janeiro Benedita da Silva fez campanha usando o slogan “Mulher, negra, pobre e favelada”. No entanto, todos eles, uma vez eleitos, se desmaterializam do espaço cotidiano dos simples mortais.
Semelhante desconexão
da classe política do contexto cotidiano de seus concidadãos só encontra
similar em países africanos e em alguns de nossos vizinhos
latino-americanos. Essa síndrome de descolamento anticidadão afeta homens e
mulheres que ocupam mais de 100 mil postos públicos pelo país, ou gravitam
em torno deles. Isso está na raiz de nossos problemas como sociedade. Não é
algo que se resolva com a melhora da distribuição de renda. Tampouco com
aceleração de crescimento econômico. Mas não sou dos que acreditam que essa
é nossa natureza. Que estamos condenados a ser assim. Um bom começo pode ser
um movimento cívico pelo fim do foro privilegiado. * Ricardo Neves - é consultor de empresas e escreve quinzenalmente em ÉPOCA. Autor do livro Novo Mundo Digital.
Fonte: Rev. Época, ago/2007. |
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