"O Presidente está
simplesmente servindo
ou recitando uma diretriz do consenso de Washington"
— Octávio
Ianni
Octávio
Ianni é um dos grandes mestres da moderna
sociologia latino-americana. Aqui, em entrevista dada ao jornal da
Universidade de Campinas, conduzida por Clayton Levy,
Ianni mantem-se fiel aos seus princípios
de sempre: falar claramente e com franqueza. O governo social-democrata de
Lula sai chamuscado da entrevista.
Jornal
da Unicamp – A esquerda brasileira
está inquieta e parte dela se sente desconfortável com o momento político,
como se estivesse sendo inculpada das desigualdades sociais. Como o senhor
analisa esse quadro?
Octavio Ianni – Não há dúvida de
que a sociedade brasileira está atravessada por injustiças sociais. E não há
dúvida de que esse quadro de desigualdades deve ser superado aos poucos ou
rapidamente. Há que reconhecer, especialmente se se trata de um presidente
da República, essa realidade e lidar com ela de maneira objetiva. Em
absoluto não cabe ao presidente satanizar categorias sociais sem enfrentar a
preliminar de como encaminhar uma solução objetiva para os problemas da
sociedade. Concretamente, a preliminar de todas as preliminares é co mo
criar emprego para a grande maioria da população que se encontra
subempregada ou simplesmente desempregada. É inegável que algumas
corporações dispõem de vantagens escandalosas. Mas é importante reconhecer
que os professores do sistema público de ensino de primeiro, segundo e
terceiro graus têm sido gravemente prejudicados pelas políticas
governamentais desde a ditadura militar, continuando com os governos civis e
com o governo atual, que se entregou gostosamente ao modelo neoliberal.
Portanto, quando o presidente está dizendo o que disse, ele está
simplesmente servindo ou recitando uma diretriz do consenso de Washington. E
não está em absoluto revelando uma visão de estadista sobre os problemas
nacionais. Aliás, ele não pode ser um estadista porque o governo atual não
dispõe de um projeto nacional. Ao contrário, esse governo instalou-se para
resolver topicamente, ao acaso das emergências, os problemas que vão
surgindo.
JU – O que o senhor quer dizer com “satanizar”?
Ianni – Acho que tem de
ser passada para o público uma visão de conjunto para não ficar nessa
artimanha dos argumentos governamentais. Um governo que vem a partir de
movimentos sociais está se dedicando muito apressadamente a satanizar a
atividade intelectual na universidade pública. Portanto está contribuindo
para favorecer a privatização e o economicismo no primeiro, segundo e
terceiro graus, que é um item do ideário de Washington, ou mais
concretamente uma exigência do Banco Mundial.
JU – Em sua opinião, quais seriam as conseqüências dessa postura para
o ensino superior público?
Ianni – Os governos militares e os
governos civis estão totalmente atrelados às diretrizes do Banco Mundial,
que desde os anos 60 e 70 começou a estabelecer favores financeiros e
tecnológicos mas, simultaneamente, passou a impor exigências. É o Banco
Mundial que estabeleceu as exigências que estão sendo implementadas no
ensino público, como o economicismo e a pesquisa e desenvolvimento.
Desenvolvimento do quê? Da nação, do povo? Não, é do mercado, das
corporações, da economia capitalista. O que os governos militares iniciaram
os governos civis deram continuidade e este governo, para decepção de grande
parte do eleitorado que votou no PT e no Lula, está jogando a última pá de
cal no projeto nacional e no estado de bem-estar social que se havia criado
nas décadas anteriores à ditadura militar.
JU – Mas o que o governo diz é justamente o oposto: que tem um
projeto nacional que outros nunca ousaram ter.
Ianni – Todos estamos
vendo que os americanos estão jogando com a hipótese de que o Brasil é o seu
aliado preferencial na América do Sul, e com isso ganhando a cumplicidade do
governo brasileiro e das elites brasileiras, no sentido de fazer o jogo da
Alca, com a hipótese de que o Brasil poderia obter algumas vantagens em
detrimento das outras nações. A rigor, o que os americanos propõem com a
Alca na verdade é uma redefinição da geopolítica norte-americana na América
Latina, e portanto um realinhamento das nações latino-americanas com a
cumplicidade das elites brasileiras. Há tempos que há uma cumplicidade das
elites militares, empresariais e alguns setores intelectuais com esse jogo
malicioso do governo americano, que faz de conta que o Brasil é o aliado
preferencial na América Latina.
JU – Em sua opinião, o que teria levado o governo a adotar uma
postura inversa do que vinha pregando enquanto corrente ideológica?
Ianni – Acho que isso é
comum a vários partidos no Brasil. Eles não têm análise do que está
realmente acontecendo no país. Na minha interpretação, desde 1964, com a
ditadura militar, e depois com os governos civis, está sendo desmontado um
projeto nacional que era vigoroso. Embora não fosse o projeto dos meus
sonhos, porque era um projeto de capitalismo nacional. Os militares, em
função do jogo americano da Guerra Fria, e depois os governos civis em
função das imposições do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial do
Comércio, trabalharam ativamente o Consenso de Washington no sentido de
desmontar o projeto nacional. Pouco a pouco o Brasil se transformou numa
província do globalismo. Nos séculos 16, 17 e 18, o Brasil era uma província
do mercantilismo. Agora, no século 21, passou a ser uma província do
globalismo. E o presidente pensa que é presidente de um estado nação. Na
verdade é o administrador de uma província do globalismo. Mas ele não tem
essa análise. Eles estão jogando com a hipótese de que, se o Brasil
desmontar o seu projeto nacional entrará no primeiro mundo. Isso é
totalmente enganoso. O exemplo do que ocorreu na Argentina, que fez tudo
isso um pouco antes do Brasil, é suficientemente claro. É um desastre.
JU – A que o senhor atribui essa súbita atração pelo globalismo?
Ianni – Vou dar uma
resposta que não é acadêmica. O sensualismo do poder é irresistível. O
fascínio do poder e, claro, a ilusão de que vai governar um estado nação,
induz os membros do governo a crer que estão realizando uma tarefa
meritória. Na verdade estão contribuindo para que o país se mantenha nesse
estado, podendo até piorar. Aliás, as corporações transnacionais, não só
norte-americanas, mas também asiáticas e européias, escolheram o Brasil como
base principal de suas operações na América do Sul. E esta é uma escolha à
revelia do governo e do povo. E uma escolha que decorre da força que estas
corporações têm no cenário mundial.
JU – Até que ponto isso representa uma ameaça à soberania nacional?
Ianni – A soberania nacional acabou. Antes, a soberania nacional era
problemática. Hoje, é uma fig ura abstrata. Qual a imagem mais evidente do
presidente, seja do passado (FHC) ou deste (Lula)? São fotografias em salas
de visita em várias partes do mundo. Isso cria na opinião pública uma ilusão
de que existe uma nação. Na verdade eles atendem os interesses das
corporações transnacionais, das organizações multilaterais e da geopolítica
do governo norte-americano no mundo.
JU – O senhor acha que existe o risco de a sociedade cair numa grande
decepção?
Ianni – Já caiu. Mas o
problema é que a sociedade está tendo condições muito limitadas de
manifestação porque a grande mídia está orquestrada com o neoliberalismo. A
grande mídia é diversionista. Está havendo um processo de popularização da
imagem do Lula. A discussão sobre a Previdência é conduzida satanizando os
aposentados. De repente, as pessoas que estão aposentadas nos diferentes
setores da sociedade são consideradas como peso morto. Isso é uma loucura,
uma barbárie. Governantes dedicados a satanizar uma categoria social porque
já cumpriu suas tarefas. É o reino da barbárie. Essa atitude da mídia cria
um estado de incerteza e de medo.
JU – Há riscos sociais nesse processo?
Ianni – A população
brasileira tem sido frustrada continuamente por reversões causadas pelos
jogos do poder que são um desastre para a população. Em 1945 havia um
processo de democratização que implicava numa reconstrução do país depois da
ditadura do Estado Novo. Esse processo foi frustrado por um golpe de estado.
Em 1964, quando o país estava numa tremenda ascensão democrática, com
conquistas sociais notáveis nos governos de Juscelino Kubitscheck e João
Goulart, as elites militares associadas com o imperialismo deram o golpe de
estado. Depois, com a volta dos governos civis, na chamada Nova República,
há também uma sucessão de frustrações. E a maior de todas é esta, porque o
atual gov erno nasceu das lutas contra a ditadura militar e as injustiças
sociais. Então essa conjuntura é altamente frustrante, com características
diferentes, mas semelhantes ao que ocorreu durante o golpe de 64 e o golpe
de 45.
JU – Como o senhor analisa o discurso do presidente, quando ele diz,
por exemplo, que tem “quatro anos para provar que um torneiro mecânico pode
governar esse país com muito mais sabedoria do que ele já foi governado”?
Ianni – Ele tem muitos
motivos para fazer essa afirmação porque ele também foi satanizado devido à
sua trajetória política. Mas ele foi satanizado por ser um símbolo das
classes subalternas. É importante lembrar que o PT e a liderança do Lula
nasceram da luta contra a ditadura militar e como uma reivindicação das
classes subalternas. Na medida em que se desenvolveu o processo político,
ele foi se ajustando, negociando, acomodando. Não há dúvida de que qualquer
liderança polít ica precisa negociar. Mas o estado de espírito de muitos que
votaram no Lula é de uma profunda decepção, porque nesse percurso o partido
e o próprio Lula largaram na estrada muitos compromissos. O comprometimento
crescente do governo com o neoliberalismo significa o abandono de qualquer
compromisso social, salvo na retórica. Fala-se no Fome Zero, mas isso é uma
retórica vazia, porque o problema do país não é dar um prato de comida para
o faminto, e sim dar emprego para as pessoas não perderem a sua dignidade.
Para que um governante saiba o que é a dignidade dos humilhados e ofendidos,
dos desempregados, daqueles que vão receber um prato de comida, é preciso
ter uma visão de conjunto que implica em ter um sentido de nação, que não
está se revelando no governo atual.
JU – Mas a imagem do presidente, principalmente no exterior, é muito
positiva.
Ianni – Essa imagem
altamente colorida e sonora tem a ver com a orquestração do neoliberalismo.
As corporações da mídia são transnacionais. Por outro lado, há setores da
opinião pública mundial que não estão bem-informados sobre o que realmente
está acontecendo. Estive na Argentina recentemente e pude ver isso. Eles
ainda estão galvanizados pela imagem que se criou no passado sobre o PT e o
Lula. Eles ainda não tomaram conhecimento de que a prática desse governo não
tem nada a ver com a sua história. Estão apegados a uma imagem passada, que
já ficou anacrônica.
JU – O senhor acredita que essa lua-de-mel continuará por muito
tempo?
Ianni – Acho que vai
durar pouco. Aliás, o discurso que o Lula fez no Rio Grande do Sul
(Pelotas), foi um discurso de alguém que já está assustado com o terremoto
no qual está metido. Como já tive oportunidade de ouvi-lo em muitas
situações ao vivo nos tempos do ABC, percebi que esse discurso feito no Sul
revelava não só aflição, mas també m alguns indícios de desespero. E a
reação é péssima, porque satanizar essa ou aquela categoria social, culpar
aqueles que levantam objeções e tentar desmoralizar aqueles que fazem alguma
reflexão crítica, é o pior caminho. O Genoíno (José Genoíno, presidente do
PT) está equivocado quando diz que as críticas que a esquerda faz ao governo
atual são o mesmo que jogar água no moinho da direita. Essa declaração é
maldosa, porque na verdade esse governo já foi para a direita. Esse governo
não é mais um governo de esquerda. Foi uma promessa da esquerda, mas não é
mais de esquerda. Uma promessa que não se cumpriu.
JU – Como a esquerda brasileira vai elaborar essa nova situação?
Ianni – A esquerda está
demorando para fazer uma análise objetiva sobre o que aconteceu no mundo.
Hoje o capitalismo entrou em um novo ciclo de expansão em escala mundial. As
nações estão transformadas em províncias do globalismo. Desde que se faça
uma análise objetiva sobre as forças sociais que estão atuando em escala
nacional e transnacional será possível formular uma nova política de
esquerda. Caso contrário, será uma política de nostalgia, sobre idéias que
eram muito bonitas e válidas no passado, mas que já dançaram. O grande
problema é como caminhar para um diagnóstico objetivo sobre a realidade
contemporânea e como desenvolver propostas. As classes sociais dominantes no
mundo estão altamente organizadas. A Conferência de Davos, o G7, a OCDE, o
FMI, o Banco Mundial, são expressões de que as classes dominantes estão
orquestradas. E as classes subalternas estão demorando a entender que esse
quadro é novo.
Original em: http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2003/ju220pg06.html
Fonte: Unicamp, 7/2003. |