Entrevista: Mayana
Zatz
A
pesquisadora explica por que é urgente que o STF libere as pesquisas
A bióloga Mayana Zatz é uma das maiores especialistas em células-tronco do país, com quase 300 trabalhos científicos publicados. Nascida em Israel, mora no Brasil desde os 7 anos. Atualmente, ela é pró-reitora de pesquisa e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Mayana estuda há mais de trinta anos terapias para doenças neuromusculares, razão pela qual se tornou uma das maiores defensoras, no país, das pesquisas com células-tronco embrionárias, as únicas capazes de se converter em qualquer um dos 216 tipos de célula do corpo humano. Desde 2005, quando o Congresso aprovou a lei brasileira de biossegurança – que autoriza o uso em pesquisas de embriões congelados há mais de três anos –, Mayana luta para que a lei entre em vigor. Isso porque, naquele mesmo ano, a Procuradoria-Geral da República entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra a lei. Desde então, os estudos com células-tronco embrionárias estão parados no Brasil. Na semana que vem, o Supremo Tribunal Federal dará sua palavra final sobre o uso dos embriões. Nesta entrevista a VEJA, Mayana defende que o Brasil precisa se juntar quanto antes aos países que pesquisam células-tronco embrionárias. Veja – As pesquisas com células-tronco embrionárias encontram-se proibidas no Brasil sob o argumento de que vão contra dois princípios constitucionais: o de que a vida é inviolável e o que garante a dignidade da pessoa. Como a senhora avalia essa proibição? Mayana – Essa proibição é absurda. Inviolável é a vida de inúmeros pacientes que morrem prematuramente ou estão confinados a uma cadeira de rodas e poderiam se beneficiar dessas pesquisas. É preciso entender que os cientistas brasileiros só querem fazer pesquisa com os embriões congelados que permanecem nas clínicas de fertilização, e sempre com o consentimento do casal que os gerou. Se o casal, por algum motivo religioso ou ético, for contra doar seus embriões, não precisará fazê-lo. Deve-se lembrar que o destino dos embriões que não forem utilizados para pesquisa é ficar congelados até ser descartados. Estamos falando de embriões que nunca estiveram num útero, nem nunca estarão. Não existe nenhuma possibilidade de vida para eles. Veja – Afinal, quando começa a vida? Do ponto de vista da ciência, o embrião é um ser humano? Mayana – Não existe um consenso sobre quando começa a vida. Cada pessoa, cada religião tem um entendimento diferente. Mas existe, sim, um consenso de que a vida termina quando cessa a atividade do sistema nervoso. Quando o cérebro pára, a pessoa é declarada morta. Pelo mesmo raciocínio, se não existe vida sem um cérebro funcionando, um embrião de até catorze dias, sem nenhum indício de células nervosas, não pode ser considerado um ser vivo. Pelo menos não da forma que entendemos a vida. Por isso, todos os países que permitem pesquisas com embriões determinam que eles devem ter no máximo catorze dias de desenvolvimento. Os embriões congelados que se quer usar no Brasil têm ainda menos tempo, entre três e cinco dias. Veja – Quais são os principais oponentes da pesquisa com células-tronco embrionárias no Brasil? Mayana – A oposição vem basicamente da Igreja Católica. Entre as igrejas evangélicas existe uma divisão, mas muitas são a favor. É fundamental que as pessoas entendam que não existe uma briga dos cientistas com a Igreja Católica. A decisão que o Supremo Tribunal Federal vai tomar na semana que vem, liberando ou não as pesquisas com células-tronco embrionárias, diz respeito a toda a sociedade. Por isso, é preciso que não haja desinformação. Há gente confundindo pesquisa com células-tronco embrionárias com aborto. Veja – Como se manifesta essa confusão? Mayana – Recebo e-mails surpreendentes de pessoas que perguntam: "Como a senhora tem coragem de interromper uma vida?". Respondo: "Você sabe que esses embriões nunca foram implantados num útero? Você sabe que eles são resultantes de fertilização in vitro?". O remetente, a seguir, pergunta: "Doutora, mas o que é fertilização in vitro?". Já tive vários exemplos desse tipo de desinformação. Recentemente, um padre me mandou um e-mail observando que a grande maioria dos religiosos não teve a oportunidade de aprender ciências e biologia da mesma forma que a população em geral. Quando se aprovou a Lei de Biossegurança, em 2005, permitindo a pesquisa com células-tronco embrionárias, demos aulas para os senadores e deputados. Muitos deles, que primeiramente haviam votado contra as pesquisas, porque não entendiam do assunto, votaram depois a favor. Aí se vê a diferença que faz a informação. É bom lembrar que a Lei de Biossegurança foi aprovada com ampla maioria, depois de uma grande discussão no Congresso. Não foi na calada da noite. Ela obteve o aval de 96% dos senadores e 85% dos deputados. Veja – Neste ano, a Campanha da Fraternidade da Igreja Católica tem como tema a defesa da vida e critica o uso de embriões em pesquisas. Num país com tantos católicos, que impacto essa campanha pode ter? Mayana – O lema da campanha da Igreja é: "Escolhe, pois, a vida". Achei fantástico, porque essa também é a escolha dos cientistas. Estamos preocupados com os pacientes que morrem por causa de doenças neurodegenerativas ou que estão imobilizados por causa de acidentes. Por isso é preciso que se entenda a diferença entre aborto e pesquisa com células-tronco embrionárias. No aborto, há uma vida dentro do útero de uma mulher. Se não houver intervenção humana, essa vida continuará. Já na reprodução assistida, é exatamente o contrário: não houve fertilização natural. Quem procura as clínicas de fertilização são os casais que não conseguem procriar pelo método convencional. Só há junção do espermatozóide com o óvulo por intervenção humana. E, novamente, não haverá vida se não houver uma intervenção humana para colocar o embrião no útero. Veja – Qual é a contribuição brasileira às pesquisas com células-tronco embrionárias? Mayana – Muito pequena. Temos uma contribuição significativa em clonagem reprodutiva animal e na pesquisa de terapias com células-tronco adultas na área cardíaca. Com células embrionárias, quase não temos resultados. Acho que nem sequer temos estudos publicados. As células-tronco adultas só formam alguns tecidos, como músculo, osso, gordura e cartilagem. Com elas, não se consegue formar células nervosas, fundamentais para tratar doenças neuromusculares, para regenerar a medula de alguém que ficou paraplégico ou tetraplégico ou para tratar um parente que tem Parkinson. Se não tivermos células-tronco embrionárias para formar neurônios, todas essas pesquisas ficarão prejudicadas. Veja – Em que países as pesquisas com células-tronco embrionárias estão mais avançadas? Mayana – Inglaterra, Austrália e Israel, onde a lei permite esse tipo de pesquisa há muito tempo. Nos países de Primeiro Mundo, em geral, onde há uma grande preocupação com a saúde da população, esse tipo de pesquisa é permitido. O ambiente mais favorável nesses países depende de uma série de fatores. Um deles é a boa formação dos legisladores. A alocação de recursos e a presença de cientistas de ponta também são fundamentais. No Brasil, temos alguns centros de excelência, há cientistas que dominam a técnica e são capazes de fazer o que se faz no Primeiro Mundo, mas não em número suficiente. Outra dificuldade que enfrentamos é a demora para viabilizar as pesquisas, em qualquer campo. No Brasil, por causa de entraves burocráticos, levamos até seis meses para importar materiais de pesquisa, enquanto no exterior o tempo é de 24 a 48 horas. Lá fora, entre ter uma idéia e executá-la perde-se um dia. Aqui, passam-se meses. Mas novas medidas prometem tornar as importações mais ágeis. Veja – Quais podem ser as conseqüências do atraso brasileiro nas pesquisas com células-tronco embrionárias? Mayana – Teremos de pagar royalties gigantescos para importar uma tecnologia que poderíamos estar produzindo aqui. Em segundo lugar, se amanhã houver no exterior tratamentos com células-tronco embrionárias não disponíveis no Brasil, as pessoas com boa situação financeira irão para fora se tratar. O que os pobres vão fazer? O SUS vai cobrir os custos de um tratamento no exterior? Eu atendo pacientes com doen-ças muito graves. Quando comunico aos pais de uma criança que o filho deles tem uma doença para a qual não existe cura, eles sempre me perguntam, angustiados, se em algum lugar do mundo existe possibilidade de tratamento. Se o casal tem dinheiro, eu até o incentivo a ir ao exterior, para que tenha a certeza de que tentou tudo. Se os pais não têm recursos, digo que todos os tratamentos disponíveis lá fora podem ser feitos aqui. Mas, se amanhã houver no exterior tratamentos com células-tronco embrionárias que não estão disponíveis aqui, os casais mais pobres vão entrar em desespero. Veja – O presidente George W. Bush é um dos mais ferrenhos opositores às pesquisas com células-tronco embrionárias. Que impacto tem essa posição do governo americano no cenário científico internacional? Mayana – Certamente a postura do presidente Bush tem um peso negativo. Nos Estados Unidos, os projetos nessa área não podem receber dinheiro público. Em compensação, as pesquisas científicas contam com enormes investimentos da iniciativa privada. Muitos trabalhos com células-tronco embrionárias saíram de lá. Só na Califórnia, em 2005, investiram-se 3 bilhões de dólares em pesquisas com células-tronco. Veja – Como a senhora responde aos críticos que dizem que as pesquisas com células-tronco, mesmo as adultas, vão na contramão da natureza? Mayana – Quando você faz uma cesariana, e não um parto, está indo contra a natureza. Quando vacina seus filhos, está aumentando a imunidade deles e indo contra a natureza. Quando alguém tem uma pneumonia e você dá um antibiótico, está indo contra a natureza. É porque temos ido tão freqüentemente contra a natureza que a expectativa de vida tem subido tanto no mundo. Vejo em grande parte as células-tronco como uma possibilidade de regenerar órgãos, como um substituto para os transplantes. Hoje, a sociedade aprova quando um indivíduo está doente e recebe um transplante de coração. Mas não é fácil fazer um transplante. Há filas para receber um órgão, há o desafio de achar um doador compatível. No futuro, se conseguirmos regenerar o coração, ou outros órgãos, com células-tronco, não haverá razão para não fazê-lo. Veja – Os estudos sobre as células-tronco adultas evoluem rapidamente, mas suas aplicações práticas ainda são muito restritas. Falta muito para que a medicina se beneficie amplamente desses estudos? Mayana – Hoje, as células-tronco adultas são usadas no tratamento de doenças do sangue, como leucemias, anemias e talassemia. Nas outras áreas, tudo o que há são tentativas terapêuticas. A grande barreira para desenvolver tratamentos é que ainda não temos total conhecimento sobre a diferenciação celular, ou seja, o processo pelo qual uma célula-tronco se transforma em outro tipo de célula. Já sabemos que temos uma multiplicidade de células-tronco com diferentes potenciais. Mas não temos ainda como controlar essas células. Um exemplo: eu injeto células-tronco para regenerar o músculo de alguém, mas essas células resolvem que vão virar osso. Se isso acontecer, não tenho mais como controlar o processo. Veja – Quais serão, no futuro, os principais benefícios dos tratamentos com células-tronco? Mayana – A terapia com células-tronco pode ser considerada como o futuro da medicina regenerativa. Entre as áreas mais promissoras, está o tratamento para diabetes, doenças neuromusculares, como as distrofias musculares progressivas e a doença de Parkinson. Com as células-tronco, também se poderá promover a regeneração de tecidos lesionados por causas não hereditárias, como acidentes, ou pelo câncer. O tratamento do diabetes é muito promissor porque depende da regeneração específica de células que produzem insulina, o que é mais fácil do que regenerar por completo um órgão complexo. As células-tronco vão permitir que as pessoas vivam muito mais e de forma saudável. Uma pessoa que precise de um transplante de coração ou de fígado, se tiver a possibilidade de fazer uma terapia com células-tronco em vez de esperar anos numa fila por um órgão novo, terá uma qualidade de vida muito melhor. Veja – Alguns dermatologistas já anunciam tratamentos estéticos com células-tronco. Eles funcionam? Mayana – Como ainda não temos controle total sobre a diferenciação celular, não faz sentido injetar células-tronco para melhorar a pele. Ainda não estamos prontos para isso. Daqui a alguns anos, pode ser. O conselho que dou aos potenciais clientes desses tratamentos é: investigue quem é o médico que os está oferecendo. Pesquise na internet, procure levantar o currículo dele, o que ele publicou sobre esse assunto, a que entidade está ligado. Veja – Cientistas dizem que, dentro de alguns anos, será possível manipular o DNA dos embriões de forma a interferir nas características dos bebês. Estamos caminhando nesse sentido? Mayana – Atualmente, só o que podemos descobrir é se um embrião tem uma mutação que determina uma doença específica. Se uma família sabe que tem uma doença genética qualquer, pode optar por fazer fertilização in vitro para selecionar um embrião livre do gene que predispõe o portador àquela doença. Nesse caso, acho válido. Evita-se que a criança nasça com uma doença genética grave. Também já é possível selecionar o sexo do futuro bebê, embora isso seja considerado antiético na maioria dos países. Mas existe uma perspectiva de que, nos próximos dez anos, seja possível seqüenciar o genoma de uma pessoa por 1 000 dólares. Ela pode descobrir que tem uma montanha de mutações. A questão ética é o que se vai fazer com essas informações. Talvez sejam usadas para rejeitar um candidato a emprego ou influir no custo do plano de saúde. Há inúmeras mutações que carregamos e nunca vão se manifestar. Veja – No futuro será possível também selecionar embriões para gerar crianças mais inteligentes ou com determinadas características físicas? Mayana – No caso de algumas características, sim, mas acho um absurdo manipular um embrião para que a criança nasça com olhos azuis, por exemplo. Sou totalmente contra. Até porque os padrões de beleza são variáveis. Hoje uma pessoa considerada bonita é de um jeito, mas daqui a vinte anos o padrão será outro. Seria muito difícil controlar todos os fatores genéticos que interagem na inteligência. O ambiente tem um papel muito importante. Lembro-me daquela experiência nos Estados Unidos em que mulheres foram fertilizadas com espermatozóides de ganhadores do Prêmio Nobel. Anos depois, não havia nenhum gênio entre os descendentes dessas mulheres. Ou seja, os resultados são totalmente imprevisíveis. As células-tronco servem para curar e salvar, não para fazer experiências exóticas.
Fonte: Rev. Veja, Vanessa Vieira, ed. 2050, 5/3/2008.
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