Fórum Social Mundial ...
Por que Porto Alegre e Davos são incompatíveis

Emir Sader*

 

Quem tiver a ilusão de estabelecer uma ponte entre Porto Alegre e Davos, está condenado a cair em um abismo, porque os dois Fóruns são contraditórios e incompatíveis.

Davos nasceu para ser o cenário da euforia do neoliberalismo, assentada na hegemonia do capital especulativo, na promoção desenfreadas das marcas das grandes corporações – de que McDonalds e Microsoft eram os melhores exemplos, no exibicionismo da riqueza e do luxo –, como saberíamos depois – , obtidos em grande parte por mecanismos fraudulentos por parte de grandes executivos de corporações. Assentava-se no “Consenso de Washington”, que pretendia ditar regras únicas para todas as economias do mundo, emanadas do FMI, do Banco Mundial e da OMC. Pretendia fazer do mundo inteiro um grande mercado, fazer de todas as coisas – os bens, os direitos, as pessoas – simples mercadorias, em que tudo teria preço, tudo se venderia e se compraria. Seria o capitalismo mais pleno em escala mundial. Os Estados seriam reduzidos a meros executivos do grande capital – das grandes corporações, dos bancos e dos organismos econômico financeiros internacionais –, e a educação e a saúde convertidas em bens compráveis para os detentores de dinheiro.

O resto seria o resto. Países e continentes inteiros entregues à miséria e ao abandono, porque estão fora do interesse das grandes corporações e dos mercados especulativos. Bilhões de pessoas do Sul do mundo privadas dos direitos elementares à vida, a começar pelos medicamentos básicos para combater a malária, o tifo, a febre amarela, a aids e outras doenças as quais os ricos estão livres ou dispõem dos recursos para combater.

Davos foi a estação de esqui da Suíça – conspurcando o cenário de “A montanha mágica”, de Thomas Mann, um dos mais agudos críticos da decadência burguesa, para fazer sem pudor seu convescote anual os mais ricos do mundo – antes que vários deles caíssem em desgraça, nos escândalos de corrupção das empresas que dirigiam.

Davos morreu com o esgotamento da expansão neoliberal dos anos 90, com os grandes escândalos das corporações, com o clima de guerra instaurado pela fúria imperial estadunidense. Tornou-se uma vitrine vazia. Nenhum mandatário importante do mundo se dá o trabalho de pegar seu aviãozinho presidencial para passar sequer uma tarde por lá. Grandes magnatas decadentes, junto a magos da auto-ajuda – como Paulo Coelho – passeiam como em um cenário de circo que já teve seus dias de glória, mas que hoje só abriga palhaços sem graça, equilibristas desconfiados, leões sem dentes, em público.

Desde a primeira vez que se enfrentaram, no debate que foi ao ar, transmitido para todo o mundo pela tevê, no 1º Fórum Social Mundial, Davos perdeu para Porto Alegre. Perdeu, em primeiro lugar, pelo tipo de gente que vem a Porto Alegre e pelo que vai a Davos: ricaços petulantes de gravata e limusine por um lado, que acreditam ser os donos do mundo, e gente com cara de gente por outro, que luta não por seus interesses imediatos, mas por um mundo melhor para todos. Alguns poucos por um lado, representando as minorias que possuem concentradamente as riquezas do mundo, tantos por outro, lutando para a socialização dos bens materiais e culturais do mundo.

São incompatíveis, porque Porto Alegre surgiu lutando e luta sempre pela regulamentação do capital financeiro, pela cobrança de taxas sobre a movimentação desse capital, que reverta para atender as necessidades cidadãs da grande maioria da humanidade, sem acesso aos bens elementares. Porto Alegre nasceu para lutar, e luta sempre pelo fim do pagamento das dívidas – injustas, já pagas, impagáveis – dos países do Sul do mundo, para que deixem de trabalhar e produzir para enriquecer os países credores e suas instituições financeiras. Porto Alegre nasceu para lutar e continuará sempre a lutar pelo respeito ao meio ambiente, por modelos de desenvolvimento auto-sustentáveis, pelo controle e proibição dos transgênicos, pela segurança alimentar, pela reforma agrária. Porto Alegre lutou desde o seu começo, e sempre lutará pela democratização da mídia, sem a qual nunca haverá democracia no mundo.

Porto Alegre luta sempre para que os programas de governo se orientem por metas sociais e não financeiras, para que o acesso aos bens materiais e culturais sejam direito de toda a humanidade, e não apropriação de alguns ou objeto de políticas focalizadas e emergenciais, como prega o Banco Mundial e obedecem tantos governos.

Porto Alegre luta contra o neoliberalismo, para que outro mundo seja possível, um mundo que não seja comandado pelo dinheiro e transformado em mercadoria. Porto Alegre luta por um mundo sem guerras, em que os conflitos sejam decididos de forma democrática, negociadas, atendendo o direito de todas as partes envolvidas, pacificamente.

Pode-se ir a Porto Alegre e a Davos, mas não se pode construir pontes entre esses dois mundos incompatíveis entre si, entre os quais se situa um abismo infinito. Pode-se ir a Porto Alegre e a Davos, mas para constatar que são duas caras totalmente distintas da humanidade que estão em cada uma das duas cidades. E para que se possa optar entre a cara alegre, feliz, combativa, esperançosa de Porto Alegre, ou pelos colarinhos, as maletas 007 e os sorrisos posados para as câmaras de tevê dos executivos e seus escribas de Davos. Para quem visita as duas cidades, os Fóruns são um teste para os dois lados da alma que todos têm. Mas só se pode ficar com um deles: vender a alma ao diabo ou aderir entusiasticamente à luta contra todas as formas de exploração, de dominação, de discriminação, de alienação. Que venham todos lutar juntos pela emancipação humana em Porto Alegre!

* Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História". 

Fonte: Agência Carta Maior, 24/01/2005.


Desafio da Educação demandaria 11,6 milhões de novas vagas escolares em 15 anos

Para alcançar um padrão elevado de educação populacional até o ano de 2020, o Brasil precisaria criar 11,6 milhões de novas vagas escolares no ensino médio e superior, a um custo estimado de R$ 1,5 trilhão.  

Segundo o estudo, seria necessária a abertura de 330,8 mil novas turmas, 110,3 mil novas salas de aula e a contratação de 1,5 milhão de novos professores.  

A quinta edição do Atlas da Exclusão Social, que será apresentado no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, traz dados de 5.500 munícipios do país e a primeira a trazer um projeção de metas, com expectativa de prazo e custos, em oito áreas essenciais da sociedade.  

O critério comparativo adotado foi o da percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) investido por um país em estágio intermediário e outro avançado em cada área. No caso da educação, foram estudados os dados apenas do ensino médio (15 a 17 anos), comparados aos de Estados Unidos e Chile, e os do nível superior, comparados a Argentina e Estados Unidos.  

De acordo com os levantamentos do Atlas, o Brasil teria de ampliar a verba aplicada em 3,8% do PIB para o ensino médio (mais R$ 960 bilhoes) e em 6,8% (mais R$ 1,7 trilhão) para o ensino superior.  

"O Brasil avançou bastante no combate ao analfabetismo e no ensino fundamental. No entanto, há um déficit educacional grande se comparado a países com índices avançados e intermediários. Nós podemos dizer que situação é mais complexa no ensino superior, porque cusa mais caro em termos quantititativos", explica Alexandre Guerra, um dos pesquisadores do Atlas. Mas "o dado mais alarmante", em sua opinião, é o do ensino fundamental. "O Brasil hoje tem cursando o ensino médio 34,7% da sua população na faixa de 15 a 17 anos. Esse é um dado alarmante e não precisamos buscar um exemplo muito longe. O Chile tem 85% de sua população nessa faixa etária no ensino médio. Dá para você ver a distância do Brasil para outros países, de 34% para 85%".  

Ele explica que muito se fala da necessidade de uma agenda social e que o esforço dos 17 pesquisdores do Atlas da Exclusão foi justamente para tentar contribuir dimensionando as necessidades em números e metas. (Agência Brasil)

Fonte: Agência PontoEdu, 24/01/2005.


“Lula não pode tirar esperança do povo”
Leonardo Boff 
 

Teólogo, escritor e militante que participa do 1º Fórum Mundial de Teologia e Libertação, entre os dias 21 e 25, em Porto Alegre, Leonardo Boff analisa o governo do presidente Lula e o Fórum Social Mundial. E alerta: “Ou mudamos de prática ou vamos conhecer o destino dos dinossauros”. O catarinense nascido em Concórdia tornou-se um dos teólogos mais conhecidos do fim do século 20 ao enfrentar uma queda-de-braço com a cúpula da Igreja Católica em defesa dos princípios da Teologia da Libertação. Fiel ao que acreditava, recebeu dois castigos de “silêncio obsequioso” pelas autoridades do Vaticano. Em 1993, ele renunciou às suas funções como padre franciscano para manter seu pensamento engajado e ativo na luta pelos pobres e pela sobrevivência do planeta cada vez mais ameaçado pelos desequilíbrios ambientais, econômicos e éticos. Doutor em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique, Boff é militante engajado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de várias outros movimentos sociais.

Autor de mais de 60 livros, Boff estará em Porto Alegre participando da quinta edição do Fórum Social Mundial. Em entrevista, Boff fala sobre a situação atual da Teologia da Libertação, seus conflitos com o Vaticano, avalia os rumos do governo Lula e lança um desafio para os participantes do Fórum Social Mundial: “Até agora foi o tempo da semeadura. (...) Mas está chegando o tempo da colheita”.

- Qual o papel da Teologia da Libertação na proposta de construção de outro mundo, tal como é preconizada pelos participantes do Fórum Social Mundial? Como a teologia pode contribuir para a construção de alternativas ao atual modelo político-econômico hegemônico no mundo?

- A Teologia da Libertação já nasceu mundializada. Ela colocou no centro de suas reflexões os pobres do mundo, nos vários rostos com que eles se apresentam: os pobres econômicos, os negros, os indígenas, as mulheres, as minorias discriminadas. Por isso, a partir da América Latina, onde surgiu no fim dos anos 60 do século pas sado, ela se difundiu na África, Índia, Coréia, Paquistão e em grupos significativos da Europa e dos Estados Unidos. Isso chamou atenção do Vaticano, que começou a elaborar estratégias de contenção e até de condenação, como em 1984. Éramos muito articulados e de vez em quando organizávamos encontros internacionais de grande monta. Roma conseguiu nos isolar e impedir tais encontros. Só agora, no âmbito do Fórum Social Mundial, fora do controle eclesiástico, pudemos nos reencontrar. Desde o início se tratava de entender que a forma de organização social globalizada pela ordem capitalista e por seu grande instrumento que é o mercado representa a opressão maior que pesa sobre os pobres. Ela deve ser superada mundialmente a partir dos pobres mesmos, feitos sujeitos de sua história quando conscientizados e organizados. A Teologia da Libertação não se entende como palavra primeira, senão como palavra segunda. Primeiro vem a prática dos grupos e dos movimentos de toda ordem, inclusive armados e engajados em processos revolucionários, como na Nicarágua e em El Salvador. A partir desta experiência religiosa e política se fez uma reflexão sistemática que se chamou Teologia da Libertação. A contribuição maior que ela deu e pode dar é fazer com que o cristianismo, presente na cultura e nas bases, deixe de ser fator de legitimação da presente ordem para se transformar em motor de mobilização para a mudança. O cristianismo foi cooptado pelas elites do poder, que o fizeram conservador e até reacionário, quando no seu ideário e na prática de seu fundador, Jesus de Nazaré, sempre foi revolucionário.

- Como está a relação hoje da Teologia da Libertação com o Vaticano e com a linha oficial da Igreja Católica? As tensões e divergências foram superadas ou equacionadas?

- O Vaticano em 1984 e depois em 1986 produziu dois documentos sobre a Teologia da Libertação. Um condenando-a e outro assimilando-a por um processo de espiritualização no quadro da institucionalidade da Igreja. Com esses dois instrumentos enquadrou todos os teólogos, depondo-os de suas cátedras, exilando-os ou simplesmente condenando-os. E se deu por satisfeito e considera que desbaratou a Teologia da Libertação. Ocorre que as questões que fizeram surgir esta teologia continuam e se agravaram. Então esta teologia continua, embora com menos visibilidade social. Por outra parte, a Igreja oficial assumiu grande parte das intuições desta teologia, sem confessá-lo, como a centralidade dos pobres, a dimensão pública e política da fé, a questão da justiça a nível internacional e a compreensão dos direitos, principalmente dos pobres. Esta teologia continua especialmente num nível ecumênico e, por isso, menos sujeita a repressão, especialmente, na leitura popular da Bíblia lida sempre no contexto da realidade social brutal em que os pobres vivem. Daí haver resistência, denúncia profética, engajamento político nos sindicatos e nos partidos de raiz popular. Cabe lembrar que uma das pilastras do PT se encontra na Igreja e na Teologia da Libertação. Em razão disso várias figuras importantes do atual governo vêm da Igreja da Libertação e da Teologia da Libertação como Frei Betto, a ministra Marina Silva, os ministros Fritsch, Rosseto, Luiz Dulci, Gilberto Carvalho e outros.

- Qual sua avaliação da atual situação social do Brasil após dois anos de governo Lula?

- Na ótica da libertação, a atual política é insatisfatória, contraditória. O pobre não tem a centralidade prometida. Ele continua objeto de políticas compensatórias e não substantivas e estruturais. O eixo articulador de tudo é a economia de corte capitalista, neoliberal e o que é pior, financeira e especulativa. Esperávamos que um filho da tribulação viesse começar um processo de libertação no sentido de instaurar no centro do poder uma política voltada para as grandes maiorias. Essa ruptura necessária não ocorreu. Por isso somos obrigados a distinguir Lula como pessoa, que seguramente se entende como representante dos oprimidos, e o Lula presidente, neocooptado pelo capital e pelo neoliberalismo que absorveu a ilusão apresentada pelos pontífices deste sistema como verdade e meio eficaz para a redenção do Brasil: superávit primário alto, juros elevados, controle rígido da inflação e a economia voltada para a exportação. Ele, suponho eu, mantém os ideais. Mas escolheu meios e pessoas que, inadequadas a este sonho, antes o tornam cada vez mais distante e até o destroem. O efeito pior que este estilo de ilusão oficial está produzindo no meio do povo é a despolitização, a crença de que a política é enganação mesmo. Por isso já há desilusão e também muita raiva. Se você oferece a estrela vermelha do PT ninguém a quer receber. Lula pode desiludir muita gente mas não pode fazer o povo perder a esperança e frustrá-lo no sonho que ele ajudou a sonhar e a formular politicamente. Mas continuo acreditando no Lula pessoa carismática que o salvará da execração histórica.

- O senhor tem escrito sobre a necessidade de uma nova espiritualidade, que caminhe para uma ética da compaixão e do cuidado, como uma condição de proteção da humanidade. Considerando a atual conjuntura internacional, o senhor acha que estamos caminhando nesta direção ou estamos nos afastando dela?

- A atual situação torna mais urgente a demanda por uma nova espiritualidade e uma ética da compaixão e do cuidado para com a vida. Vivemos tempos de barbárie coletiva como jamais na história, pois mais da metade da humanidade vive em condições de miséria quando teríamos meios econômicos e técnicos de impedir esta tragédia. Mas não o fazemos pela voracidade do capital mundial que se rege estritamente pela competição e não pela cooperação. Vivemos sob um sistema sem coração que sequer se comove diante do desastre no Sudeste da Ásia. Ao invés de perdoar a dívida dos países atingidos, mantém a dívida, apenas protelou os prazos do pagamento (moratória consentida). O mesmo tratamento é feito com a Terra e seus recursos. Ou mudamos de prática ou vamos conhecer o destino dos dinossauros. Quando falo de espiritualidade não penso com categorias religiosas, mas antropológicas e humanísticas. Espiritualidade é uma atitude e uma orientação de vida caracterizada por valores não materiais que dão sentido à vida. Assim, a espiritualidade é construída sobre a sensibilidade para com o outro, a solidariedade, a compaixão, a convivência pacífica com o outro. Sobre tais valores se construíram no passado as culturas e se fizeram os pactos sociais. Hoje não deve ser diferente. Como se depreende, daí se deriva um padrão de comportamento, uma ética mínima que nos permite conviver sem nos devorarmos.

- Qual o caminho, na sua avaliação, que deve ser tomado pelo Fórum Social Mundial? Deve se limitar a trocar experiências e elaborar diagnósticos sobre o atual estado de coisas no mundo ou tem que partir para a elaboração de propostas alternativas concretas e estratégias de ação para torná-las realidade?

- Creio que até agora foi o tempo da semeadura, da elaboração de uma consciência coletiva, de avaliação das forças de que dispomos e de articulação dos grupos construindo redes. Mas está chegando o tempo da colheita. Creio que, talvez não nesse ainda, mas nos próximos fóruns devam ser tiradas medidas concretas, duas ou três, não mais. Eu não saberia quais seriam, pois dependem do nível do consciência alcançado, do consenso mínimo e da capacidade de viabilização mundial. Devem ser coisas que realmente mobilizem multidões e possam encontrar apoio também em gente insatisfeita do próprio sistema. Questão premente que vejo: a falta de água potável em nível mundial que pode levar nos próximos três a cinco anos a crises gravíssimas em muitos países. Por ser um bem escasso, há uma corrida mundial pela privatização da água, que, por ser um bem natural, vital e insubstituível, não seria passível de virar mercadoria. Então: deverão ser feitas manifestações fantásticas contra tais empresas. E urgir um pacto social mundial ao redor da água e impedir que esse recurso entre nos negócios e nos mercados do mundo inteiro. Outra questão é o aquecimento crescente da Terra com conseqüências que se fazem notar no mundo todo e ameaçam a biosfera. Poderá ser feita uma campanha sistemática contra a política do governo norte-americano, que não quer assinar o protocolo de Quioto. Quem sabe boicotar todo tipo de maquinário norte-americano ligado à emissão de carbono na atmosfera? Outro tema é contra a guerra. Não basta ser pela paz. Importa ser contra a guerra, a grande arma que o sistema imperante usa para se impor globalmente. Aqui se deveria de tempos em tempos encher as praças mundiais gritando contra a guerra e pela paz, cercar os quartéis, os aeroportos militares, submeter os militares a um diálogo forçado e permanente. E por aí vai.

Fonte: Jornal do Brasil, Marco Aurélio Weissheimer, 24/01/2005


Fórum de Davos incorpora o discurso de Porto Alegre
 

"Os líderes mundiais estão quebrando suas solenes promessas de enfrentar os problemas globais, da pobreza à paz, passando pela proteção do meio ambiente". Em qual dos dois fóruns que começam hoje, o de Davos e o de Porto Alegre, foi produzida a frase acima?

Se você respondeu Porto Alegre, poderia até ter acertado, mas foi em Davos, o grande convescote da elite global.

Trata-se de relatório produzido pelo Fórum Econômico Mundial, a instituição que organiza os seus encontros anuais, todo mês de janeiro, em Davos, na Suíça, a propósito das Metas do Milênio, os objetivos fixados por chefes de governo de quase todos os países para dar uma melhorada no estado do mundo.

O relatório deu notas, de zero a dez, para as ações concretas que trouxessem as metas da retórica para a vida real. Resultado: em nenhuma das seis metas, a nota do planeta chegou a mais que quatro (na média, foi 3).

"Em todas as áreas, de educação à fome, da paz aos direitos humanos, a humanidade está fazendo menos da metade do que é necessário para construir um mundo mais estável e próspero", atacou Ann Florini, pesquisadora do Instituto Brookings dos Estados Unidos e diretora da "Iniciativa sobre a Governança Global", um projeto do fórum que monitora o desempenho dos governos nas áreas cobertas pelas metas do milênio.

Como aconteceria em Porto Alegre, não faltaram críticas ao empresariado, mas elas foram mais matizadas do que, com certeza, ocorreria na capital gaúcha: "Alguns homens de negócio tomam suas responsabilidades (sociais) a sério, e o relatório aponta muitas dessas histórias. Mas tais empresas representam uma pequena fração do setor privado", lamenta Florini.

No capítulo "pobreza e fome", dois temas de preferência tanto de Porto Alegre como do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o relatório é impiedoso:

"Se a presente tendência continuar, ainda haverá cerca de 600 milhões de pessoas passando fome em 2015, muito longe da meta", diz Joachim von Braun, diretor-geral do Instituto de Pesquisa sobre Política Alimentar Internacional e responsável por esse quesito no relatório geral.

Mais: "Para alcançar a meta (reduzir à metade o número de pessoas que passam fome e são muito pobres), seria preciso acelerar os programas mais de 12 vezes".

Von Braun não menciona especificamente o Brasil no seu relatório, mas afirma que "a América Latina e o Caribe não conheceram declínio nenhum no número de pessoas vivendo em pobreza absoluta".


"Melhor chance"

Em conversa com a Folha, no entanto, o pesquisador foi algo mais otimista, ao apontar a coalizão entre Brasil e Índia, nas negociações comerciais globais, liderando o G20, como fator positivo do ano passado.

O raciocínio é o de que a nova coalizão poderá forçar concessões dos países ricos na área agrícola, o que, para von Braun, é fundamental no combate à pobreza e à fome.

Muito mais otimista sobre o Brasil foi Jeffrey Sachs, que a revista "Time" já chamou de o economista mais famoso do mundo e, hoje, coordena os trabalhos das Nações Unidas para concretização das metas do milênio.

Sachs disse à Folha, que o fato positivo a respeito do Brasil é que "ele não foi à bancarrota, ao contrário do que dizia o pânico que se espalhou no mercado financeiro" (na campanha eleitoral de 2002). "Era non-sense, mas havia pânico", diz Sachs.

Para ele, o Brasil "encontra-se na mais confiável trilha para o desenvolvimento sustentado em um quarto de século". Desenvolvimento sustentado é o caminho óbvio para a redução da pobreza.

Mas Sachs, como nove de cada 10 analistas, tem um porém: "O extremismo monetário pode desfazer essa chance", em referência à política de juros altos praticada pelo governo Lula.

Se poupa o Brasil, Sachs não faz o mesmo com o resto dos países e com o empresariado. Ele quer colocar na agenda a palavra "escala", no pressuposto de que é um linguajar fácil de entender para homens de negócio – a clientela básica de Davos.

Explica: "A escala da resposta não é proporcional à escala do problema".

E usa o tsunami, o desastre natural do mês passado na Ásia, para dar uma idéia melhor da escala do problema: "Só a malária e só na África mata mais gente por mês do que o tsunami matou".

Já Richard Samans, diretor-gerente do Instituto Global para a Parceria e a Governança (outra iniciativa do Fórum de Davos), diz que "2005 é o ano de fazer ou quebrar em relação às metas do milênio. Se a comunidade internacional vai levá-las a sério, precisa aplicar muito mais esforço e parceria do que o fez até agora".

Fonte: Folha Online, Clóvis Rossi, 26/01/2005


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