Política social de
alto risco
A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99 que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros (pretos e pardos na classificação do IBGE), indígenas e outras minorias. Estas cotas serão aplicadas linearmente em todos os cursos das universidades federais. Por que essa medida é polêmica? Uns dizem que vai reduzir a qualidade de ensino e pesquisa das universidades federais. Pode ser. Mas o que queríamos sugerir é que esta lei traz conseqüências que vão muito além das portas das universidades. Ela implica um projeto radicalmente novo de nação. A lei, se aprovada, irá instituir, no âmbito federal, o negro como figura jurídica, o que já ocorreu em 2001 no Estado do Rio de Janeiro, com a aprovação da lei de reserva de vagas para as universidades estaduais votada por aclamação pela Assembléia Legislativa. O que significa instituir o negro como entidade jurídica? Significa uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora "raça" e pune o racismo como crime inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos. Se passar essa lei, os cidadãos serão divididos em duas "raças" com direitos distintos de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias. A política de cotas raciais, como vem sendo denominada, institui, portanto, uma sociedade dividida entre "brancos" e "negros". Em outros lugares do mundo esse tipo de engenharia social trouxe mais dor do que alívio para os problemas a que visava solucionar. Há uns que dizem que quem é contra as cotas apenas defende os seus privilégios. A política de cotas raciais em nada vai afetar as elites endinheiradas do país. Estas continuarão mandando os seus rebentos para os cursos pré-vestibulares mais badalados, e encaminharão a sua prole menos competitiva para universidades no Primeiro Mundo. As cotas são destinadas para as camadas médias baixas, que só agora, com a expansão do ensino de segundo grau, podem sonhar em ver os seus filhos entrarem na universidade. Mas é justamente essa classe média ascendente aquela em que gentes de todas as cores convivem nas mesmas famílias e vizinhanças. Queremos cindir esse universo social em duas "raças"? Dirão os proponentes dessa política que o país já é dividido na prática, na realidade, no dia-a-dia. Mas é justamente contra isso que o anti-racista deve lutar. A luta contra o racismo deve ser prioritária, dever de todo o cidadão. No entanto, o remédio que está sendo ofertado em uma bandeja de prata é um remédio barato e arriscado, pois o seu custo social pode ser muito alto. É uma política de curto prazo cujas conseqüências serão sentidas no longo prazo. Outros defensores das cotas acusam aqueles que têm dúvidas de racistas, evidentemente no intuito de calar a crítica. Mas as nossas críticas em relação à política de cotas raciais partem de um anti-racismo que se espanta com a forte correlação entre cor escura e pobreza, e que se revolta perante o preconceito e a discriminação, velados ou não, que contribuem para tal desigualdade. Um anti-racismo que percebe com toda clareza que a discriminação e o preconceito derivam das representações sociais que hierarquizam entidades denominadas "raças". Por isso, nos sentimos na obrigação de lutar contra essas representações, uma vez que é a persistência delas que possibilita a continuidade da discriminação e, portanto, da desigualdade.
O debate sobre as
cotas é um debate sobre o Brasil. O que está em pauta são dois projetos de
combate ao racismo: um pela via do fortalecimento das identidades "raciais"
e, em última análise, do "genocídio" dos "pardos", "caboclos", "morenos"
etc.; outro pela via do anti-racismo que procura concentrar esforços na
diminuição das diferenças de classe e em uma luta contínua contra as
representações negativas atribuídas às pessoas mais escuras. Esses projetos
também são projetos distintos de nação. Um é o ovo de serpente de uma nação
pautada em diferenças "étnicas/raciais". O outro aposta em uma nação de
cidadãos iguais quanto a direitos, independentemente de "raça", "etnia",
gênero, orientação sexual, etc., salvaguardando o direito de cada indivíduo
a seguir o estilo de vida que melhor lhe convier. Enfim, argumentamos que
não se pode acabar com o racismo com uma política que entroniza a "raça".
Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a "raça", cria
justamente aquilo que quer ver destruído. Merecemos melhor solução para os
graves problemas que nos assolam. * Peter Fry e Yvonne Maggie são professores do Departamento de Antropologia Cultural IFC/UFRJ. Fonte: O Globo, 11/04/2006. |