CRÔNICA - LULA MIRANDA
Existem homens – e esse cronista é um desses homens – que sentem as pernas
Em entrevista dada a Paulo Henrique Amorim no final de outubro, Mauro Santayna, colunista da Carta Maior, disse, com rara propriedade: “No meu tempo, os jornais eram solidários com o povo, hoje os jornais são solidários com os banqueiros. Vou ser mais duro: são os jornalistas. Poucos jornalistas conseguem manter o sentimento de solidariedade com o povo brasileiro”. Foi bastante reconfortante e animador ler essas falas de Santayana, pois há muito venho fazendo essa mesma reflexão. Entretanto, pelo meu diagnóstico, o que está em falta no mercado (e nos espíritos), além, claro, da solidariedade, é a boa e velha dignidade e um pouco de compaixão – isso não só nos jornalistas em particular, mas nos membros da nossa elite em geral. E creio não estar de todo errado nesse meu diagnóstico. Não seria o caso, esclareço de antemão, de devolver os jornalistas aos bancos escolares, pois essas coisas não se aprendem na escola – pelo menos não somente nas escolas e universidades. Talvez, um bom professor de filosofia e ética ajudasse um pouco, mas... Definitivamente, existem coisas que não se aprendem na faculdade – seja de jornalismo ou qualquer outra. A propósito, Santayana não cursou faculdade de jornalismo. Não quero dizer com isso que o estudo não seja necessário – ao contrário. Por que então os jornalistas em particular (mas, repito, isso se estende às demais profissões) distanciaram-se tanto de conceitos tão nobres e caros, e que são, de modo intrínseco, necessários ao pleno exercício de um ofício? As causas desse apartamento? As mais diversas. Ouso citar algumas (o leitor deve ter em mente tantas outras): arrivismo, despreparo (para a vida, não só para o exercício profissional), individualismo, falta de compromisso com uma ética humanista, mau-caratismo etc. Estarreceu-me e, mais do que isso, encheu-me de vergonha, por exemplo, a falta de dignidade da maioria dos jornalistas de São Paulo (e também do RJ) que omitiram da opinião pública – pois eles sabiam mais do que ninguém – informações acerca do desastre que foi o governo Alckmin em São Paulo. Graças a esses jornalistas, corremos nesse último pleito (não mais) o risco de vermos eleito à Presidência da República um homem medíocre que quase levou o estado de São Paulo ao mais completo descalabro – vide os episódios das inúmeras rebeliões nas Febem superlotadas, as ondas de violência e pavor causadas pelo PCC, o descaso com a educação, as chacinas de bandidos e cidadãos inocentes, seja à luz do dia ou na calada da noite, seja na periferia ou no chamado centro expandido da grande São Paulo. Nunca tive tanta vergonha do jornalismo praticado por essas bandas de cá. Sim, faltou, principalmente, dignidade aos jornalistas. Mas faltou também solidariedade e compaixão para com o povo – não só para com o paulista, mas para com o brasileiro. Aos jornalistas faltou – e ainda falta –, também, compaixão. Faltou sofrer com o povo brasileiro. Sofrer com esse povo que sofre (e, muitas vezes, se acaba) nas quilométricas filas do SUS, do INSS. Faltou sofrer com os analfabetos (completos ou funcionais). Faltou sofrer com os que sofrem as amarguras e selvageria dos presídios e das Febem. Faltou sofrer com os que sobrevivem do lixo. Faltou um pouco de comiseração, piedade. Existem homens – e esse cronista é um desses homens – que sentem as pernas fraquejar ao verem um outro homem alimentando-se de restos de lixo nas calçadas da metrópole mais rica do país; ao ver uma senhora, seguramente com mais de 70 anos, magra e alquebrada (muito provavelmente, tuberculosa), catando latas de alumínio nas lixeiras das esquinas, para conseguir pagar, quem sabe, o almoço do dia. As pernas fraquejam como se fosse impossível prosseguir, seguir em frente. Portanto, por essas e outras, para esse cronista, mas não para a maioria dos jornalistas decerto, o bolsa-família é, indubitavelmente, um importante instrumento na garantia de uma renda mínima ao cidadão, e não algo que possa ser rotulado, de modo pernóstico e maledicente, de “bolsa-esmola”. Ou será que jornalistas já não podem ser considerados homens (ou mulheres) porque perderam características essenciais à humanidade, próprias do que é humano? Porém, para todos efeitos, fica aqui registrado esse pequeno relicário com algumas palavras esquecidas (por muitos, não só pelos jornalistas), palavras que traduzem sentimentos e conceitos relegados ao olvido. Palavras que devem ser resgatadas do limbo dos dicionários e trazidas de volta à vida. Que necessitam voltar a ser conceitos, sentimentos cheios de viço e verdade. Que precisam voltar a servir como baliza a nos orientar o rumo, a nos dar um sentido. Como? Você está sentindo falta de outras palavras nesse meu “relicário”. Decerto que sim. Faltou enumerar – e por isso desde já penitencio-me –, dentre outras, por exemplo, a fundamental palavra “fraternidade”. Mas essa você vai ter que, à guisa de exercício, buscar nas páginas de um dicionário qualquer. E, após resgatá-la, procure fazer um bom uso dela – antes que entre de vez em extinção.
Fonte: Ag. Carta Maior, 28/11/2006. |