Ouvindo cores
Massimo Barberi*

 

Definida como contaminação dos sentidos, a sinestesia não é doença, mas um fenômeno sensorial quase sempre acompanhado de memória e criatividade excepcionais


A sinestesia é um fenômeno de contaminação dos sentidos em que um único estímulo - visual, auditivo, olfativo ou tátil - pode desencadear a percepção de dois eventos sensoriais diferentes e simultâneos.

 

Quando escrevo uma equação na lousa vejo os números e as letras de cor diferente. E me pergunto: que diabos meus alunos vêem?" A frase é do americano Richard Feynman, Nobel de Física em 1965. Ele faz parte de um grupo de pessoas para quem o número dois pode ser amarelo, a palavra carro tem gosto de geléia de morango e a nota fá evoca a imagem de um círculo, por exemplo. Essas são algumas das experiências sensoriais que povoam o cotidiano das pessoas com sinestesia. São sensações difíceis de imaginar, mas tremendamente reais para quem as vive, tanto que os sinestésicos pensam que todas as pessoas têm as mesmas percepções.

Eles raramente sabem que são dotados de uma característica particular, mas não tardam muito a descobrir sua memória prodigiosa e seu extraordinário potencial criativo. Estima-se que o fenômeno atinja uma em cada 300 pessoas.

A sinestesia é um fenômeno de contaminação dos sentidos em que um único estímulo - visual, auditivo, olfativo ou tátil - pode desencadear a percepção de dois eventos sensoriais diferentes e simultâneos. Há pessoas, por exemplo, que toda vez que sentem um odor (real), escutam certo som (imaginário). Outros enxergam em cor uma letra do alfabeto escrita com tinta preta. Não se trata de um transtorno temporário na maioria dos casos, ainda que haja algumas raríssimas exceções; por isso um dos principais critérios para o diagnóstico da sinestesia é sua estabilidade ao longo do tempo. Geralmente a associação entre estímulo e percepção ocorre apenas em um sentido: quem vê a cor vermelha (imaginária) toda vez que ouve nota dó (real) não escuta a mesma nota (imaginária) quando vê qualquer coisa vermelha (real).

Totalmente involuntária, a sinestesia não pode ser controlada, nem induzida na ausência do estímulo específico. E é justamente a incapacidade de controlá-la que a distingue das chamadas sinestesias cognitivas, que se caracterizam por associações de idéias (objetos, conceitos, cores, sons) e dependem, na maioria das vezes, de experiências artísticas individuais e de condicionamentos culturais.

Alguns exemplos de sinestesia cognitiva são pensar num campo florido enquanto se ouve As quatro estações de Vivaldi, ou desfrutar antecipadamente o sabor de uma maravilhosa torta que se vê na vitrine; em ambos os casos a pessoa sabe que não está no campo florido e que é preciso comprar a torta. Já a experiência sensorial induzida pela verdadeira sinestesia é percebida concretamente, como se fosse real.

SINTOMA POSITIVO

Segundo o psicólogo Jamie Ward, da Universidade de Londres, a sinestesia não é doença. "O que a distingue da maioria dos transtornos psiquiátricos ou neurológicos é o fato de os sinestésicos serem dotados de um sintoma positivo, isto é, de uma característica ausente na população geral. Os distúrbios geralmente se caracterizam pela ausência ou pelo comprometimento de uma função, como a afasia e a amnésia", diz.

Portanto, os sinestésicos são pessoas absolutamente normais, que não manifestam problemas cognitivos ou outras  disfunções. Alguns estudos conduzidos pelo médico Richard Cytowic, pioneiro na pesquisa da sinestesia, indicam que a memória e a criatividade dos sinestésicos são superiores às da média da população. Por outro lado, o senso de orientação  não é tão bom assim. A maioria dos sinestésicos é canhota e um percentual significativo confunde direita e esquerda. Seu ponto forte são as faculdades mnemônicas, particularmente a memória declarativa: os sinestéticos se lembram de muitos números de telefone, datas, senhas, fatos e eventos. Também é comum que se recordem com perfeita precisão de longos diálogos de filmes, trechos de livros e instruções verbais. O que não se sabe ainda, entretanto, é se essa capacidade excepcional se deve à sinestesia propriamente dita ou a algum fenômeno correlato. 

O primeiro sinestésico registrado na literatura médica foi uma criança de 3 anos e meio em 1922. Até hoje não se sabe ao certo em que idade o fenômeno se manifesta, muito menos se as percepções cruzadas na infância são as mesmas na idade adulta. Nenhum sinestésico se lembra do momento exato em que começou a ver a letra A sempre pintada de vermelho ou a nota dó exalar um perfume de rosas. Segundo o professor de psicologia da Universidade de Trieste Walter Gerbino, durante o período de desenvolvimento da aprendizagem perceptiva os elementos do sistema sensorial se associam, de modo estável e regular, a estímulos específicos.

"Não sabemos que associações são apropriadas ou não. A permanência das experiências sinestésicas na fase adulta pode ser explicada como um processo de seleção diferenciada das respostas adequadas aos estímulos", explica o psicólogo. Outra hipótese seria a origem genética, que não exclui a primeira, ao contrário, a complementa. Não é raro haver mais de um sinestésico na mesma família.  

Além disso, o fenômeno é três vezes mais freqüente em mulheres. Alguns pesquisadores cogitam a participação do cromossomo X na transmissão dessa característica.

Ainda não há um teste inequívoco para  diagnosticar a sinestesia, em parte porque as pesquisas sistemáticas na área tiveram início há poucas décadas. Um dos testes mais usados atualmente, conhecido como teste da genuinidade (TG), foi desenvolvido pelo professor de psicopatologia do desenvolvimento Simon Baron-Cohen, da Universidade de Cambridge. O TG mede a estabilidade da relação entre estímulos e respostas ao longo do tempo: uma seqüência de centena de estímulos (palavras, cores, sons, odores) é apresentada ao possível sinestésico; em seguida suas respostas sensoriais (cores, formas etc.) são registradas. O teste é repetido em intervalos regulares, durante meses e até mesmo anos. A consistência das respostas entre os sinestésicos geralmente é de 70%; nos indivíduos comuns fica por volta dos 40%. Outro teste se baseia na pesquisa visual: no interior de uma matriz de letras em branco e preto estão "escondidas" outras letras que o sinestésico diz ver coloridas.

Eles costumam encontrá-las mais rapidamente que os não-sinestésicos. O teste também permite explorar o conflito de cores suscitado por uma letra azul quando, por exemplo, uma vermelha é avistada. Diante de um "A" pintado de azul, o sinestésico que sempre o viu vermelho leva mais tempo para reconhecê-lo - tal incongruência gera atraso no processamento da informação, segundo os pesquisadores.

As tecnologias de imageamento cerebral, principalmente a ressonância magnética e a tomografia por emissão de pósitrons, deram uma guinada significativa nas pesquisas da área. "Esses exames permitem registrar as variações no fluxo sangüíneo nas diferentes regiões do cérebro e apontar quais delas são ativadas em conseqüência de estímulos diferentes", explica Pietro Pietrini, professor de bioquímica clínica e molecular da Universidade de Pisa. Estudo publicado em 2006 na revista Cortex revelou que as áreas do córtex visual encarregadas da percepção das cores (chamadas V4 e V8) ativam-se de modo específico quando um sinestésico lê uma seqüência de letras. Para Pietrini, esse resultado confirma a hipótese segundo a qual a experiência sinestésica é real porque o sinestésico de fato percebe estímulos que não existem no universo perceptivo das pessoas comuns. Outro caso descrito na mesma publicação não deixa dúvidas. J. F., 52 anos, era sinestésico desde pequeno e visualizava cores quando ouvia os nomes dos dias da semana.

Apesar de ficar cego aos 42 anos, continuava a experimentar exatamente a mesma sensação quando alguém lhe dizia segunda-feira ou domingo, por exemplo. O neurologista Megan Steven, da Faculdade Dartmouth, em New Hampshire, pesquisou o cérebro de J. F. por meio de ressonância magnética funcional. As imagens mostraram, mais uma vez, a ativação das áreas V4 e V8. "Mesmo que ele não veja as cores de fato, seu cérebro continua a vê-las em resposta a certas palavras", conclui o pesquisador.

 

Para conhecer mais 

  • Sinestesia, arte e tecnologia: fundamentos da cromossonia. Sérgio Roclaw Basbaum. Editora Annablume, 2002.
     

  • Cognitive neuroscience perspectives on synaesthesia. Jason B. Mattingley e Jamie Ward (orgs.), em Cortex, edição especial nº 2, vol. 42, 2006. 

 

* Massimo Barberi é jornalista científico  

- Tradução de Neury Lima 

Fonte: Rev. Mente&Cérebro, ed. n. 168, jan/2007.


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