Os dois conclaves: Habemus Papam! Habemus Jurem!
Flávio Aguiar*

 

Em Roma, o conclave escolheu Joseph Ratzinger, o “braço direito” de João Paulo II, e ponhamos “direito” nisso. No Brasil, o conclave do Copom vai escolher a taxa de juros. Em ambos os casos, durma-se com um silêncio sepulcral desses que cai sobre as esperanças do mundo.
 

Começam os dois conclaves. Num lado do mundo, em Roma, pouco mais de uma centena de cardeais fecham-se na Capela Cistina para um dos processos eleitorais mais fechados do mundo. Parece a reunião de generais que escolhia o presidente do Brasil nos idos da ditadura militar, embora essa admitisse também uma espécie de voto pelo correio e uma ausculta à oficialidade superior nas casernas. Mas o que contava mesmo estava lá, reunido em Brasília. Do outro lado, a oeste e ao sul, na mesma Brasília dos antigos generais, começa outro conclave fechadíssimo. É a reunião do Copom (Comitê de Política Monetária) que vai definir a taxa de juros...

Somente uma instituição duplamente milenar, como a Igreja Católica, pode realizar este conclave fechadíssimo, dispensando a indispensável mídia em qualquer outra reunião dessa importância para o mundo. Somente uma instituição fechadíssima como o Copom, braço armado do mais fechado ainda CMN (Conselho Monetário Nacional), pode realizar seu conclave fechadíssimo, dispensando o indispensável povo de quem toda a soberania deveria, em tese, emanar. Somente uma instituição herdeira do espírito dos generais, renovado pela exclusividade dos interesses e dos diktats do capital financeiro, pode se fechar em tamanhas copas.

No conclave milenar, alega-se esperar a iluminação do Espírito Santo: o novo Papa é eleito por Deus; a votação termina, portanto, em 1 a 0, seja qual for a votação terrena que abre o caminho para a manifestação da vontade divina. É claro que no processo temporal (a votação na Capela Cistina) fatores sociais, culturais, acertos, percepções de tendências, também contam na decisão.

Já no Planalto Central invocam-se espíritos poderosos, deuses, Molochs, Leviatãs, Baais, do mundo conservador globalizado: o “sacrossanto superávit primário”, em nome do qual calcinam-se programas sociais; o “animus exportationis”, que exige unilateralmente o sacrifício do poder aquisitivo interno de milhões e milhões de pessoas para garantir o balanço de pagamentos que garante o pagamento dos juros internacionais; e o “habemus altum jurem”, que garante a contenção brutal das expectativas de qualidade de vida dos mesmos milhões e milhões de brasileiros e brasileiras em nome da atração de capitais, que logo a seguir se volatilizam com seus lucros, indo pousar seus benefícios em outras plagas ou nas contas privadas dos altos rentistas nacionais, protegidos por um dos sistemas de impostos mais iníquos do mundo, que faz que os pobres paguem muito e os mais abastados, muito pouco. E podemos ter a certeza de que outros fatores sociais, culturais, políticos, são varridos do mapa pela pedagogia do mercado financeiro. Todos os fatores? Não. Os interesses rentistas sempre serão abençoados, porque deles é o reino dos céus, pelo menos os paraísos terrenos, cada vez mais cercados por seguranças e guardas armados até os dentes.

No conclave romano foi anunciado, com o nome de Bento (Benedito) XVI, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, muito bem qualificado como o “braço direito”, e ponhamos “direito” nisso, de João Paulo II, neste 19 de abril de 2005. Continuarão as perseguições à Teologia da Libertação, o afastamento das causas sociais, o divórcio entre a igreja das cúpulas e a Igreja dos povos, aquela fiel à tradição autoritária herdeira do Império Romano, esta fiel ao espírito dos redatores dos Evangelhos, que escreveram o destino de um Cristo que tinha aspiração à universalização da esperança.

Dentro de algum tempo, o Copom anunciará a sua taxa de juros. Seja ela qual for, meio ponto pra cá, meio ponto pra lá, sabemos que ela continuará a expressar a negação do espírito republicano. Lá, a fumaça branca da escolha expressou apenas a fuligem autoritária que permanece. Aqui, mesmo uma decisão que revertesse, no quadro institucional presente, a expectativa de que continuemos a padecer em nosso vale de muitas lágrimas e poucas esperanças, pouco significaria em termos da transição republicana que o país precisa, um dia, concluir. Por ora, sejam quais forem as decisões, a soberania popular e o povo perderão de 10 a 0. Como em Roma os povos do mundo também perderam, como era esperado.
 

* Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.

Fonte: Ag. Carta Maior, 20/04/2005.


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