Entrevista: Roberto Abdenur
O
diplomata diz que a política externa do governo Lula é contaminada pelo
Veja – O senhor está se aposentando depois de 44 anos de trabalho no Itamaraty e parece muito incomodado com a situação da diplomacia brasileira. Abdenur – Existe um elemento ideológico muito forte presente na política externa brasileira. A idéia do Sul–Sul como eixo preponderante revela um antiamericanismo atrasado. Isso tem se manifestado dentro do Itamaraty de diversas maneiras. Está havendo uma doutrinação. Diplomatas de categoria, não apenas jovens, são forçados a fazer certas leituras quando entram ou saem de Brasília. Livros que têm viés dessa postura ideológica. É uma coisa vexatória. O Itamaraty não é lugar para bedel. Veja – De que outras maneiras a doutrinação ideológica se manifesta no Itamaraty? Abdenur – Há um sentimento generalizado de que os diplomatas hoje são promovidos de acordo com sua afinidade política e ideológica, e não por competência. Eu vi funcionários de competência indiscutível ser passados para trás porque não são alinhados. Há intolerância à pluralidade de opinião. O Itamaraty sempre teve um prestígio singular na diplomacia internacional pela continuidade da política externa, pelo equilíbrio, pela excelência de seus quadros e pelo apartidarismo. O Itamaraty precisa resgatar o profissionalismo a salvo de posturas ideológicas, de atitudes intolerantes e de identificação partidária com a força política dominante no momento. Veja – Essa situação que o senhor descreve já aconteceu antes? Abdenur – Nunca, nem na ditadura militar. De 1964 até o início do governo Ernesto Geisel, na primeira década do regime militar, adotou-se uma política externa simplória, baseada na ideologia anticomunista. Isso foi imposto à força pelos militares. Mas nunca houve tentativa de convencer os diplomatas dessa ideologia. O rumo foi imposto e se exigia o seu cumprimento, mas não se cobrava dos profissionais nenhuma afinidade com a ideologia que definia aquele rumo. Do governo Geisel até o fim do governo FHC, a pressão ideológica desapareceu. Agora, infelizmente, as decisões são permeadas por elementos ideológicos. Veja – A difusão dessa política externa ideologizada é responsabilidade do ministro Celso Amorim ou do secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães? Abdenur – Samuel, Celso e eu fomos grandes amigos, e eu tenho recordações muito gratas do tempo em que fomos amigos. Veja – O senhor disse que foi amigo de Celso Amorim e de Samuel Guimarães. Com o verbo no passado. Abdenur – Fica no passado. Fomos grandes amigos. Veja – O senhor ficou magoado com a maneira como saiu da embaixada de Washington? Abdenur – Acho que já falei demais. Veja – Substantivamente, houve pontos positivos na política externa brasileira no primeiro mandato do presidente Lula? Abdenur – Sim, sem dúvida. O Brasil engatou uma parceria com Índia, Japão e Alemanha para obter uma cadeira definitiva no Conselho de Segurança da ONU. É luta válida, que vai trazer resultados. Acho muito bom o que o governo tem feito para abrir novas frentes de comércio com países árabes, com o Sudeste Asiático, com a Ásia Central, com a África. Acho muito positiva também a forma inovadora de trabalho com o Ibas (grupo que reúne Índia, Brasil e África do Sul). É a primeira vez que três países grandes, de três continentes diferentes, se unem para buscar iniciativas conjuntas. Acho que o Brasil tem conduzido com amplo equilíbrio e proficiência as negociações da Rodada de Doha. O Brasil é um jogador decisivo, tem uma atuação de liderança no G20 muito importante. Há ainda a questão do Haiti, onde lideramos pela primeira vez uma ação de países latino-americanos em favor da paz. Enfim, houve acertos... Veja – E os erros substantivos? Abdenur – A minha maior crítica à atuação do Itamaraty está na dimensão exagerada dada à cooperação entre os países menos desenvolvidos como eixo básico da nossa diplomacia. Com a queda do Muro de Berlim, desapareceu completamente o paralelo que dividia o mundo em Ocidente e Oriente. O meridiano Norte-Sul não desapareceu de todo, mas se desvaneceu. O diálogo Norte-Sul é uma realidade. A esta altura da vida, com o mundo em transformação vertiginosa, não vale mais valorizar tanto a dimensão Sul-Sul. Isso é um substrato ideológico vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado. A nossa relação com a China e com a Índia também apresenta equívocos. É preciso ter parceria com os dois países, mas eles não podem ser considerados nossos aliados. Veja – Há uma tendência no Itamaraty de priorizar as relações com os países da América do Sul em detrimento dos Estados Unidos? Abdenur – Não é positivo superestimar o valor das afinidades ideológicas. Tem prosperado no Itamaraty uma idéia de que uma maior afinidade ideológica entre os governos da América do Sul tornaria nossa vida mais fácil. Estamos vendo que não. Apesar das afinidades que existem entre o Brasil e outros países da região, estamos enfrentando problemas para consolidar o Mercosul. Veja – É crescente a influência de Hugo Chávez em países como Bolívia e Equador. Como o senhor avalia essa mudança de poder na América Latina? Abdenur – Fui embaixador no Equador de 1985 a 1988 e, durante aqueles anos, a população mais pobre, de origem indígena, não tinha poder nem influência na vida política. A ascensão dessas camadas indígenas da população, como ocorre no Equador, na Bolívia e no Peru, é positiva. Mas há uma diferença básica entre Evo Morales e Hugo Chávez. O Morales vem de baixo, é um líder camponês que virou presidente da República. Mal comparando, uma trajetória semelhante à do presidente Lula. Já Chávez caiu de pára-quedas, tentou um golpe, depois chegou ao poder pela via democrática. Infelizmente, ele está acabando com a democracia na Venezuela. Veja – O que o senhor acha da defesa feita pelo governo brasileiro a favor da entrada da Venezuela no Mercosul? Abdenur – Foi um erro ter incorporado de chofre a Venezuela ao Mercosul. Devíamos ter privilegiado o aperfeiçoamento do Mercosul sobre a expansão a qualquer custo. Foi vexatório ver Chávez na última reunião dizendo que o Mercosul era um corpo que precisava ser enterrado. Chávez tem idéias sobre economia que não se coadunam com os pressupostos do Mercosul. Ele tem idéia de regresso ao escambo, de troca de mercadorias. Isso obviamente é um passo para trás. O Mercosul tem um compromisso democrático. Democracia, é bom lembrar, não é só realização de eleições. Acho que o Brasil tem a responsabilidade de soltar a voz para tornar menos cômoda a vida de governos autoritários e ditatoriais na região. Não se pode ignorar o que está acontecendo na Venezuela. O Brasil deve expressar claramente seu compromisso democrático amplo, profundo e irrestrito e denunciar situações como a que Chávez criou na Venezuela. Veja – Como o senhor avalia a relação do Brasil com os Estados Unidos nos três anos em que serviu como embaixador em Washington? Abdenur – Pode parecer paradoxal, mas a relação do Brasil com os Estados Unidos prosperou significativamente nos últimos anos. Graças a uma pessoa que manda muito no governo brasileiro, uma pessoa de extremo pragmatismo e lucidez, que é o presidente Lula. Ele não esconde seu desagrado com algumas coisas que o governo Bush tem feito, particularmente no Iraque. Mas Lula sabe que uma relação melhor com os Estados Unidos é de interesse do Brasil. Quando fui assumir a embaixada, ele me disse: "Roberto, quero deixar como legado para o futuro bases ainda mais sólidas e mais amplas na relação entre os dois países". Como embaixador, tive algumas dificuldades, mas nada que fosse impeditivo. Veja – O senhor não deixou o cargo de embaixador espontaneamente, correto? Abdenur – Há no Brasil setores, embora minoritários, que têm aversão aos Estados Unidos, inclusive dentro do governo e do Itamaraty. Há esse ranço, mas isso não atrapalhou meu trabalho. A relação Brasil-Estados Unidos nunca esteve tão bem. Lula inclusive deve visitar o presidente Bush nos próximos meses. Veja – Apesar dessa relação forte com os Estados Unidos, a Alca está em compasso de espera. Abdenur – O Brasil está, na melhor das hipóteses, deixando de ganhar dinheiro. O mercado americano está se aproximando dos 2 trilhões de dólares. Seria vital para o Brasil ter vantagens preferenciais, de parceria, com os Estados Unidos. Não estou dizendo que deveríamos ter assinado a Alca de qualquer jeito, mas deveríamos ter seguido com a negociação. Os Estados Unidos têm assinado vários acordos de comércio bilaterais, e nós temos perdido competitividade no mercado americano. Nós estamos estacionados há dez anos em 1,4% do mercado americano. Há vinte anos, nossa participação era de 2,2%. Eu lamento que o único aspecto da relação Brasil-Estados Unidos em que não houve progresso tenha sido o comércio. Foram mínimos os recursos alocados para promoção comercial nos Estados Unidos pelo governo brasileiro. Veja – Qual é a imagem do presidente Lula nos Estados Unidos? Ele ainda é um político respeitado ou sua imagem foi deteriorada pelos escândalos de corrupção? Abdenur – É uma imagem positiva, os escândalos de corrupção não repercutiram muito por lá. Ele é o líder de uma democracia estável, um governante que tem uma biografia louvável. O governo Lula tem merecido respeito mundo afora por conciliar uma política econômica pragmática com políticas sociais efetivas e uma política externa séria. Isso começou com Fernando Henrique, mas o governo Lula avançou. Veja – O senhor disse em um evento no ano passado em São Paulo que a China é nossa concorrente, não nossa parceira. O senhor mantém essa avaliação? Abdenur – Fui nomeado embaixador na China no governo Sarney, trabalhei quatro anos e meio lá, tenho autoridade para falar desse país. Nós não podemos ter uma visão romântica daquela China do passado, pobre, atrasada, camponesa, isolada do mundo. A China deu um salto extraordinário e hoje é uma potência. Tem um comércio exterior de 1,8 trilhão de dólares, oito vezes o do Brasil. Nós temos de atualizar a visão da China e ver que, sem deixar de ser parceira valiosa, é cada vez mais nossa concorrente dentro do mercado brasileiro e no exterior. Isso não quer dizer que devamos construir uma muralha e nos fechar aos chineses. Pelo contrário. É preciso manter uma parceria estratégica com a China em novos termos e não ter ilusões. Quando criamos mitos e queremos dar a impressão de que a China é nossa aliada, que nós a lideramos, é uma bobagem. A China hoje busca o capitalismo, a globalização, o mercado. Veja – O senhor acha que o Brasil errou ao reconhecer a China como economia de mercado? Abdenur – Acho que foi precipitado. Embora o Estado chinês como produtor e empreendedor esteja diminuindo de tamanho, ele ainda interfere muitíssimo na economia, usa instrumentos arbitrários. Ao reconhecermos a economia de mercado, nós abrimos mão de usar mecanismos de defesa contra os produtos chineses. Isso tornou inevitável uma entrada cada vez maior de produtos chineses no Brasil. O prejuízo é inevitável. Veja – A divulgação dessa posição do senhor sobre a China causou problemas dentro do Itamaraty? Abdenur – Causou, sim. Veja – É verdade que seu amigo antigo, o ministro Amorim, exigiu que o senhor se retratasse publicamente? Abdenur – Não quero fulanizar essa discussão.
Fonte: Rev. Veja, Otávio Cabral, ed. 1994, 7/2/2007.
Uma dúvida semântica ...
O governo Luiz Inácio Lula da Silva está chegando ao seu terceiro embaixador na embaixada mais cobiçada do mundo, literalmente: a de Washington. O primeiro, herdado de Fernando Henrique Cardoso, foi Rubens Barbosa, que deixou o cargo e passou a ser um crítico elegante, porém assíduo, da política externa brasileira. Acha que o resultado é "a perda de oportunidades comerciais pelo Brasil nos maiores e mais dinâmicos mercados do mundo", como os EUA. O segundo foi Roberto Abdenur, um diplomata discreto, que raramente falava em público, há bastante tempo listado entre os brilhos intelectuais do Itamaraty. E que agora, bastaram alguns dias de aposentadoria, dá uma guinada no estilo e sai chutando o pau da barraca em entrevista à revista "Veja". Segundo ele, a política externa de Celso Amorim é ideologizada e antiamericana. Já a de Lula é excelente. Ninguém sabia que existem duas. O terceiro em Washington será um "jovem" de 52 anos, especialista em ONU, com o sugestivo nome de Antônio Patriota e com uma característica bem peculiar: é um "embaixador júnior" – nunca antes chefiou uma embaixada e a primeira será justamente a de Washington, a jóia da coroa. Coisas de Amorim. Ou coisas do Governo Lula. Naquelas frases tortuosas e tão tipicamente diplomáticas, Patriota tenta dizer que o Brasil tem boas relações com os EUA, sim, apenas rejeita qualquer tipo de subserviência. Enquanto no Brasil se discutem o suposto antiamericanismo do "Itamaraty atual" e o sexo dos anjos, Washington está mais preocupado com temas mais substantivos: a dependência americana do petróleo venezuelano e árabe, os rumos nacionalizantes do governo Hugo Chávez, os acordos bilaterais pragmáticos com os países sul-americanos depois do insucesso da Alca. E, claro, eles estão muito preocupados, sim, em manter uma boa relação com o país maior, mais rico e mais populoso da região. Qual seja? O Brasil. Lula pode até não ser o presidente dos sonhos dos americanos e de George W. Bush, mas entre o sonho e a realidade está o fato de que o presidente brasileiro nunca quebrou nem ameaça quebrar contratos, não cria confusão com o mercado, não põe em risco nenhum dos mandamentos de Washington. Tanto que o próprio Bush, a poderosa Condoleezza Rice, os homens fortes da Casa Branca na política, na economia, no comércio, na energia, na segurança – todos eles já visitaram o Brasil, alguns mais de uma vez. E sempre com propostas concretas. Os mais recentes visitantes são o subsecretário para Assuntos Políticos, Nicholas Burns, o responsável pela América Latina, Thomas Shannon, o homem da energia, Greg Manuel, e o secretário de Justiça e procurador-geral, Alberto Gonzales. Eles estão por aí, entre Brasília, Rio e São Paulo, falando com o governo federal sobre trocas e parcerias e com os principais governadores para listar os interesses comuns, passíveis de cooperação, como segurança e combustíveis alternativos. Em resumo, querem ser "amigos". Porque interessa ser amigo do Brasil, de Lula, de quem tem o que receber e oferecer e de todos os que possam manter um bom equilíbrio na América do Sul – ou seja, contrabalançar o peso de Chávez. O próprio Abdenur, na entrevista à Veja, falou cobras, lagartos e adjetivos contra a política externa antiamericanista, mas... lá pelas tantas, enumerou uma série de acertos e vitórias e soltou que nunca as relações Brasil-EUA estiveram tão boas. Você entendeu? Se não, pergunte a ele. E, quando Abdenur e Rubens Barbosa dizem que o Brasil está perdendo mil e uma oportunidades de negócios com a maior economia do planeta, vale lembrar que as exportações brasileiras para os EUA foram em torno de US$ 5 bilhões nos quatro últimos anos do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. E praticamente dobraram nos primeiros quatro do governo Lula. Para Abdenur, o que importa é a proporcionalidade: a participação brasileira nos negócios norte-americanos caiu para menos de 2%. Só que isso é também resultado do aumento da base de cálculo. Depois do extraordinário aumento das relações deles com a Índia, a base aumentou, a proporção brasileira caiu. Mas só em proporção. No volume, aumentou. O fato é que ninguém consegue traduzir os adjetivos críticos ao tal antiamericanismo por números, dados, fatos que comprovem a tese – ou a pecha. Afinal, o que vem a ser exatamente isso?
Haver ou não antiamericanismo, por enquanto, não passa de
uma discussão retórica que alimenta velhas briguinhas internas na Casa de
Rio Branco. E, já que é assim, uma dúvida semântica: anti-americanismo ou
anti-subserviência? * Eliane Cantanhêde é colunista da Folha e assina a coluna "Brasília" da página A-2 aos domingos, terças, quintas e sextas-feiras. Formada pela UnB, foi diretora de Redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília. Escreve para a Folha Online às quartas.
[Uma semana depois
...] Está suspensa a leitura engajada. Já a política externa...
O ministro Celso Amorim rebateu as acusações de que as promoções no Itamaraty ocorrem de acordo com o alinhamento ideológico dos diplomatas. "É um absurdo e é até difamatório", reagiu. Até a leitura obrigatória, que Amorim mandou suspender diante da entrevista de Abdenur, foi minimizada pelo chanceler. Ele disse que, de três obras obrigatórias (Chutando a Escada, do chinês Ha-Joon Chang, Rio Branco, de Álvaro Lins, e Brasil, Argentina e Estados Unidos – Da Tríplice Aliança ao Mercosul, de Luiz Alberto Moniz Bandeira), apenas a última poderia ter algum viés esquerdista. Ainda assim, Amorim afirmou que decidiu suspender as leituras apenas para evitar o que chamou de "mal-entendidos" explicitados pela entrevista de Abdenur a VEJA.
Fonte: Rev. Veja, Otávio Cabral, ed. 1995, 14/2/2007.
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