Não sei se você notou ...
Janer Cristaldo*

 

Quando uma corte de suprema instância, obedecendo à fúria fiscal do Executivo, derruba de uma só tacada duas das três instituições fundamentais de uma democracia, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, consagradas na Constituição, em democracia não mais vivemos. Se a Constituição pode ser conspurcada por sete ministros, nada impede que seja de novo violada. Caldo cultural para tanto já existe. Ano passado, um repórter do Estadão falava sobre “direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada e outros chavões”. Quando um jornal que se pretende liberal não demite quem escreve tais despautérios, o clima está maduro para qualquer regime totalitário. Segundo a Folha de São Paulo desta sexta-feira última, o governo avalia que a decisão do STF de autorizar a cobrança previdenciária dos servidores públicos inativos é um marco que acaba com o “mito da cláusula pétrea do direito adquirido”. 

De minha ciência, nunca no Brasil foi cometido tamanho absurdo jurídico. Os atos institucionais dos militares se sobrepuseram à Constituição, mas nunca alguém pretendeu que o regime pós-64 fosse uma democracia. A Constituição de 88 criou essa figura exótica das cláusulas pétreas, intocáveis como as deidades do Olimpo. Só poderiam ser anuladas por outra Constituinte. Agora não precisa mais Constituinte. “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, dizia o art. 5º, inciso XXXVI, da Carta de 88. Dizia e ainda diz. Bastaram sete cortesãos nomeados pelo Executivo para fazer desta garantia letra morta. 

Os jornais batem na tecla do direito adquirido. A ofensa foi um pouco mais grave. O que foi realmente ferido, como observava um jurista, foi o ato jurídico perfeito da aposentadoria, do qual nasce, secundariamente, o direito adquirido do inativo. 

Se a decisão de quarta-feira foi um marco que acaba com o mito da cláusula pétrea do direito adquirido – como afirmou uma fonte presidencial – o caminho está agora aberto para acabar com outros mitos estúpidos, tipo propriedade privada, direito à herança, décimo terceiro salário, férias remuneradas e chavões outros. Por marco se entende sempre um início. Com seu pronunciamento, o governo nos dá sinais evidentes de que muito em breve outros mitos serão derrubados. 

O próximo já está anunciado. Dia 15 de julho passado, discretamente foi promulgada a Lei n° 10.910. Em seu art. 4°, cria a Gratificação de Incremento da Fiscalização e da Arrecadação – GIFA – devida aos ocupantes dos cargos efetivos das carreiras de Auditoria da Receita Federal, Auditoria-Fiscal da Previdência Social e Auditoria-Fiscal do Trabalho, no percentual de até 45%, incidente sobre o maior vencimento básico de cada cargo das carreiras. Mais adiante, no art. 10, § 1º, determina: “Às aposentadorias e às pensões que vierem a ocorrer antes de transcorrido o período a que se refere à parte final do caput deste artigo aplica-se a GIFA no percentual de 30% sobre o valor máximo a que o servidor faria jus se estivesse em atividade”. 

Como quem não quer nada, de uma penada o legislador derruba mais um desses incômodos mitos, no caso a paridade entre ativos e inativos. Como inativo não tem poder de barganha, que decida: ou morra logo com as condições que o salário lhe permite, ou morra mais adiante, em uma velhice infamante. E que surjam as Adins, manifestações de classe, apelos ao Congresso ou mesmo ao bispo. Como para derrubar mitos bastam seis senhores que se arrogam funções de constituintes, o governo não terá maiores dificuldades para enfiar de novo a mão no bolso da velharada. Além disso, os “heróis retroativos” pós-64, já que não conseguiram destruir o país, de alguma fonte precisam retirar suas gordas pensões de vultos da Pátria, isentas de imposto de renda, diga-se de passagem. 

Um dia antes da famigerada decisão do STF, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, durante audiência com o presidente da Costa Rica, Abel Pacheco, que está aprendendo a arte de permanecer muitos anos no poder. "Eu fui agora a uma viagem ao Gabão aprender como é que um presidente da República consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição", disse Lula, ao citar a viagem que fez recentemente à África. Ora, a fórmula não tem mistérios. Basta criar um partido único, ou mesmo permitir a existência de outros, sempre fraudando as eleições. 

Recomendável manter o povo sempre na miséria, para que suas preocupações não sejam maiores do que as do que comer amanhã. Quanto à imprensa, calar qualquer voz de oposição. Em verdade, não precisava ir tão longe para encontrar um guru. Bastava aconselhar-se com seu dileto amigo, Fidel Ruz Castro, o decano dos ditadores do planeta. Que mais não seja, nalguma biblioteca sempre se encontrará alguma biografia de Stalin, Mao Tse Tung, Envers Hodja, Nicolai Ceaucescu, Muamar Kadafi ou Mobutu Sese Seko, estes líderes admiráveis que, eivados de tanto amor por seus povos, jamais permitiram que um outro dirigente os governasse. 

Fascinado pela extraordinária trajetória política de Omar Bongo, Lula está tomando outras providências para construir uma carreira assim brilhante e duradoura. Já propôs um Conselho Federal de Jornalismo, para melhor controlar esses “jornalistas covardes” – como disse – que não têm a coragem de apoiar os projetos do governo. O modelito, para quem quiser comparar, é o mesmo da Comisão Nacional Ética...de Cuba Está em pauta também uma Agência Nacional de Cinema e Audiovisual, para o controle da maioria analfabeta do país, afinal neste país cada analfabeto vale um voto. Para salvar um alto funcionário acusado de corrupção, criou mais um ministério. E com a campanha de desarmamento da população civil, previne-se qualquer veleidade de resistência ao regime autoritário. 

Um dos ministros do STJ, Eros Grau, recém empossado – e não por acaso – emitiu parecer para uma associação de professores, quando ainda não era ministro do STJ, cobrou 35 mil reais pra pronunciar-se contra a contribuição dos inativos. Uma vez ministro, votou a favor. Segundo o jornalista Jânio de Freitas, o ministro estará recebendo, este mês, a metade de seu preço de parecerista. “Eros Grau ficou, de fato, muito mais barato”, diz Freitas. Discrepo. 35 mil reais foi o preço de um parecer avulso. Outra coisa é receber metade disto pelo fim de sua vida para assinar o que o Executivo quiser e exigir. 

Para Bandeira de Mello, professor de Direito da PUC paulista, a decisão da taxação dos inativos, "acaba com a segurança jurídica. Se o STF pode fazer isso, está falido o Estado de Direito". 

Não sei se você notou. Mas a ditadura já recomeçou.

 

* Cristaldo é jornalista, escritor, tradutor e vive em São Paulo.


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