Não existe, hoje,
cenário para um processo de impeachment, avalia jurista
A oposição está usando
a hipótese do impeachment como uma arma política para desgastar o
presidente, sem dispor, no momento, de base legal para acusá-lo de crime de
responsabilidade. A avaliação é do jurista Clèmerson
Merlin Clève, especialista em Direito Constitucional, que não vê,
hoje, muitas chances dessa hipótese prosperar. Nos últimos dias, a oposição, capitaneada pelo PSDB e pelo PFL, tirou a figura do impeachment do armário e passou a utilizá-la ameaçadoramente contra a figura do presidente da República. O senador Álvaro Dias (PSDB-PR) chegou a dizer que já existiriam elementos jurídicos para a instauração de um processo deste tipo. E o ex-ministro de FHC, Luiz Carlos Bresser Pereira, em artigo publicado nesta segunda (15) no jornal Folha de São Paulo, vai mais além e diz que um processo de impeachment não seria traumático para o país. No final de semana, publicações como a revista Veja e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, trabalharam abertamente com a construção de um cenário de impeachment. Se, por um lado, a situação do governo vem se agravando dramaticamente do ponto de vista político, por outro, a hipótese do impeachment ainda carece de base jurídica. Essa é, ao menos, a opinião de um dos mais renomados constitucionalistas do país. Na avaliação de Clèmerson Merlin Clève, especialista em Direito Constitucional, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, da UniBrasil e vice-presidente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD), não existe hoje no Brasil um cenário favorável à abertura de um processo de impeachment contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nem do ponto de vista político, nem do ponto de vista jurídico. Para ele, a oposição começa a falar da possibilidade do emprego deste instrumento com o visível propósito de desgastar politicamente o presidente Lula, tendo em vista as eleições de 2006. O professor Cléve lembra que o impeachment é um “mecanismo extremamente oneroso, pesado e drástico”. “Na experiência das repúblicas americanas, ele foi desencadeado poucas vezes. Para se ter uma idéia, é um mecanismo que nunca foi levado até o fim nos Estados Unidos”, destaca. “Houve uma tentativa no século XIX e depois tivemos o caso Nixon, quando o então presidente renunciou antes que o processo de impeachment fosse instaurado. Na América Latina, tivemos apenas um caso, que ocorreu durante o governo Collor, no Brasil, em um contexto político absolutamente favorável para a sua implementação”, lembra. Hoje, considerando a crise que afeta o país, Clèmerson Clève não vê, do ponto de vista jurídico ou político, nenhum cenário favorável à abertura de um processo de impeachment contra o presidente Lula. Segundo ele, não há, como ocorreu no governo Collor, uma grande mobilização social favorável a isso, um clima de unanimidade nacional contra o presidente. E, do ponto de vista jurídico, não há, tampouco, nenhuma prova robusta – o que é exigido para um processo de impeachment - que aponte para um crime de responsabilidade cometido pelo presidente da República”, resume o constitucionalista. Clève lembra que, qualquer cidadão, pode encaminhar à Câmara dos Deputados um pedido de abertura de processo de impeachment contra o presidente da República, pela prática de crime de responsabilidade. Daí à abertura efetiva do mesmo, vai uma distância muito grande. Esses pedidos já foram feitos muitas vezes, inclusive durante o governo Fernando Henrique, lembra, mas não prosperaram pela ausência de provas que justificassem seu encaminhamento. “Hoje, o impeachment está sendo manejado como uma arma política pela oposição para debilitar a legitimidade do presidente. Mas não vejo qualquer possibilidade dessa proposta prosperar. Pelo menos até esse momento, as forças organizadas da sociedade não estão se movendo nesta direção. Além disso, repito, não há qualquer fundamento jurídico hoje para acusar o presidente de crime de responsabilidade”, argumenta. O impeachment, segundo a lei O jurista identifica um alto nível de desinformação na sociedade sobre a natureza do crime de responsabilidade. Clève observa: “o crime de responsabilidade diz respeito a algo praticado durante o mandato do presidente. Se houve algo antes da posse, como crime eleitoral, isso não configura crime de responsabilidade”. Ele lembra que o tema é regido pelo artigo 85 da Constituição brasileira. Esse artigo afirma que são crimes de responsabilidade os atos do presidente da república que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: “a existência da União; o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do país; a probidade na administração; a lei orçamentária; o cumprimento das leis e das decisões judiciais”. O parágrafo único do mesmo artigo prevê que esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento. Essa lei, observa Clèmerson Clève, é bastante antiga (Lei n° 1.079, de 1950) é foi utilizada no caso Collor. Em 19 de outubro de 2000, a Lei n° 10.028 ampliou o rol de infrações passíveis de serem caracterizadas como crime de responsabilidade. Mas o texto básico que regula esse tipo de julgamento, destaca ainda o jurista, permanece sendo o da Lei n° 1.079, que tipifica as condutas definidoras de crime de responsabilidade. Considerando o cenário atual, ele vê apenas uma possibilidade de caracterização desse crime: “se o presidente tinha conhecimento das supostas práticas de aliciamento de parlamentares, no esquema conhecido como mensalão, isso poderia configurar um ato atentatório ao exercício do Poder Legislativo”. “Não me parece que tenhamos, hoje, elementos como este, que indiquem fortemente que o presidente tivesse conhecimento da prática do mensalão, do suborno de parlamentares”, assinala Clève. E ele acha muito difícil chegar a isso. “Não me parece haver, do ponto de vista jurídico, qualquer indício do envolvimento do presidente”. Por outro lado, ressalta, se chegarmos a isso, do ponto de vista político teremos uma situação muito complicada. Ele lembra como funciona o processo de impeachment. Feita a denúncia, a Câmara dos Deputados precisa se pronunciar sobre ela, sendo exigida uma maioria de dois terços de votos para admitir a acusação e dar início ao processo contra o presidente. Clève lembra que essa é uma maioria superior àquela exigida para a aprovação de uma emenda constitucional. Autorizado pela Câmara, cabe ao Senado instaurar o processo, que deve ser presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Um processo traumático para o país O presidente é, então, afastado por um período de 180 dias, prazo previsto para o desenvolvimento do processo. Se, ao fim deste período, o julgamento não estiver concluído, o presidente volta ao cargo, sem prejuízo do prosseguimento do processo. A eventual aprovação de um impeachment no Senado também requer uma maioria de dois terços dos votos. Todo esse processo, enfatiza Clève, é muito dramático para o país, posição contrária aquela expressa pelo ex-ministro Bresser Pereira. “É uma verdadeira bomba atômica, paralisa o país, paralisa a implementação de políticas públicas, afeta a economia”, aponta. A experiência do governo Collor, acrescenta, foi interessante para o aperfeiçoamento da democracia, mas não podemos esquecer que teve um custo muito alto. O jurista lembra ainda que, naquele período, o vice de Collor, Itamar Franco, gozava de uma grande simpatia na sociedade. No caso atual, adverte, um eventual processo de impeachment poderia ser mais traumático. “Não me parece que José Alencar tenha essa mesma unanimidade em torno do seu nome. E, na hipótese dele também ser envolvido em um processo de impeachment, assumiria o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, que deveria convocar eleições indiretas para a conclusão do mandato”, diz Clève. Ele recorda essa trajetória de hipóteses para alertar que a emenda pode sair pior do que o soneto, ou seja, um processo desta natureza pode agravar ainda mais a crise política no país. “Eu imagino que a oposição tenha consciência disso”, supõe. Por enquanto, conclui, a oposição trabalha com a hipótese do impeachment com o claro objetivo de desgastar politicamente o presidente, sem dispor ainda de evidências jurídicas para responsabilizar o presidente. A evolução desse quadro é imprevisível e toda prudência é pouca. O importante, finaliza, é que possamos superar esse quadro com algum ganho para a vida institucional e democrática no país.
Fonte: Ag. Carta Maior, Marco Aurélio Weissheimer, Porto Alegre, 15/08/2005 |