Por que não aprecio a política
Lya Luft*

 

"De um lado vejo despreparados que chegaram ao poder e estão atônitos, de outro, corruptos delirantes de alegria por ali estarem e, no meio, os despreparados-corruptos, dos quais nem sei o que dizer"


Já comentei aqui que não aprecio a política. Pelo menos, não do jeito como a exercemos. Hoje, penso que a fazemos de maneira abominável – com honrosas exceções, que nos dão ainda um sopro de esperança. Na minha adolescência tínhamos partidos que representavam de alguma forma a direita, o centro e a esquerda. As coisas eram claras, vestia-se a camiseta e morria-se por ela – ou com ela. Dizia-se de alguns políticos que eram velhas raposas, mas muitos eram honrados. Talvez então se fizesse uma política mais próxima do seu sentido real: buscar o bem da comunidade. Aqui e ali aparecem entre nós homens daquela estirpe, resistindo à bandalheira quase generalizada, mas podemos contá-los nos dedos.

Naquele tempo, do qual aliás não cultivo maior saudade porque saudosismo nostálgico não é do meu feitio, um parente meu mudou de partido porque o novo lhe permitia algo com que ele havia tempo sonhava em vão: financiar a construção de um hospital, único na sua cidade. Apesar desse bem para a comunidade, ele ficou no ostracismo pelo resto da vida, acusado até pelos beneficiados de algo gravíssimo naqueles idos: "Vira-casaca". Era a marca do opróbrio.

O termo perdeu a força porque se viram casacas o tempo todo, com muito menos pudor do que se trocaria de roupa íntima em praça pública. O número de partidos se multiplicou ao vento dos interesses pessoais e de ideologias confusas. Perdidas entre ervas daninhas, a honra e a ética entram pelo ralo feito cachoeira, tornando-se quase um oásis onde a gente consegue, raramente, sentir-se bem.

Meu pai, advogado conhecido em meu estado, resolveu, também naquela época, aceitar convites insistentes de seu partido para se candidatar a deputado. Estadual ou federal, não lembro mais. Sua campanha – isso eu lembro – baseava-se em não mentir, não enganar, não prometer impossíveis, não abusar da confiança do eleitor. Era um homem honrado, meu velho pai. Naturalmente ele perdeu as eleições para alguém que era quase um crápula, todos sabiam disso, mas foi quem venceu.

Desde então não aprecio a nossa prática política. Neste momento, aliás, preocupa-me até a limpeza do ar que respiro. De um lado vejo despreparados que chegaram ao poder e estão atônitos, de outro lado, corruptos delirantes de alegria por ali estarem e, no meio, os despreparados-corruptos, dos quais nem sei o que dizer. Por baixo desse triste espetáculo, o povo brasileiro, do qual faço parte, contemplando sem grande esperança tramas e tramóias a respingar sujeira em nosso televisor, nosso jornal e nossa alma.

Isso, fora o que não vêem, mas talvez adivinhem, os comuns mortais como nós, que não trilhamos os suspeitos bastidores desse triste espetáculo. Concordo que existem por ali alguns sinceramente chocados: pois nem todos são desonestos, e nem todos sabiam. Que desse susto nasça algum fruto positivo e salvador.

Enquanto isso, pagamos a grande farsa: impostos absurdos embutidos nos alimentos e remédios, na água da nossa sede, no preço do seguro-saúde e da escola particular, pois, se a coisa particular não anda boa, a pública há muito desandou. Projetos para salvá-la são abstrusos ou perigosos.

Nenhum palavrório esconde, por exemplo, que na universidade pública muitas vezes não há papel higiênico para os professores, que dirá material de trabalho e laboratórios, boa biblioteca, estímulo e orientação para os alunos, gravemente atingidos pelo que se vai explicitando neste país.

Senhores, acreditem: o que estamos vendo e nos ofende é, usando de um clichê, apenas a ponta de uma montanha de gelo que, revelada e derretida, vai nos cobrir – não de água, mas de vergonha. Essa ao menos a gente consegue preservar. Que ela se fortaleça e se manifeste, junto com sua irmã maior: a indignação.
 

* Lya Luft é escritora.

Fonte: Rev. Veja, ed. n. 1911, 29/06/2005


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