Contra o mito da
"nação bicolor"
As falácias da
política de cotas raciais na análise demolidora de Ali Kamel
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Operários, de Tarsila do Amaral: um retrato da miscigenação brasileira
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No
início dos anos 1930, às vésperas da ascensão do nazismo, as posições
pacifistas do físico alemão Albert Einstein geravam rancor entre seus
compatriotas. Com o título de 100 Autores contra Einstein, um livro coletivo
foi publicado para atacar suas idéias. Einstein respondeu com sua
inteligência característica: "Por que 100 autores? Se eu estivesse errado,
um só bastaria". A anedota merece ser lembrada a propósito da recente guerra
de abaixo-assinados gerada pela Lei de Cotas e pelo Estatuto da Igualdade
Racial – projetos de lei que visam a estabelecer políticas de "ação
afirmativa" para favorecer os negros, com cotas raciais nas universidades e
no funcionalismo público. Há pouco mais de um mês, um manifesto contrário ao
estatuto, assinado por 114 intelectuais, foi entregue ao Congresso. Os
movimentos sociais que apóiam as cotas responderam de bate-pronto com outro
abaixo-assinado, este com 330 signatários. Agora, quando a poeira da
discussão já começava a assentar (e a votação do estatuto na Câmara dos
Deputados ficou para o ano que vem), o diretor executivo de jornalismo da
Rede Globo, Ali Kamel, lança um livro fundamental para entender a questão.
Não Somos Racistas (Nova Fronteira; 144 páginas; 22 reais) demonstra que as
chamadas "ações afirmativas" são uma resposta irracional para um problema
fictício – o racismo institucional, que não vigora no Brasil. Um só autor
basta para provar que 330 estão errados.
O engano fundamental
das políticas raciais estaria, de acordo com Kamel, em considerar que a
sociedade brasileira é constitutivamente racista. Existe racismo no Brasil,
mas ele não é um dado predominante da cultura nacional e não conta com aval
de nenhuma instituição pública. Ao exigir, por exemplo, que certidões de
nascimento, prontuários médicos e outros documentos oficiais informem a raça
de seu portador, o Estatuto da Igualdade Racial está na verdade desprezando
uma longa tradição de mistura e convivência em prol de categorias raciais
estanques e estúpidas. É, na prática, um exercício de discriminação racial,
sancionado pelo Estado.
A miscigenação, dado
central da sociedade brasileira, é o fato recalcado pelos defensores das
cotas. A lógica beligerante implícita do estatuto e da lei de cotas é de que
existem dois grandes grupos no Brasil: os brancos, opressores, e os negros,
oprimidos. Isso se revela até no uso das estatísticas do IBGE – e um dos
pontos fortes de Não Somos Racistas é a clareza com que o autor (que, além
de jornalista, tem formação em ciências sociais) destrinça números para
desmontar a falácia das cotas. Nas contas dos que defendem medidas do
gênero, os negros são 48% da população, mas representam 66% dos brasileiros
pobres. Kamel parte da mesma fonte – a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio, do IBGE – para observar que, na verdade, os negros são uma
minoria (veja o quadro). Os filhos da miscigenação, definidos como "pardos",
são mais numerosos e têm um lugar ambíguo no discurso racial. Sendo, em
geral, descendentes de africanos e de europeus, por que deveriam ser
considerados apenas "negros"? Pardos e negros, somados, representam, sim, a
maioria dos pobres brasileiros – em números absolutos, 38 milhões. Mas o
contingente de brancos pobres também é enorme. Como justificar uma política
de avanço "racial" que deixaria para trás a massa de 19 milhões de brancos
pobres? Os mulatos mais claros serão favorecidos ou esquecidos por essas
políticas de discriminação? O Estatuto da Igualdade Racial, como se vê, é
uma receita para que os cidadãos brasileiros recebam tratamento desigual por
parte do Estado. A pobreza, argumenta Kamel, é a chaga social renitente do
Brasil. Ela não discrimina: atinge brancos, negros, mulatos. "Negros e
pardos são maioria entre os pobres porque o nosso modelo econômico foi
sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por definição,
não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre", observa Kamel. Negros,
brancos e pardos, diz o autor, só sairão da pobreza por força de políticas
que incluam a todos – especialmente com investimentos consistentes em
educação.
Kamel também é muito
eficiente ao traçar o histórico das equivocadas políticas raciais debatidas
hoje. A idéia de que o Brasil é racista foi, de acordo com o autor,
inventada a partir dos anos 1950 por cientistas sociais como Florestan
Fernandes – e Fernando Henrique Cardoso. Foi em consonância com as idéias
expostas na obra do sociólogo – como Capitalismo e Escravidão no Brasil
Meridional – que o presidente Fernando Henrique implementou as primeiras
políticas de "ação afirmativa" no funcionalismo público. A distorção que
Kamel chama de "nação bicolor" teve início ali, e ganhou uma continuidade
"canhestra" no governo Lula. Caberá aos deputados eleitos neste ano dar um
ponto final nessa escalada, recusando o Estatuto da Igualdade Racial. Seria
salutar que todos eles lessem Não Somos Racistas.
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Leia
trecho de Não Somos Racistas,
de Ali Kamel
“Foi um movimento lento. Surgiu
na academia, entre alguns sociólogos na década de 1950 e, aos
poucos, foi ganhando corpo até se tornar política oficial de
governo. Mergulhado no trabalho jornalístico diário, quando me
dei conta do fenômeno levei um susto. Mais uma vez tive a prova
de que os grandes estragos começam assim: no início, não se dá
atenção, acreditando-se que as convicções em contrário são tão
grandes e arraigadas que o mal não progredirá.
Quando acordamos, leva-se o
susto. Eu levei. E, imagino, muitos brasileiros devem também ter
se assustado: quer dizer então que somos um povo racista? Minha
reação instintiva foi me rebelar contra isso. Em 2003, publiquei
no Globo um artigo cujo título dizia tudo: "Não somos racistas."
Depois dele, publiquei outros
tantos e, hoje, vendo-os no conjunto, tenho a consciência de que
fui me dando conta do estrago à medida que ia escrevendo.
Escrevi sempre na perspectiva de um jornalista, de alguém
especializado em ver o imediato das coisas. Outros lutaram em
seus campos, sempre com muita propriedade. Gente como os
historiadores José Roberto Pinto de Góes, Manolo Florentino,
José Murilo de Carvalho e Monica Grin, os antropólogos Yvonne
Maggie, Peter Fry e os sociólogos Marcos Chor Maio, Ricardo
Ventura e Demétrio Magnoli e o jornalista Luis Nassif, entre
tantos outros, tentaram alertar a sociedade brasileira para o
perigo nos jornais, em artigos especializados, em seminários e
em livros.
Na perspectiva de jornalista, de
alguém mais próximo do cidadão comum, espantei-me diante de
algumas descobertas. Um exemplo, o conceito de negro. Para mim,
para o senso comum, para as pessoas que andam pelas ruas, negro
era um sinônimo de preto. Nos primeiros artigos, eu me debatia
contra uma leitura equivocada das estatísticas oficiais
acreditando nisso. Certo dia, caiu a ficha: para as
estatísticas, negros eram todos aqueles que não eram brancos.
Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno,
marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram brancos ou eram negros.
De repente, nós que éramos orgulhosos da nossa miscigenação, do
nosso gradiente tão variado de cores, fomos reduzidos a uma
nação de brancos e negros. Pior: uma nação de brancos e negros
onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele país não
era o meu.
O debate em torno de raças no
Brasil sempre foi intenso. Deixando de lado todo o debate entre
escravocratas e abolicionistas, o século XX foi todo ele
permeado por essa discussão. Nas primeiras décadas do século
passado, o pensamento majoritário nas ciências sociais era
racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da
miscigenação. O racismo era decorrente justamente dessa
constatação: para que o país progredisse, diziam os sociólogos,
era preciso que se embranquecesse, diminuindo a porção negra de
nosso povo. Foi Gilberto Freyre quem mais se destacou em se
contrapor a um pensamento tão abjeto como este.
Freyre não foi o autor do
conceito de "democracia racial", não foi ele quem cunhou o
termo, hoje tão combatido. Aliás, era avesso a tal conceito,
porque o que ele via como realidade era a mestiçagem e não o
convívio sem conflito entre raças estanques. Usou em discursos a
expressão uma ou duas vezes, a partir da década de 1960, mas
sempre como sinônimo de um modelo em que a miscigenação
prevalece. Jamais edulcorou a escravidão. Casa grande e senzala,
a obra-prima de Freyre, dedica páginas e mais páginas ao relato
das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Está tudo
ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: o trabalho
desumano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens,
violadas na crença de que o estupro curaria a sífilis, as
mucamas que tinham os olhos furados e os peitos dilacerados
apenas por despertar os ciúmes das senhoras de engenho. Freyre
não omite nada; expõe. É claro que também reconhece no branco
português uma elasticidade, sem o que não poderia ter havido
mistura. É claro que descreve certo congraçamento entre o
elemento branco e o negro.
Essas características de Casa
grande e senzala, no entanto, foram tão realçadas com o decorrer
do tempo que muitos hoje acreditam, erradamente, que Freyre
escondeu os horrores da escravidão para fazer do Brasil mais do
que uma democracia racial, um paraíso.
O papel de Freyre, porém, foi
outro, muito mais marcante. No debate com o pensamento
majoritário de então, o que Freyre fez foi resgatar a
importância do negro para a construção de nossa identidade
nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso jeito de
pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro,
dando a ela sua real dimensão, sua real importância. A nossa
miscigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa
chaga, mas a nossa principal virtude.
Hoje, quando vejo o Movimento
Negro depreciar Gilberto Freyre, detratando-o como a um inimigo,
fico tonto. Os ataques só podem ser decorrentes de uma leitura
apressada, se é que decorrem mesmo de uma leitura.
Como bem tem mostrado a
antropóloga Yvonne Maggie, a visão de Freyre coincidiu com o
ideal de nação expresso pelo movimento modernista, que via na
nossa mestiçagem a nossa virtude. Num certo sentido, digo eu, a
antropofagia cultural só poderia ser mesmo uma prática de uma
nação que é em si uma mistura de gentes diversas. Esse ideal de
nação saiu-se vitorioso e se consolidou em nosso imaginário.
Gostávamos de nos ver assim, miscigenados. Gostávamos de não nos
reconhecer como racistas. Como diz Peter Fry, a "democracia
racial", longe de ser uma realidade, era um alvo a ser buscado
permanentemente. Um ideal, portanto.
Isso jamais implicou deixar de
admitir que aqui no Brasil existia o racismo. É evidente que ele
existia e existe, porque onde há homens reunidos há também todos
os sentimentos, os piores inclusive. Mas a nação não somente não
se queria assim como sempre condenou o racismo. Aqui, após a
Abolição, nunca houve barreiras institucionais a negros ou a
qualquer outra etnia. E para combater as manifestações concretas
do racismo - inevitáveis quando se fala de seres humanos -
criaram-se leis rigorosas para punir os infratores, sendo a Lei
Afonso Arinos apenas a mais famosa delas.
Mas a partir da década de 1950,
certa sociologia foi abandonando esse tipo de raciocínio para
começar a dividir o Brasil entre brancos e não-brancos, um pulo
para chegar aos que hoje dividem o Brasil entre brancos e
negros, afirmando que negro é todo aquele que não é branco. Nos
trabalhos de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso,
Oracy Nogueira e, mais adiante, Carlos Hasenbalg, se a idéia era
"fazer ciência", o resultado sempre foi uma ciência engajada, a
favor de negros explorados contra brancos racistas. A idéia que
jazia por trás era que a imagem que tínhamos de nós mesmos
acabava por ser maléfica, perversa com os negros. Era como se o
ideal de nação a que me referi tivesse como objetivo o seu
contrário: idealizar uma nação sem racismo para melhor exercer o
racismo. O papel da ciência, "para o bem dos negros", seria
desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e substituindo-a
pela realidade do racismo. Esse raciocínio levava, porém, ao
paroxismo de permitir a suposição de que um racismo explícito é
melhor do que um racismo envergonhado, esquecendo-se de que o
primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo, muitas vezes,
deixa de oprimir pelo pudor.” |
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Fonte: Rev. Veja, Jerônimo Teixeira, ed.
1969, 16/08/2006. |