OPERAÇÃO BOLÍVIA
Movimentos para interromper as mudanças
na América Latina

Ana Ester Ceceña*
 

 

Se estivéssemos em um jogo de estratégia, poderíamos reconhecer um conjunto de jogadas quase simultâneas que foram configurando a possibilidade de uma ruptura nos processos latino-americanos de recuperação de soberania, adverte a socióloga mexicana Ana Ester Ceceña. 

A Bolívia está em uma das encruzilhadas mais perigosas que já enfrentou nos últimos tempos. O dia 4 de maio, data da realização de um referendo convocado pela oligarquia autonomista da chamada Meia-Lua, a despeito da sua ilegalidade representa um ponto de inflexão, ou de ruptura, tanto nos processos internos como nos da América Latina em seu conjunto. 

Se estivéssemos em um jogo de estratégia, poderíamos reconhecer um conjunto de jogadas quase simultâneas que foram configurando a possibilidade de uma ruptura nos processos latino-americanos de recuperação de soberania: 

1. Uma campanha midiática permanente, centrada no presidente Chávez como figura do mal, que busca obstaculizar qualquer tipo de articulação alternativa daquela que é promovida pelos Estados Unidos através dos seus tratados de livre comércio, de investimento e de cooperação em segurança. 

2. Uma mudança na orientação normativa dos códigos penais, tendente a criminalizar as ações de resistência civil e de defesa do território. 

3. Uma tentativa de estender o Plano Colômbia para o Paraguai, desde um ano antes da última eleição, e para o México, com o argumento de que nesses países há presença ativa das FARC na forma de campos de recrutamento e treinamento. Esta ofensiva é mais intensa no caso do México, depois do ataque em Sucumbíos, onde foram assassinados quatro estudantes mexicanos e ferida uma quinta. 

4. Um golpe brutal contra o processo equatoriano, violando de modo flagrante sua soberania, colocando em tensão o conjunto da região. Tão grave, tão por surpresa e tão violatório foi o ataque, que obrigou a mobilizar tropas em alerta para as fronteiras do Equador e da Venezuela, levou a um inédito debate na Cúpula de Presidentes em Santo Domingo e ao rompimento de relações, até esta data, entre a Colômbia e o Equador. 

Neste caso, a mão do jogador oculto ficou ao descoberto em virtude de que tanto a Assembléia Constituinte do Equador como o presidente Correa enfrentaram o fato em toda a sua complexidade. Depois de analisar a informação técnica do bombardeio, parece fundada a suspeita de um envolvimento da base de Manta e exige-se a realização de uma auditoria que determine as atividades dessa instalação antes, durante e depois de 1º de março de 2008. E, embora esta base termine seu convênio em 2009, seu envolvimento no ataque poderia modificar sua permanência. 

Pode-se dizer que apesar da jogada ter estado muito bem planejada, e aparentemente contou com apoio interno, a julgar pela omissão de informação e resposta do exército e pela restruturação posterior das cúpulas militares, seu resultado não foi completamente satisfatório. Talvez foi ousada demais para um contendor que ainda não havia se mostrado plenamente, e que terminou sendo muito mais sólido, firme e aguerrido do que se podia supor. 

5. Campanhas de cooptação por parte da Embaixada dos Estados Unidos na Bolívia, como foi oportunamente denunciado pelo presidente Evo Morales, tentando desacreditar e debilitar a Assembléia Constituinte mas, adicionalmente, buscando formar essa força desestabilizadora que, ao lado da oligarquia da Meia-Lua, chegaram a propor, e organizar, um referendo ilegal e de enfrentamento. 

6. Como dado aparentemente menor, se for visto isoladamente, na zona de Chaco estão sendo registrados, novamente, exercícios militares que envolvem a presença de efetivos norte-americanos. Esta região, lindeira com a zona boliviana em conflito e dotada das jazidas de gás que têm sido objeto de disputa, é cenário de exercícios militares, ou de missões chamadas humanitárias, das forças armadas estadunidenses há tempos. A partir do ano 2000, esses exercícios aumentaram, coincidindo com as impugnações à privatização e com o saque dos recursos naturais por parte das organizações sociais da região. 

Durante 2006 e 2007, como parte do convênio de imunidade das tropas norte-americanas no Paraguai, concedido pelo Congresso, foi reformado o aeroporto militar de Mariscal Estigarribia, notável por seu baixíssimo tráfego, suas boas condições e suas dimensões, adequadas para receber o pouso de aeronaves “de grande envergadura”, capazes de transportar equipamento pesado e ligeiro e grandes quantidades de efetivos. 

Aos tradicionais MEDRETES (exercícios de atenção médica) realizados no Paraguai e àqueles que se realizam nos rios Paraguai e Paraná, somam-se hoje (notícia da última semana de abril) os exercícios Nuevos Horizontes (supostamente para construir escolas) no Chaco argentino.

7. Encerrando com fecho de ouro estas que são apenas as jogadas mais evidentes, mobiliza-se a Quarta Frota da Marina norte-americana para articular e institucionalizar as patrulhas em torno do Continente, que até agora eram feitas, cada vez com maior intensidade e presença, como operações isoladas. 

A Quarta Frota estabelece as novas fronteiras do Continente. Um Continente cercado a partir do mar, se a iniciativa não for impugnada. 

O desafio do referendo é, de fato, neste contexto, a provocação que poderia acender a mecha. A beligerância da oligarquia boliviana foi crescendo ao mesmo tempo que as declarações do embaixador dos Estados Unidos se tornavam mais agressivas contra o governo legítimo e constitucional de Evo Morales, sua agressividade parece buscar mais um confronto do que um resultado nas urnas. Uma guerra civil poderia começar, sem muito trâmite, e levaria o Continente inteiro para uma nova época de escuridão que só satisfaz aos corvos. 

A mesa está posta. Resta apenas a maturidade do povo boliviano para desmontar a armadilha que está fazendo crescer a tensão e acendendo a mecha. 

As últimas medidas de nacionalização do presidente Morales deixam ver que sua aposta é pelo compromisso, talvez ainda mais firme que quando assumiu suas funções, com o povo ativo, rebelde e mobilizado da Bolívia. 

“Somente o povo salva o povo”.

 

* Ana Esther Ceceña é socióloga, integrante do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) 

Tradução: Naila Freitas/Verso Tradutores

Fonte: Ag. Carta Maior, 8/5/2008.

 


Empate catastrófico e ponto de bifurcação
Álvaro García Linera*

 

Toda crise estatal pode ser reversível ou pode continuar. Se a crise continua, a etapa seguinte é o empate catastrófico. Esse empate é uma etapa da crise onde há o confronto de dois projetos de país. Este empate pode durar semanas, meses, anos; mas chega o momento em que tem que ocorrer um desempate. A análise é do vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera. 

Aproveitando este espaço, vou compor um breve esquema para ordenar alguns acontecimentos dos últimos anos no país que, acredito, pode ajudar a juntar e dar uma espécie de coerência mental a fatos que são infinitamente mais complicados do que aquilo que o pensamento pode processar. É possível definir pelo menos três grandes etapas (talvez, uma quarta, no final) do que é um processo de crise estatal que transforma a organização do Estado em seu conteúdo, em sua natureza social e em sua institucionalidade. 

A crise de Estado e sua visibilização

Na escola “Comuna”, trabalhamos há tempos sobre a idéia da crise do Estado. Em vários escritos do ano 2000 ou 2001, caracterizamos o que estava acontecendo na Bolívia como uma crise do Estado neoliberal. Houve diferentes interpretações sobre como entender a crise, mas, fundamentalmente, nós afirmamos que ela ocorre quando existem problemas na correlação de forças do Estado, ou seja, na estrutura das forças com capacidade de decisão, no conjunto das idéias dominantes que ordenam a vida política da sociedade, que permitem uma correspondência moral entre dominantes e dominados, e no âmbito das instituições (procedimentos, normas, escritórios) que tornam objetiva a correlação de forças e idéias. 

Começamos a viver esta crise de Estado a partir do ano 2000. A correlação de forças com capacidade de decisão ruía. As idéias dominantes do bloco empresarial vinculado aos grupos de investimento estrangeiro, agroexportadores e banca, e a elite política formada em torno deles, tinham perdido a capacidade de poder definir, de maneira estável e sem tropeços, as políticas públicas do nosso país. 

2000 também foi o ano em que entraram em crise — e não mais conseguiram seduzir o conjunto da sociedade — as idéias dominantes, que apresentavam o investimento externo como motor da economia, a globalização e exportação como horizonte inquestionável da nossa modernidade e as coalizões de partidos políticos como condição sine qua non para definir a governabilidade, como entendimento do sentido comum da política. Nas instituições ia ocorrendo a mesma coisa: o Parlamento não era mais um cenário de debate político, senão que estava expropriado pelo Executivo; por sua vez, o Executivo estava expropriado pelos lobbies de empresas estrangeiras e um núcleo político duro; e, por sua vez, este núcleo estava expropriado pelo investimento estrangeiro e por um par de embaixadas que definiam a situação do país. Uma primeira etapa da crise de Estado é sua visibilização, no ano 2000. 

Uma crise de Estado não necessariamente leva a um novo Estado; podem existir ajustes internos nas forças, nas alianças, nas políticas, e pode haver uma reconstituição do velho Estado. Por exemplo, o Estado nacional revolucionário de 1952 teve etapas de mutação interna e de reconfiguração que permitiram que sobrevivesse um pouco mais, através da vertente autoritária militar do Estado nacionalista. Era o mesmo Estado nacionalista, só que com ajustes, acoplamentos internos e mutações parciais de conteúdo. 

Empate catastrófico e construção de hegemonia

Toda crise estatal, então, pode ser reversível, ou bem pode continuar. Se a crise continua, a etapa seguinte é o empate catastrófico. Lenin falava de uma situação revolucionária; Gramsci, ao seu modo, falou do empate catastrófico. Ambos referem-se à mesma coisa, mas com linguagens diferentes. O empate catastrófico é uma etapa da crise do Estado, se vocês querem, um segundo momento estrutural que se caracteriza por três coisas: confronto de dois projetos políticos nacionais de país, dois horizontes de país com capacidade de mobilização, de atração e de sedução de forças sociais; confronto no âmbito institucional –pode ser no âmbito parlamentar e também no social– de dois blocos sociais formados com desejo e ambição de poder, o bloco dominante e o social ascendente; e, em terceiro lugar, uma paralisia do mando estatal e a irresolução da paralisia. Este empate pode durar semanas, meses, anos; mas chega o momento em que tem que ocorrer um desempate, uma saída. 

A saída para o empate catastrófico seria a terceira etapa da crise do Estado, que vamos denominar de construção hegemônica ascendente. Está marcada pelo conflito e, de um modo geral, ocorre em surtos. Os textos de Marx, sobre a crise política de 1848 a 1849, são muito ilustrativos dessa idéia de surtos de conflito, que vão e vêm: estabilidade, conflito, estabilidade, conflito. 

Esta construção hegemônica ascendente, por sua vez, terá três etapas e outras quatro subetapas. A primeira é a preponderância ou a vitória parcial de um projeto político nacional com capacidade de atração e de mobilização social. No caso da Bolívia, esta preponderância apresenta vários momentos ou submomentos; a consolidação da agenda de outubro é um deles, porque marca um horizonte social capaz de atrair força plebéia, indígena, campesina, popular, operária e das classes médias. E podemos dizer assim: a institucionalização da agenda de outubro é a vitória eleitoral do ano 2005. 

Esta crise, obrigatoriamente, tem que acabar em algum momento, nenhuma sociedade vive permanentemente nem em mobilizações (a idéia do anarquismo) nem permanentemente em estabilidade (a idéia do cristianismo). Pode haver instabilidades, lutas, mas em algum momento é preciso que se consolide uma estrutura de ordem que continuará tendo conflitos internos, é claro, mas depois, será possível dizer: “a partir deste momento, temos um neoliberalismo reconstituído ou temos um Estado nacional, indígena, popular, revolucionário”. Esse momento histórico, concreto, que é possível datar, é o que chamamos de ponto de bifurcação. 

O ponto de bifurcação faz com que ou haja uma contra-revolução vitoriosa e se volte ao velho Estado sob novas condições, ou que se consolide o novo Estado, ainda com conflitos, mas no contexto da sua estabilização. A contra-revolução iria requerer de uma rearticulação hegemônica das resistências regionais com capacidade de expansão do plano regional até o nacional, por apoio internacional ou por um colapso do mando e da direção do bloco revolucionário. 

Gostaria de exemplificar esta idéia do ponto de bifurcação com a crise do Estado mineiro-latifundiário, que, na verdade, tem seu início nos anos 1944, 1945; o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) ganha as eleições em 1951, mas seu ponto de bifurcação não é nesse ano, mas em 1952. A insurreição de abril é o momento de bifurcação em que o Estado, com as características e qualidades do operário, do produtivismo, da homogeneização, fica consolidado e passa a haver uma relativa estabilização, até um momento de mudança interna, de metamorfose interna, com a presença dos militares. Mas o Estado nacionalista permanece até 1985. 

Um segundo momento de ponto de bifurcação pode ser em 1986. O Estado nacional-popular entra em crise desde 1977. Golpe de Estado, eleições, golpe de Estado, eleições, eleições, golpe de Estado, governo democrático, problemas, eleições adiantadas. A direita ganha as eleições em 1985, mas o ponto de bifurcação ocorre em 1986, com a Marcha pela Vida, quando o núcleo do velho Estado, o núcleo social e o ideário social do velho Estado, caem, rendem-se, diante da força, da vitalidade, do discurso e da capacidade de coerção e coesão do novo Estado neoliberal. 

Os pontos de bifurcação podem ser insurrecionais, podem ser de exibição de forças ou (como hipótese de trabalho) podem resolver-se de maneira democrática. De qualquer modo, a idéia do ponto de bifurcação é a seguinte: primeiro, é um momento de resolução da estabilização da estrutura do novo Estado; em segundo lugar, um ponto de bifurcação inevitavelmente é um momento de força; e, em terceiro lugar, é um momento em que a política, na verdade, transforma-se na continuação da guerra por outros meios. É um momento em que Nietzsche e Foucault têm razão. 

Um ponto de bifurcação é, no fundo, um fato de força na medição prática das coisas. É um fato de liderança, de hegemonia no sentido gramsciano do termo, de liderança moral sobre o resto da sociedade. Então, se os indígenas querem se consolidar como núcleo do Estado, precisam mostrar que são capazes de recolher e de levar adiante também os interesses da classe média, do empresariado boliviano, e isolar muito poucos setores e pessoas, somente aqueles que são irredutíveis, mas tirando deles sua base social. Por isso, é importante falar com os adversários, os indígenas estavam obrigados a falar com eles. 

No caso da Bolívia, parece que estamos nos aproximando do ponto de bifurcação. É uma questão, talvez, de meses ou de dias, é apenas uma intuição reflexiva, mas não pode se atrasar muito mais. O interessante é que hoje, em 2007, quando vemos confrontados a nova Constituição Política do Estado e os estatutos autonômicos, dá a impressão de estarmos repetindo a história de 2005, quando se enfrentavam Assembléia Constituinte e referendo autonômico; dá a impressão de que a história se repete, mas na verdade não é assim. Em 2005, a Assembléia Constituinte era enfrentada como uma demanda da sociedade diante do Estado e a resposta do bloco decadente do Estado para a sociedade era o referendo autonômico. 

Hoje, as coisas inverteram-se. A proposta da sociedade ante a sociedade intermediada pelo Estado é a nova Constituição Política do Estado, e a resposta do bloco afastado, não mais do Estado, mas de um pedaço da sociedade, é o estatuto autonômico. Dá a impressão que é a mesma coisa, mas a posição dos sujeitos sociais variou em 180 graus. 

Teoricamente, então, temos que estar nos aproximando do ponto de bifurcação. Nos últimos cem anos, a primeira experiência de ponto de bifurcação é uma insurreição armada. A segunda experiência de ponto de bifurcação, a Marcha pela Vida, não é uma experiência armada, é uma exibição e uma medição de forças políticas, militares e morais, entre os blocos confrontados e, sem um só tiro, o ponto de bifurcação consolida-se, um novo Estado estabiliza-se. 

Atualmente, o governo está apostando em uma terceira forma de ponto de bifurcação, que seria uma espécie de resolução democrática por meio de uma fórmula de interação, ou seja, de aproximação sucessiva. A proposta consiste em resolver o que é um momento de tensão de forças através de vários atos democráticos. É uma das possibilidades abertas e a que o governo vai tentar promover. A idéia é que o ponto de bifurcação não se resolva nem por meio da insurreição (a hipótese da guerra civil, que sempre está latente) nem pela exibição das forças e a derrota política e moral do adversário, mas que se resolva através da manifestação reiterada do soberano a partir da relocalização dos poderes, das forças locais e regionais e do uso dos excedentes. 

Um referendo vai definir quantos prefeitos ficam ou um referendo vai definir se o Presidente e o Vice-presidente ficam no governo. Um referendo vai definir a viabilidade da nova Constituição Política do Estado, que reorganize o Estado. Outro referendo vai definir o tipo de autonomia que será implementado no país. Ou seja, os três momentos de força: como se resolve a arquitetura estatal entre o nível nacional e subnacional, como se redistribuem recursos e como se organiza o nível institucional do Estado, deverão ser definidos por meio de um fato eleitoral, se é que conseguimos chegar a ele. 

Agora, basicamente, eu diria que este é um tempo de trégua, que pode se quebrar no momento em que ficar ameaçada a Renda Dignidade, que redistribui 60% do IDH (Imposto Direto sobre os Hidrocarburos) das prefeituras. Ou, dependendo da própria estratégia da direita, pode ser até o momento do referendo sobre autonomias, sobre seu estatuto autonômico. Esse referendo tem que ir para o Parlamento, e se o Parlamento vier a modificá-lo ou a rejeitá-lo, tentarão fazer um referendo por decisão da sua assembléia autonômica regional, e se isto acontecer, vão querer aplicar seu Estatuto, e ao querer aplicá-lo sem a legalidade correspondente, chegarão a um confronto com a estrutura do Estado. Esse pode ser outro momento. 

O que mais pode acontecer nos próximos dias? Uma contra-ofensiva territorial em duas dimensões, o que de fato já está ocorrendo. O governo central com os departamentos e o confronto entre o nível departamental e os níveis subdepartamentais, regionais e municipais, que têm, na nova Constituição Política do Estado, direito a um tipo de autonomia cujos recursos e competências vão depender do Conselho Departamental. 

Portanto, os povos indígenas vão depender, nas suas competências, do governo central e têm que arrancar recursos dele. Ao mesmo tempo, as autonomias regionais e as autonomias provinciais terão que arrancar recursos e competências no âmbito departamental. Então, haverá uma tensão de forças regionais, elites locais, que vão pressionar a prefeitura, que por sua vez vai querer tensões com o governo central. Portanto, haverá uma tensão de níveis territoriais do Estado. 

É provável que em algum desses momentos se ponha a prova a capacidade de dissuasão do novo bloco social de poder e isto fará com que se visualize sua capacidade de decisão, a partir da sua capacidade de mobilização social a nível nacional, a nível departamental e, fundamentalmente, a nível regional; e será evidente na capacidade de manter o mando, o controle e o cumprimento das estruturas de coerção legítima que o Estado tem, ou seja, Polícia Nacional e Forças Armadas. 

Mais ou menos assim é que vemos o panorama para os seguintes meses. Provavelmente esta leitura inicial irá se modificando semana a semana, porque é um momento em que a política voltou a condensar-se e muito da correlação de forças está variando em um prazo muito curto. Novamente há uma condensação da política no espaço e no tempo, e isso vai nos obrigar a modificar os esquemas de interpretação. 

Nova Constituição Política do Estado

Falta incorporar aqui toda a leitura feita por Raúl Prada, da Assembléia Constituinte, como projeto social, como mito coletivo. Mas recolho o que ele disse, simplesmente localizo o que ele disse em um nível meramente instrumental de objetivação da nova programação das forças. De certo modo, esta nova Constituição deixa um núcleo indígena-popular, mas também incorpora outros setores. As preocupações da classe média: Vou poder ou não vou poder mandar meu filho para um colégio privado?: posso mandar. Vou poder ter direito de pensar a religião que professo?: tenho direito. Posso ter herança?: posso ter herança. Posso investir no país sem correr o risco de que me nacionalizem?: se eu pago impostos e cumpro as regras, tenho direito e ninguém vai me expropriar. 

O empresário também pode sentir-se reconhecido na nova Constituição. Talvez este setor teria preferido a antiga Constituição e o antigo bloco, onde, para negociar um crédito, não tinham que esperar seis meses para ter uma reunião com Evo Morales. Antes, no café de fim-de-semana ou na partida de tênis, eram definidos os negócios; agora, isso não acontece, porque Evo Morales nunca vai às partidas de tênis, nem vai às embaixadas, nem resolve negócios assim. Mas esta Constituição também os incorpora. 

Eu acredito que esta é uma prova da possibilidade de uma liderança moral e intelectual sobre o resto da sociedade. Como diz Raúl Prada, esta é uma Constituição de transição que teve que flexibilizar coisas, que precisou fazer isso para incorporar outras coisas; se não se flexibilizava era uma Constituição somente para os indígenas mais pobres, nem sequer para os indígenas médios. Precisou flexibilizar-se para que seja uma Constituição também dos mestiços, também das classes médias, também dos empresários e não só de um grupo. 

Qual grupo não está incorporado aqui? O do referendo dirimidor? A pergunta deste referendo diz: Você concorda com que a extensão das terras seja de 5 mil ou de 10 mil hectares? Quem possui mais de 5 mil hectares: 8 mil famílias; e somente 400 famílias possuem acima de 10 mil hectares. É um golpe muito forte à grande propriedade latifundiária, está claro que com estes senhores não há muito o que negociar e vamos para o referendo. Com certeza vai ganhar a opção de que não existam extensões maiores do que 5 mil hectares, está definido o núcleo irredutível que não será renegociado. 

É possível que entre hoje e a convocatória para o referendo, no Congresso, seja negociado 5 mil, 10 mil, mas está claro que há um núcleo proprietário de grandes extensões de terra e que ficou definido isolá-lo do resto da sociedade. Contudo, foi tentado o diálogo com eles, porque, por outro lado, politicamente a gente tem que esgotar todas as vias do diálogo antes de tomar uma decisão forte. É o que diz qualquer estrategista militar: esgote todos os passos, uma vez esgotados, o seguinte passo está legitimado. E aqui era preciso esgotar, uma e outra e outra vez, não por fraqueza, mas porque estamos obrigados a dialogar e a ouvir e, no pior dos casos, depois de ter esgotado todas as opções, é possível tomar outro camino de definições. Por isso tínhamos que dialogar. 

No tema dos recursos naturais, está constitucionalizada a nacionalização dos hidrocarburos. Isto significa que ninguém, com uma lei, pode voltar a privatizar o gás e o petróleo nem sob a terra nem acima dela, nem as refinarias nem a capacidade de decisão, comercialização e definição de preços dos hidrocarburos; foi posto um cadeado. Sánchez de Lozada, com a velha Constituição que declarava que as reservas eram do Estado, mas somente as reservas, privatizou tudo. Com essa experiência, aqui nós dizemos: o gás e o petróleo, nas reservas e em qualquer dos estados em que estejam, são de propriedade dos bolivianos através do Estado. Os volumes, a comercialização, os preços e condições de exportação, são definidos pelo Estado. 

Seja onde for que quiserem aplicar nisso uma lei, é impossível voltar a privatizar, a não ser que se mude a Constituição, e para isso se requer 15 anos. Ou seja, se Sánchez de Lozada voltasse em 2010, Deus nos livre, mas se voltasse, precisaria de 15 anos para voltar a privatizar os recursos. Não pode fazer isso instantaneamente como fez antes. E a mesma coisa com os bosques, com a água e com os minerais. Nesses âmbitos da proteção da riqueza nacional, a Constituição é muito forte. 

Se é aplicada à nova Constituição Política do Estado, no âmbito da luta contra a corrupção, pela primeira vez se estabelece que a lei é retroativa, não só que o delito de ter roubado do Estado é imprescritível, mas que é possível ir atrás. Ninguém se salva, todos os presidentes, vice-presidentes e ministros, antes da nova Constituição Política do Estado, é possível investigá-los e, se depois da investigação, são culpados, podem ser presos pela comissão de corrupção. Então, agora ninguém está a salvo em termos de perseguição e prisão, por roubar um lápis ou um milhão de dólares do Estado. Acho que é a única legislação na América Latina que tem essa retroatividade, porque a Constituição atual é retroativa para direitos laborais e para os presos, sempre que lhes for favorável, mas nunca foi assim para a luta contra a corrupção. 

Falta incorporar nesta análise as qualidades e características da condensação e articulação das novas direitas no país, que já superaram PODEMOS como projeto e que têm novas lideranças como: (Branco) Marinkovic, (Mario) Cossío, (Rubén) Costas, além dos comitês cívicos, um núcleo de mobilização popular e uma força de choque juvenil que será preciso saber compreender. Isto não está explicado neste esquema. Seria preciso uma análise das novas direitas na sua capacidade de mobilização social, mas acho que de modo geral, o cenário do tabuleiro de xadrez está se mexendo dessa maneira. 

De qualquer maneira, visto a partir da ótica do governo, os seguintes passos devem dar-se na sua capacidade de articular mobilização social em torno de objetivos muito concretos, como a nova Constituição e outros, e a capacidade de manter o mando das estruturas de coerção legítima que tem o Estado: justiça, Polícia, Forças Armadas. Vai depender, também, de como a direita vai se movimentar. Seja como for, ou este ponto de bifurcação se resolve por meio do apego da sociedade e seu apoio à votação e aos referendos que resolvem a consolidação do novo Estado, ou haverá algum tipo de confronto e de prova de força para o qual espero que estejamos preparados.

 

* Álvaro García Linera é vice-presidente da Bolívia. Esse texto foi apresentado na Escola "Comuna” (Bolívia), em 17 de dezembro de 2007. 

Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

Fonte: Ag. Carta Maior, 8/5/2008.

 


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