A morte anunciada da SBPC
Rogério Cezar de Cerqueira Leite(*) Nenhuma organização de cientistas, nem aquela denominada Pug Wash, dos "cientistas atômicos", sediada nos EUA, nem a prestigiosa Sociedade Real da Inglaterra, teve uma atuação tão decisiva e tão gloriosa, em seus respectivos países, como a nossa SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) durante o período de governo militar e sua transição para a democracia. E agora, por paradoxal que pareça ser, já em um triste e inexorável declínio, vê-se ameaçada de extinção, justamente pelo crescimento das duas instituições que assumiu a SBPC como sua missão defender a qualquer custo: a ciência e a democracia. Consideremos o primeiro desses dois algozes, a ciência, que no Brasil, a partir do governo Sarney, cresceu significativamente. Como consequência, associações específicas para cada ramo especializado tornaram-se imprescindíveis. Comunicações técnicas que exigiam um público profissional e que originariamente eram apresentadas em reuniões da SBPC passaram a ser canalizadas para essas sociedades especializadas. Esse é um fenômeno universal e natural, e seria ocioso tentar combatê-lo. Todavia o que não precisaria acontecer era a perda de prestígio científico da SBPC, o que teria sido possível evitar com uma estratégia enérgica para que ela se desvencilhasse dessa tarefa quando se tornou evidente a sua inexequibilidade. Não há aqui nenhuma crítica às administrações anteriores da SBPC, pois o que é evidente hoje talvez não fosse senão um enigma ontem. O que aconteceu, portanto, foi um crescimento vertiginosos das atividades de pesquisa científica que consolidou as agremiações especializadas, que, por sua vez, legitimamente se apropriaram de espaços antes pertencentes à entidade que abrangia todas essas especializações. O segundo carrasco da SBPC foi a democracia. Os dias gloriosos da entidade científica foram aqueles em que a cidadania esteve ameaçada pelo regime de exceção, quando a SBPC se ombreou e até mesmo assumiu a liderança de outras associações profissionais, tais como a OAB, a ABI etc. − e alguns sindicatos −, para se opor aos desmandos do governo militar. Com a progressiva implantação da democracia, essa missão aguerrida deixou de existir ou, pelo menos, tornou-se supérflua. O resultado foi o esvaziamento da SBPC. Na década de 70, quando o Brasil tinha menos de 3.000 acadêmicos com titulação mínima de doutor, a entidade tinha 10 mil sócios. Hoje, com o Brasil formando 6.000 doutores por ano, apenas 2.000 sócios constituem o colégio eleitoral, ou seja, são sócios com seus pagamentos em dia até 2002. Talvez tenha sido por isso que, certamente com as melhores das boas intenções, o prefeito de Recife tenha promovido, às vésperas de eleição da nova diretoria, a inscrição, em bloco, de 1.900 professores do ensino médio e fundamental, certamente todos eles com as melhores das boas intenções. E este ato foi, ao que tudo indica, induzido e ferozmente defendido por um dos atuais candidatos à presidência da SBPC, certamente com as melhores intenções. Apesar das indiscutíveis boas intenções de todos os envolvidos, muitos suspeitam que a concretização dessa manobra signifique o golpe de misericórdia para a gloriosa instituição. Pois quem respeitaria uma instituição científica que usa métodos característicos da política do coronelismo mais atrasado de começos da República? Os dias gloriosos da entidade científica foram aqueles em que a cidadania esteve ameaçada. É bom também reconhecer que esse golpe (de misericórdia ou de astúcia) é antes um sintoma do que a moléstia, pois há um vício institucional a sanificar. Candidatos à presidência, à diretoria etc. são indicados pelo conselho, que invariavelmente os escolhe entre seus próprios membros, o que, embora não possa ser qualificado como uma ação entre amigos, resulta no que poderia ser denominada de procriação consanguínea ("inbreeding"), com a consequente degradação genética. Pois bem, os três candidatos atuais à presidência, indiscutivelmente com as melhores das boas intenções, são membros do conselho. Será que neste imenso Brasil não haveria alguém, além dos membros do conselho, capaz de levar ao bom porto essa nave à deriva? E, não obstante, há um rumo, uma rota óbvia a ser tomada para a recuperação do prestígio científico e político da SBPC. Se essa instituição se concentrasse em discussões técnicas, em análises científicas, profissionais, de problemas que afetam os destinos do país, sem permitir, entretanto, que tais intervenções se contaminassem com questões ideológico-partidárias, com a demagogia que com frequência acompanha a política partidária, qual o cientista, qual o acadêmico, que se negaria, então, a se envolver ativamente, a trabalhar arduamente, se estivesse convencido de que seu esforço não seria em vão? Pois é justamente agora, neste momento de transição no país, que um fórum imparcial e tecnicamente competente, desvinculado de partidos políticos e de facções ideológicas, é essencial para elaborar e propor soluções técnicas de interesse da sociedade, para orientar esse grande corpo de jovens cientistas que emerge a cada ano e para contribuir com idéias e análises para um governo inovador. E os temas são tão numerosos e complexos que não podemos permitir que a comunidade acadêmica deixe de participar apenas porque a sua agremiação maior envelheceu.
(*) Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.
Fonte: Folha de São Paulo, 19/03/2003 - SP |
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