A morte da alma nacional (volume 1)¹
Quando
Naomi Klein²
começou a pesquisar sobre a interseção entre superlucros e megadesastres
imaginou estar testemunhando uma mudança fundamental no modo como a marcha
para “libertar os mercados” estava avançando ao redor do mundo. Como
ativista do movimento contra o crescimento das corporações em Seattle, em
1999, políticas similares estavam sendo impostas pela OMC e como condições
vinculadas aos empréstimos do FMI. As três exigências básicas eram
privatização, desregulamentação
governamental, cortes profundos nos gastos sociais. Contra elas
estavam ocorrendo protestos no mundo inteiro. Mas o 11 de Setembro de 2001
parece ter oferecido a Washington o pretexto ideal de não precisar mais
perguntar aos países se eles desejavam a versão americana de “livre comércio
e democracia” (o que hoje é uma mentira descarada para os próprios
norte-americanos perante o governo “oco” e totalmente privatizado de Bush) –
mas de começar a impor ao mundo aquela versão por intermédio da força
militar do Choque e Pavor.
Quanto mais fundo se
cava a história de como esse modelo de mercado varreu o globo, comprova-se
que a idéia de explorar crises e desastres sempre foi o
modus operandi do movimento
de Milton Friedman (morto em 2006) desde o início – essa forma
fundamentalista de capitalismo sempre precisou do desastre para se consumar.
Estava claro que os desastres facilitadores estavam se tornando maiores e
mais chocantes, pensando-se no Iraque (2002), no furacão Katrina
Algumas das violações
mais infames dos direitos humanos que acontecem há quarenta anos e são
encaradas como atos sádicos perpetrados por regimes antidemocráticos, na
verdade, tiveram como objetivo aterrorizar o público a fim de preparar o
terreno para a introdução das “reformas” radicais do livre mercado.
Na década de 70, na
Argentina e no Chile, o “desaparecimento de milhares de pessoas” sob os
governos militares de Jorge Videla e Pinochet fez parte da imposição a estes
países das políticas da Escola de Chicago. A Guerra das Malvinas em 1982
serviu de pretexto a Margaret Thatcher para derrotar os mineiros em greve e
deslanchar a primeira onda de privatizações realizada numa democracia
européia. Na China, em 1989, foi o massacre da praça Tiananmen, e as prisões
subseqüentes de milhares de manifestantes, que propiciou a imposição de uma
grande zona de exportação, suprida com uma força de trabalho excessivamente
aterrorizada para reivindicar seus direitos. Na Rússia, em 1993, foi o fato
de Boris Yeltsin enviar os tanques para bombardear o Parlamento e prender os
líderes da oposição que possibilitou a escalada de privatizações, criando os
notórios oligarcas locais.
Voltando: na década de
40, o grande atrativo da Escola de Economia de Chicago vinha do fato de que,
numa época em que idéias de esquerda identificadas com
o poder dos trabalhadores
estavam ganhando o mundo, a Escola encontrou um meio radical de defender
os interesses dos proprietários.
Ambos defendiam utopias opostas. Os marxistas eram claros: pela revolução,
dissolução do capitalismo selvagem e implantação do socialismo. Mas, para
Friedman e seus prosélitos, os meios não eram tão diretos. Segundo eles,
havia sérias falhas no capitalismo norte-americano, tais como leis
trabalhistas, controle de preços, educação e saúde subsidiadas pelo Estado,
logo a missão da Escola de Chicago era de
purificação – suprimir da
economia tais interferências
e distorções e deixar o
mercado livre para impor suas regras.
Eis o grande achado de
Klein: os membros de Chicago não viam os marxistas como seus verdadeiros
inimigos. A origem dos problemas estava nas idéias dos keynesianos
americanos, dos socialdemocratas europeus e, sobretudo, dos
desenvolvimentistas latino-americanos da Cepal (Comissão Econômica para a
América Latina), agência das Nações Unidas criada em 1948, sediada em
Santiago do Chile, presidida pelo economista argentino Raul Prebisch e tendo
o brasileiro Celso Furtado como seu membro mais brilhante!
Os cepalinos
acreditavam não numa utopia, mas numa economia mista, encarada pelos membros
de Chicago como uma tremenda miscelânea de capitalismo para produção e
distribuição de bens de consumo, socialismo para a educação, propriedade
estatal dos recursos essenciais coma a água, os mares nos limites da
plataforma continental, as riquezas do solo, etc., além duma legislação
destinada a amenizar os excessos do capitalismo.
Assim como o
fundamentalista religioso mantém um respeito ressentido por fundamentalistas
de outras religiões e ateus confessos, mas despreza os que crêem
moderadamente, racionalmente, sem fanatismo cego, os membros de Chicago
declararam guerra aos profissionais adeptos da economia mista.
Nos anos 1950, os
desenvolvimentistas como os keynesianos e os socialdemocratas dos países
ricos estavam em condições de jactar-se de uma série de sucessos econômicos
impressionantes. Mas o laboratório mais avançado do desenvolvimentismo era a
América do Sul, o Cone Sul: Argentina, certas regiões do Brasil, Chile,
Uruguai. Durante esse período espetacular de expansão, o Cone Sul começou a
se parecer mais com a Europa e os Estados Unidos do que com o resto da
América Latina e demais países do Terceiro Mundo. Na década de
Erradicar o
desenvolvimentismo no Cone Sul, onde este havia criado raízes mais
profundas, era o grande desafio. Então dois entusiastas da teoria Friedman,
John Foster Dulles, secretário de Estado de Eisenhower, e seu irmão, Allen
Dulles, diretor da recém-criada CIA, chegaram ao poder. Antes disso, ambos
haviam trabalhado na firma de direito nova-iorquina Sullivan & Cromwell,
representando corporações que só tinham a perder com o desenvolvimentismo:
J.P.Morgan & Company, International Nickel Company, Cuban Sugar Cane
Corporation e United Fruit Company.
E surgiu um plano que,
em sua essência, transformaria Santiago num laboratório de experimentos do
livre mercado, dando a Milton Friedman aquilo com que sempre sonhara: um
país no qual pudesse testar suas teorias do “laissez-faire”,
tão execradas desde os estragos do
crash da Bolsa em 1929. O plano era simples: em 1956, o governo
dos Estados Unidos, com o dinheiro dos contribuintes e da Fundação Ford,
financiou cem estudantes chilenos para se titularem pela Universidade de
Chicago. Entre 1957 e 1970, o programa incluiu estudantes da Argentina,
Brasil e México. Com mais financiamentos da USAID (United States Agency for
International Development), os Garotos de Chicago do Chile viraram
embaixadores entusiasmados do que os latino-americanos chamam
“neoliberalismo”, viajando a vários países a fim de “expandir
esse conhecimento pelo continente, confrontando posições ideológicas que
impediam a liberdade e perpetuavam a pobreza e o atraso”.
Como uma forma de
imperialismo intelectual o projeto era imbatível, mas havia um problema: não
estava funcionando! De acordo com os relatórios da Universidade de Chicago,
o principal objetivo do projeto era treinar uma geração de estudantes “que
viessem a se tornar líderes intelectuais no campo econômico do Chile”. Mas
os garotos de Chicago não só não lideravam em lugar algum, como eram
publicamente ridicularizados.
Pessoal, agora vou
citar Klein literalmente: “Os
Garotos de Chicago não poderiam ter escolhido uma parte do mundo menos
hospitaleira a esse tipo de experimento do que o Cone Sul nos anos
“O problema era grande
e profundo: em
“Entre 1960 e
Sim, aqui fizeram
precisamente isso – quer dizer, os militares começaram o que FHC concluiu
com chave de ouro: em cinco ou seis anos, clones malditos dos intelectuais
de ontem destruíram o que fora construído ao longo de décadas, transformaram
o saldo positivo da balança comercial num “rombo” permanente, estimularam o
envio de dólares para o exterior, elevaram os juros para cobrir os “rombos”
criados, privatizaram a troco de banana e com dinheiro público as
telecomunicações, os bancos estatais, as hidrelétricas. Com “choques de
gestão” quebraram a União, os estados, os municípios. Destruíram a
indústria, a agricultura, o sistema educacional, instituíram o desemprego
estrutural. Destruíram mais. Destruíram o sonho, o passado e o futuro:
mataram a Alma Nacional.
(By
the way: continuo com o tema na próxima semana. Me aguardem.)
¹ Em memória do jornalista econômico Aloysio Biondi, que em setembro de 1999 escreveu um artigo com este mesmo título na extinta revista Bundas. ²In A DOUTRINA DO CHOQUE – A ascensão do capitalismo de desastre, pgs. 18,68, 70, 71, 75, 76, 78, 79, 127, 128 e 129. (Rio, Nova Fronteira, 2008)
Fonte: Congresso em Foco, 10/10/2008.
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