Mordomia nas alturas

 

Diretores da Anac abusam de viagens de cortesia oferecidas pelas empresas que
deveriam fiscalizar
 

Nos últimos dez meses, os brasileiros conheceram o inferno nos aeroportos. Filas, atrasos e cancelamentos de vôo viraram rotina. Tumultos, desrespeito e humilhação de passageiros transformaram uma simples viagem em aventura deletéria. Na semana passada, o presidente Lula disse que o governo não sabia da gravidade dos problemas do setor aéreo. Descobriu isso, ao que tudo indica, somente depois do acidente com o avião da TAM que matou 199 pessoas. Com algum esforço, pode-se entender por quê. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o órgão federal criado para fiscalizar o setor, não deve ter contado nada ao presidente. E nem poderia. Os diretores da Anac não enfrentam filas, não precisam fazer check-in, nunca têm o nome incluído em overbooking e o mais interessante: apesar do tratamento vip, eles também não desembolsam um único tostão para viajar. Isso mesmo: os diretores da Anac, que são pagos pelo contribuinte para fiscalizar as companhias aéreas, viajam de graça – e viajam muito. Levantamento feito pela agência entre julho de 2006 e fevereiro deste ano revela que apenas o presidente da Anac e seus quatro diretores voaram nada menos que 288 vezes usando bilhetes de cortesia oferecidos pelas empresas que deveriam fiscalizar. A mordomia aérea, oficialmente, é toda usada para o cumprimento do dever profissional. Os diretores teriam cruzado os céus do Brasil, a fim de fiscalizar aeroportos e participar de reuniões de trabalho. Seria mesmo?

O campeão de viagens é o diretor baiano Leur Lomanto. Sozinho, ele requisitou 98 passagens às companhias para realizar "inspeções" nos aeroportos – registrando uma incrível média de três vôos por semana. O curioso é que a maioria das "inspeções" do diretor ocorreu no aeroporto de Salvador, para onde ele solicitou nada menos que 39 bilhetes. Diligente, Lomanto, ao que parece, não se importava nem com as dificuldades de calendário. Uma de suas "inspeções" em Salvador foi agendada para o dia 29 de dezembro, uma sexta-feira, às vésperas do feriado de Ano-Novo. Nesse período, os passageiros comuns enfrentavam um dos piores momentos do caos. Lomanto não. Ele não precisou enfrentar fila nem teve, ao que se sabe, problema algum para pegar seu cartão de embarque. Nem mesmo no retorno que ocorreu, é claro, depois de uma esticadinha nas comemorações. Afinal de contas, ninguém é de ferro.

O presidente da agência, o gaúcho Milton Zuanazzi, é outro que literalmente bota a mão na massa. Criticado por entender mais de turismo, sua especialidade, do que de aviação, ele requisitou às companhias aéreas 69 passagens para "inspeções e reuniões", quinze delas ocorridas em Porto Alegre. Indagado pelos parlamentares da CPI do caos aéreo, Zuanazzi justificou a parceria como uma necessidade, já que a Anac não tinha orçamento para comprar as passagens. Já o paulista Josef Barat – aquele diretor que foi dar uma palestra nos Estados Unidos à custa da TAM e que antes de assumir o cargo na Anac também comandava uma empresa que prestava serviços de consultoria às companhias aéreas – é realmente um viajante nato. Incluindo o passeio americano, ele voou 51 vezes nas asas da companhia, a maioria, 28 trechos, para São Paulo. Barat não vê nada de mais nessa relação amistosa entre fiscais e fiscalizados. Chegou a dizer que é assim que funciona em outros órgãos do governo, como o Ministério da Fazenda e o Banco Central. Os dois órgãos desmentiram o diretor.

A diretora paulista Denise Abreu, aquela que tem um irmão que presta serviços à TAM, é um caso que merece atenção. Ela requisitou 69 passagens no período de oito meses. Embora também não faça parte de suas atribuições profissionais, a maioria das viagens da diretora foi justificada como realização de "inspeções". Denise Abreu não recusa uma mordomia oferecida pela turma que ela deveria estar empenhada em fiscalizar. No ano passado, foi convidada pela Gol para participar de uma festa em Seattle, nos Estados Unidos, para comemorar a incorporação pela empresa de um novo modelo de avião. Era um vôo literalmente para poucos convidados. O Boeing da Gol decolou do Brasil com apenas cinco pessoas a bordo: Denise Abreu mais quatro diretores da Gol. A volta também foi bancada pela empresa. Jorge Luiz Velozo é o único dos diretores da Anac com perfil técnico. Porém, se observado apenas o critério dos seus colegas da Anac, ele é o que menos trabalhou. Usou os serviços gratuitos das empresas uma única vez. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, aguardou durante toda a semana a renúncia voluntária dos diretores da Anac. Em pé.

 

 NAS ASAS DAS COMPANHIAS AÉREAS

 

 
 


Montagem com fotos Joedson Alves-AE/Cristina Gallo-BG Press e Lula Marques - Folha Imagem

 

 

Fonte: Rev. Veja, Diego Escosteguy, ed. 2020, 8/8/07.


Denise é fogo
 

Briguenta e neófita no mundo da aviação, a diretora da Anac é um símbolo do prejuízo
geraado pelo aparelhamento político das agências reguladoras

"Não faça mais isso, senão eu
abro sua caixa-preta"

Brigadeiro José Carlos Pereira, presidente da Infraero, ameaça a diretora da Anac, Denise Abreu, após reunião do governo sobre o caos aéreo

 

 


É FESTA
Denise Abreu e seu charuto durante um casamento na Bahia, em março.
“Todos fumaram, por que só tiraram foto de mim?”, diz ela.

Menos de 24 horas depois da tragédia com o avião da TAM, no dia 18 de julho, um grupo criado às pressas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para avaliar o tamanho da crise reuniu-se no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Além de representantes do Palácio do Planalto e da Aeronáutica, estavam presentes o presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, e três diretores da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), entre eles a advogada Denise Abreu. Quando entrou em discussão a reabertura da pista principal do aeroporto, começou um bate-boca entre Denise Abreu e Pereira.

“Vocês autorizaram a reabertura da pista sem ouvir a Anac”, disse Denise. “Não. Os técnicos de vocês acompanharam o pessoal da Infraero”, afirmou Pereira. Julgando que Denise tentava transferir para a Infraero uma responsabilidade que ele queria compartilhar, Pereira disse a Denise: “Não faça mais isso, senão eu abro sua caixa-preta e mostro quantos passageiros a TAM leva em cada avião: gente acomodada na cabine e até nos banheiros, sem que vocês façam nada”. O episódio foi relatado a Época por pessoas presentes à reunião. Denise Abreu nega o bate-boca. Por meio de sua assessoria, o brigadeiro Pereira disse que a referência à caixa-preta de Denise e de seu suposto favorecimento à TAM foi feita em tom de blague.

Criada para regular e fiscalizar o setor aéreo, a Anac é acusada – até dentro do governo – de favorecer as empresas em detrimento dos passageiros. Seus diretores, que deveriam ser independentes e especialistas em aviação, foram quase todos escolhidos por indicação política. Até o acidente com o vôo 1907 da Gol, no ano passado, quase ninguém havia reparado nisso. Hoje, dez meses de caos e mais 199 mortos depois, o comando da Anac passou a ser um incômodo para o governo.

Desde que foi fotografada fumando charuto numa festa na Bahia, em março, num fim de semana em que milhares de passageiros se desesperavam nos aeroportos à espera de vôos atrasados e cancelados, Denise Abreu tornou-se o rosto mais conhecido dos pecados da Anac. “Muita gente fumou charuto naquela festa. Por que só tiraram foto de mim?”, disse Denise a Época. Aos 45 anos, divorciada, um filho, Denise é procuradora do Estado de São Paulo. Desde a década passada está afastada para ocupar cargos políticos. No governo do tucano Mário Covas, foi chefe de gabinete da Secretaria de Saúde de São Paulo e depois foi para a Febem na tentativa de contornar uma crise.

Chegou a Brasília em 2003, para trabalhar na Casa Civil, a convite do então ministro José Dirceu, seu colega de faculdade nos anos 80. Com a queda dele, permaneceu no ministério, na equipe de Dilma Rousseff. Depois, foi para a Anac, indicada por Dirceu. Ele nega a indicação. Antes disso, segundo Época apurou, Dirceu tentara arrumar um emprego para a amiga no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e acabou desistindo, porque os senadores da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado avisaram que ela seria barrada por desconhecimento técnico.

Na Anac, Denise é conhecida por falar alto e bater na mesa para defender seus pontos de vista. Funcionários contam que ela costuma exercer pressão sobre colegas diretores e subordinados em conversas no fumódromo improvisado no terraço do último andar do prédio da agência. Incomodado com o que considerava uma área de conspiração dela, o presidente da Anac, Milton Zuanazzi, mandou fechar o fumódromo.

Entre os companheiros da Anac, Denise é criticada por tratar de modo rude os subordinados. “Trabalho até 16 horas por dia, delego e cobro”, afirma Denise. “Talvez achem que isso é arrogância.” Há dez meses, logo depois da queda do avião da Gol, ela irritou os parentes dos mortos que buscavam informações no aeroporto de Brasília. “Vocês são inteligentes. O avião caiu de 11.000 metros de altura. O que vocês esperavam? Corpos?”, afirmou. Logo após a tragédia com o vôo 3054 da TAM, ela tratou de eximir a Anac de responsabilidades. “O acidente não foi no ar. Ninguém bateu no ar, tá? Então, o acidente não tem nada a ver com o número de vôos em Congonhas”, disse.

De acordo com a legislação das agências reguladoras, a diretoria da Anac deveria ser ocupada por especialistas na área. Na prática, vigora o apadrinhamento político. Além de Denise, o presidente da agência, Milton Zuanazzi, chegou ao cargo por suas relações com Dilma e com o ministro Walfrido dos Mares Guia (Assuntos Institucionais). Outro diretor, o ex-deputado Leur Lomanto (PMDB-BA), foi indicado pelo próprio partido depois de relatar o projeto de lei que criou a agência. O economista José Barat seria uma indicação das companhias aéreas, segundo funcionários de uma dessas empresas. A exceção é o diretor Jorge Velozo, aviador da Força Aérea Brasileira (FAB), especialista em segurança de vôo.

Sem profissionais independentes, a Anac dá sinais que reforçam a suspeita sobre sua atuação. Sua primeira resolução, no primeiro semestre de 2006, privilegiou Varig, Gol e TAM na distribuição das permissões para pousos e decolagens no aeroporto de Congonhas e deixou em desvantagem as companhias menores, como a BRA, a Ocean Air e a Pantanal. Autoridades que acompanharam o processo disseram a Época que o Sindicato Nacional das Empresas Aéreas (Snea) participou da redação do projeto de lei de criação da Anac. Por meio de sua assessoria de imprensa, o Snea nega participação no projeto.

Outro indício da proximidade entre a Anac e as empresas que deveria fiscalizar ocorreu no fim do ano passado. O diretor Josef Barat participou de um evento promovido pela TAM em Nova York, com despesas pagas pela companhia. Em sua defesa, ele diz que a viagem foi aprovada pela corregedoria da Anac. Na semana passada, Barat disse que é comum empresas pagarem despesas de viagem para funcionários do governo participarem de eventos no exterior. Afirmou que funcionários do Ministério da Fazenda e do Banco Central viajam com despesas pagas por bancos. O Ministério da Fazenda e o BC negaram a prática.

A ingerência das companhias aéreas na Anac é um contra-senso. A Anac tem a missão de fazer as regras e de fiscalizar se elas são cumpridas. Para agir com a independência necessária, é fundamental ter uma diretoria técnica. “Se os diretores não têm segurança para sustentar uma decisão, ficam reféns daqueles que deveriam regular”, diz a economista Lúcia Helena Salgado, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), especializada em agências reguladoras.

As agências reguladoras foram criadas no governo Fernando Henrique Cardoso para fiscalizar setores econômicos recém-privatizados, como telecomunicações ou energia. O modelo foi copiado dos países ricos. Para escapar da pressão política, por lei seus diretores têm mandato fixo – no caso da Anac, de cinco anos. Isso sempre incomodou o governo Lula, cuja preferência é concentrar o poder nos ministérios. Na impossibilidade de alterar o modelo, o governo tem preferido levar sua interferência política para dentro das agências sempre que possível.

As nomeações políticas dos diretores começaram ainda no primeiro mandato. Em vez de simplesmente cumprir a lei e fortalecer a Anac com especialistas, o governo pensa agora em mudar as agências. Deputados e senadores usam a impossibilidade de demitir os diretores para tentar votar projetos que reduzam o poder das agências. Trata-se de um retrocesso. O problema central não é a existência das agências, mas seu aparelhamento político.

Na semana passada, enquanto discutia com o Congresso saídas legais para substituir a diretoria da Anac, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu seqüência ao loteamento político do segundo escalão. Confirmou a nomeação do urbanista Luiz Paulo Conde, ex-prefeito do Rio de Janeiro, para a presidência de Furnas, a maior estatal do país no setor energético. Sua indicação era uma imposição do PMDB. Nos próximos dias, o ex-governador de Santa Catarina Paulo Afonso Vieira, também peemedebista, poderá ganhar um cargo na Eletrosul. Como Conde, Paulo Afonso não é da área: é advogado. Os dois conhecem o setor elétrico tanto quanto Denise ou Zuanazzi entendem de aviação. Não é difícil perceber que acaba de aumentar o risco de apagões.

 

Fonte: Rev. Época, Ronald Freitas, ed. 481, 6/8/07.

 


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