O mito do progresso
Convido
o leitor a enfrentar um imenso desafio: tentar desconstruir Qual o significado da palavra progresso no imaginário da sociedade global? Em Alice no país das Maravilhas, de Lewis Carrol, o gnomo irascível Humpty Dumpty afirma: "Quando utilizo uma palavra, ela significa precisamente aquilo que eu quero que ela signifique. Nada mais, nada menos." Alice pergunta se uma palavra pode significar coisas diferentes. Dumpty, qual um hegêmona de plantão, replica altivamente: "O problema está em saber quem manda. Ponto final." No alvorecer do século 21, paradoxos estão por toda parte. A capacidade de produzir mais e melhor não cessa de crescer; e exige ser sinônimo de progresso. Mas, para além dos espetaculares e inegáveis sucessos do engenho humano que tornaram a vida muito mais confortável e mais longa, o progresso parece ter perdido o rumo; e traz consigo maior exclusão, concentração de renda e degradação ambiental. Os países mais avançados produzem armas de impensável poder de destruição, ao mesmo tempo que desenvolvem e divulgam globalmente uma cultura que se compraz em imagens de extrema violência e estimula a intolerância. Tão inquietantes quanto os riscos nucleares são agora os decorrentes da microbiologia e da engenharia genética, com seus graves dilemas éticos e morais. Como equilibrar os benefícios potenciais da robótica e da nanotecnologia com o perigo de desencadearem um desastre absoluto que, na opinião de vários pensadores eminentes, pode comprometer irremediavelmente nossa espécie? Como manter a governabilidade global quando uma pequena elite cada vez mais afluente vive cercada literalmente por uma multidão crescente de excluídos, ou quando o padrão tecnológico em vigor produz anualmente bilhões de toneladas de resíduos tóxicos irrecicláveis que envenenam a Terra? São esses os temas centrais de meu último livro, O Mito do Progresso, que a Editora Unesp acaba de editar. A partir do século 18 a doutrina do progresso se havia convertido num credo. Ao otimismo dos enciclopedistas se somaram as idéias de soberania popular de Rousseau; e, em meio aos conceitos de Malthus e Darwin, duas vertentes centrais se impuseram ao século seguinte: o socialismo e o individualismo, ambos adeptos do progresso enquanto determinismo histórico. Os imensos saltos tecnológicos na transição do século 19 para o século 20, porém, tiveram de conviver com a catástrofe de duas trágicas guerras mundiais e do terror nuclear - e a idéia de progresso entrou em recesso. Mas a contínua inovação tecnocientífica não parou de criar fantásticos produtos e serviços, induzidos a ávido consumo. Ao final do século passado o progresso foi reabilitado pelo neoliberalismo globalizado, que anunciava garantir paz e abundância por meio do mercado livre. A fantasia do "fim da História" durou muito pouco. O conceito de destruição criativa, essência da acumulação capitalista contemporânea, passou a exigir um sucateamento cada vez mais rápido dos ciclos tecnológicos para manter a roda do consumo em movimento. Como a renda gerada é insuficiente, agora se avança também pela incorporação dos mercados pobres à lógica da acumulação: miseráveis africanos utilizam celulares reciclados e recarregados por baterias transportadas em bicicletas; e latas de leite condensado, com fita vermelha pintada, são promovidas a presente de aniversário. Uma questão central brota cada vez com mais força: esse tipo de desenvolvimento nos deixa mais sensatos e felizes? Ou podemos atribuir parte de nossa infelicidade precisamente à maneira como utilizamos os conhecimentos que possuímos? A idade dos velhos aumenta, mas a qualidade de sua vida é cada vez mais precária. As UTIs tornam-se depósitos de mortos-vivos em condição desumana; e uma ciência vitoriosa e onipotente passa a "inventar" continuamente doenças para justificar novos medicamentos que fazem os lucros da pujante "indústria médica". Para além dos seus irresistíveis sucessos, as conseqüências negativas do progresso – transformado em discurso hegemônico – acumulam riscos crescentes que podem levar de roldão o imenso esforço de séculos da aventura humana de tentar estruturar um futuro viável e mais justo. É inócuo atribuir inocência à técnica, argumentando que o foguete que carrega o míssil nuclear é o mesmo que leva os satélites de comunicação. Embalados pelas novas realidades, assistimos a um mundo urbano-industrial-eletrônico cada vez mais reencantado com as fantasias oníricas de "pertencimento" a redes, comunicação "plena" em tempo real, compactação digital "infinita" – de dados, som e imagem –, expansão cerebral com a implantação de chips e transformações genéticas à la carte. Mas, apesar de toda a magia das novas tecnologias transformadas pela propaganda em objetos de desejo, há imensas preocupações quanto à direção desses vetores, que não são escolhidos democraticamente pela sociedade mundial. Maurice Merleau-Ponty dizia que chamar de progresso nossa dura e penosa caminhada nada mais é que uma elaboração ideológica das elites. Assim como hoje é caracterizado nos discursos hegemônicos, esse progresso é apenas um mito renovado para nos iludir de que a História tem um destino certo e glorioso, que se construiria mais pela omissão embevecida das multidões do que pela vigorosa ação da sociedade respaldada pela crítica de seus intelectuais. Convido, pois, o leitor a aprofundar os significados desses impasses na filosofia, na economia, na ciência médica e na ecologia. E a enfrentar um imenso desafio: tentar desconstruir o mito do progresso e libertá-lo da lógica do capital. Caso não sejamos capazes de fazê-lo, poderemos estar, enquanto humanidade, dando passos largos em direção a graves riscos quanto à nossa própria sobrevivência como espécie e cultura.
* Gilberto Dupas é presidente do Instituto
de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e coordenador-geral do Grupo
de Conjuntura Internacional da USP. Fonte: O Estado de S. Paulo, 27/5/2006 |