FRANÇA
Estudantes franceses
saem às ruas para exigir empregos estáveis A primavera em Paris inspira grandes gestos. Os franceses preferem essa estação, mais que qualquer outra, para la révolution, tradição de grande prestígio no país. A Comuna de Paris, por exemplo, a revolta popular que inspirou Karl Marx a escrever o Manifesto Comunista, durou de março a maio de 1871. Em maio de 1968, os estudantes da Sorbonne ergueram barricadas nas ruas da capital francesa dispostos a mudar o mundo – e tiveram bastante sucesso. Nas últimas duas semanas, os estudantes franceses voltaram às ruas, em ruidosas manifestações contra o governo. Um observador desatento poderia imaginar que uma nova geração levantou a bandeira revolucionária. Há realmente semelhanças com o que ocorreu em 1968. Sobretudo no visual. Mais uma vez, policiais vestidos de preto fecharam as ruas próximas à Sorbonne, novamente o ponto de partida das manifestações. As diferenças, porém, são maiores. O que inspira os arroubos desta primavera não é o desejo de mudanças. Ao contrário, os estudantes franceses desta vez lutam pelo direito de ter uma vida igual à de seus pais. O motivo dos protestos é um projeto de lei para facilitar o primeiro contrato de trabalho de jovens com menos de 26 anos. Apresentado pelo primeiro-ministro Dominique de Villepin, o Contrato do Primeiro Emprego, CPE, permitiria a demissão sem justa causa durante os dois primeiros anos, considerados um período de experiência. Depois disso, o contrato se tornaria permanente. O objetivo é cortar o desemprego, que é de 9,5% da força de trabalho, mas atinge 23% entre os jovens. O CPE poderia ajudar a criar oportunidades sobretudo para os filhos de imigrantes, os pobres da periferia. Entre eles, a taxa de desemprego é de 40%. Quem, honestamente, pode se colocar contra um projeto de lei com propósitos tão nobres e moderados? Bem, na imaginação social dos franceses não há nada de nobre e moderado num contrato de trabalho que não garanta virtual estabilidade até a aposentadoria. "Os estudantes de 68 lutavam por mais liberdade e mudanças profundas na política, na sociedade e na cultura francesas", disse a VEJA o economista francês Gilles Saint-Paul, da Universidade de Ciências Sociais de Toulouse. "Hoje, as reivindicações são conservadoras. Eles querem manter os direitos que marcaram a vida profissional das gerações anteriores e têm medo de mudanças."
A razão da revolta entre os universitários pouco tem a ver com o efeito imediato do CPE em suas vidas – eles só entrarão no mercado de trabalho com 25 ou 26 anos, depois de receber o diploma. "Os jovens com boa formação universitária temem que o CPE seja o primeiro passo de uma reforma mais ampla para flexibilizar a lei trabalhista francesa", disse a VEJA a economista e cientista política suíça Hedva Sarfati, autora de mais de dez livros sobre o mercado de trabalho europeu. Em termos práticos, o capitalismo funciona muito bem na França, a quarta maior economia do mundo. Paradoxalmente, como escreveu o comentarista John Vinacur, do International Herald Tribune, o "capitalismo é demonizado no país em benefício da veneração de um passado revolucionário romantizado". O que está em jogo no momento, portanto, é algo muito sério: o direito de nascença de todos os franceses de ser protegidos contra qualquer risco econômico. O mercado de trabalho francês é um dos mais amarrados que existem. A jornada de trabalho é folgada (35 horas semanais), o salário mínimo é generoso (1 450 dólares, contra 600 na vizinha Espanha), as férias são prolongadas (seis semanas), a aposentadoria é precoce (60 anos). As demissões são raras porque a legislação trabalhista – um calhamaço com 2.500 páginas e 10 quilos – obriga as empresas a pagar indenizações entre doze e 24 meses de salário ao funcionário demitido sem justa causa. O modelo representa um peso enorme para os cofres públicos, reduz a competitividade francesa no mercado global, afasta investidores estrangeiros e inibe a criação de empregos. Demitir é tão complicado e caro que a maioria das empresas prefere firmar contratos temporários com seus funcionários, mesmo que isso tenha um custo em termos de produtividade. De acordo com o Ministério do Trabalho, a idade média para um francês conseguir um emprego permanente, com toda a proteção da lei, é 33 anos.
O assunto é especialmente delicado na França – mas encontrar um modo de flexibilizar o mercado de trabalho sem provocar a ira da população é um dilema que perturba toda a Europa Ocidental. Herança de um Estado do bem-estar social que trouxe qualidade de vida para os europeus, a proteção ao emprego nos moldes tradicionais tornou-se economicamente inviável. Os países que começaram mais cedo e insistiram nas reformas têm hoje economia mais dinâmica e desemprego mais baixo. O caso de maior sucesso é a Inglaterra, onde os trabalhadores têm total liberdade para negociar os termos do contrato de trabalho com seus empregadores. Trata-se de uma herança das reformas efetuadas nos anos 80 pela primeira-ministra Margaret Thatcher. Para impor sua visão de uma economia moderna, a dama de ferro precisou primeiro derrotar os sindicatos ingleses numa demorada queda-de-braço. As mudanças na legislação trabalhista são, em parte, responsáveis pelo fato de os ingleses liderarem o ranking europeu de atração de investimentos externos e possuírem índices de desemprego de apenas 4,7%, contra 8,7% da média européia (veja quadro abaixo). O que torna esse tipo de mudança tão difícil não é exatamente a falta de argumentos econômicos, mas seu impacto na psicologia social. Muitos franceses acreditam que o sistema de proteção social existente no país faz parte de sua cultura e de sua identidade nacional. Um argumento bastante ouvido nos debates entre intelectuais transmitidos pela televisão – muito populares entre os franceses – é o de que a curta jornada de trabalho permite ao cidadão dedicar maior tempo à família, ao lazer e às atividades criativas. Na verdade, a glória da cultura francesa não decorre do excesso de lazer, mas do trabalho duro de gerações passadas. Um estudo da universidade americana Harvard, publicado no ano passado, derruba o mito da preguiça atávica. Até a década de 70, os europeus (incluindo os franceses) trabalhavam a mesma quantidade de horas e dedicavam às atividades de lazer um tempo semelhante ao dos americanos. O cenário atual, tão entranhado na identidade nacional francesa, tem apenas trinta anos. É compreensível que os jovens franceses queiram emprego vitalício – quem não quer? Infelizmente, os europeus chegaram a uma situação em que, sem cortar direitos de alguns, não há como estender a todos os benefícios da prosperidade econômica.
Fonte: Rev. Veja, Ruth Costas, Ed. 1949, 29/03/2006. |