FALCÃO - MENINOS DO TRÁFICO
Minha história eu
mesmo conto, relata o produtor do documentário Em depoimento exclusivo à CARTA MAIOR, parceiro do rapper MV Bill discorre sobre projeto exibido no Fantástico. "O filme é para isso. Para contar nossa história do jeito que a gente acha que deva ser contada. Não é para resolver os problemas da favela". RIO DE JANEIRO - As armas são de brinquedo. A maconha é de eucalipto. O pó, de algum bagulho parecido com talco. A brincadeira das crianças das favelas é inspiradas no mundo do tráfico. “Pó de dez, pó de dez”, eles apregoam na boca de fumo de mentira. Na encenação tem a turma do arrego, que recebe o suborno para não denunciar nem prender o bando de traficantes fictícios. Logo depois, eles capturam um X-9, que alcagüetou os amigos para a quadrilha rival. O vacilão está pronto para ser executado, quando a turma de garotos ouve a rajada de tiros de verdade. Ali do lado do cenário da brincadeira a execução era real. Com cenas como essa, exibidas neste domingo (19), no Fantástico, o documentário “Falcão – Meninos do Tráfico” manteve em estado de choque, por mais de uma hora, muitos milhões de lares brasileiros. Foi uma descarga de realidade sem precedentes na televisão brasileira, talvez mundial. A vida dos garotos que protegem as favelas dominadas pelo tráfico é desumana. “Falcão parece um passarinho que não dorme à noite”, diz o garoto com a imagem do rosto desfigurada para evitar a identificação. Arma pesada na mão ele aparenta ter 14 ou 15 anos. Os falcões aparecem aos bandos no documentário. Dos mais jovens até o que acaba de fazer 18 anos e não sabe o que fará quando tiver de sair da boca. Quando o rapper MV Bill pergunta ao garoto, que não deve ter mais que 11 anos, o que ele quer ser quando crescer, a resposta vem rápida, sem vacilação: “Quero ser bandido”. No outro extremo, o Falcão que sente a falta da mãe chora ao lembrar que desde pequeno queria ser palhaço. A mãe prometia levá-lo ao circo, mas nunca conseguiu cumprir. “Eu queria é ser palhaço. É meu sonho desde pequeninho. Se conseguisse entrar em uma escola de circo, saía da boca agora”. São inúmeras as imagens e depoimentos chocantes do documentário. Sobre as drogas: “Isso aqui destrói a vida do homem. Destrói o cara que ele não vira nada. Mas é dele que nós ganha dinheiro”. Sobre a polícia: “Se acabar o crime, acaba a polícia. Porque quem dá dinheiro pra polícia somos nós. Se acabar o tráfico de drogas eles vão ficar massacrados”. Sobre a favela: “A realidade da vida é que o bagulho é doido. A realidade da favela é que o bagulho é doido”. Sobre o governo: “Sou um cara que nem era pra tá aqui. Mas isso aí é o que o governante quer. Não liga pra nada”. Sobre as mães: “Eu trafico pela minha mãe. Minha mãe fez tudo por mim, agora tenho que fazer alguma coisa por ela”. Sobre os pais: “Não conheci meu pai, não sei se tá vivo ou se tá morto. Tenho 17 anos e, até hoje, nunca tive um aniversário. Ninguém fez um aniversário pra mim”. Sobre a morte: “Se morrer, nasce outro que nem eu, pior ou melhor. Se morrer, vou descansar”. O documentário feito por MV Bill e seu produtor, Celso Athayde, choca pela realidade crua. Mas choca mais pela constatação de que esse câncer da sociedade brasileira não terá fim. A mãe chora a morte do filho, que morreu quase menino, mas deixou outra criança no mundo. Quem sabe para substituir outro Falcão daqui alguns anos. A outra mãe conta aflita como o filho que ainda não completou 3 anos de idade já conhece a realidade do tráfico: “Ele sabe o que é fuzil, o que é maconha, diz que é pó de cinco, pó de dez”. Na quinta-feira, CARTA MAIOR conversou com os dois responsáveis pelo documentário. A entrevista com MV Bill, publicada na sexta-feira, teve grande repercussão ao antecipar a dramaticidade das imagens que seriam exibida pelo Fantástico. Foram mais de 300 comentários de leitores, um recorde absoluto. O depoimento a seguir, é uma edição da conversa com Athayde, na qual ele explica o contexto do projeto Falcão e de suas implicações: “Lula é tão culpado quanto eu” "Falcão – Meninos do Tráfico" é um filme produzido pelo centro de audiovisual da Central Única das Favelas (CUFA), onde vários outros são filmados e editados por jovens das comunidades. É um filme feito sem apoio de ninguém. O João Moreira Sales [diretor do documentário Notícias de uma Guerra Particular] e o Fernando Meirelles [diretor do filme Cidade de Deus] são ricos, mas conseguem dinheiro para fazer o filme que quiserem. Com recursos da lei de incentivo à cultura, que são recursos de toda a sociedade. O jovem da Cidade de Deus não consegue o mesmo incentivo para contar a sua história. Os cineastas ficam ricos e depois vêm ganhar dinheiro com nossa própria miséria. Não dá para ficar trocando nossos sorrisos cheios de cárie por bala Juquinha. Contrapartida social não é dar um R$ 1 milhão para o João Moreira Sales fazer um filme e depois dar R$ 200 mil para a favela ver o filme de graça. É dar condição para ele fazer o filme dele e para nós fazermos o nosso. Mas a CUFA não é para ficar reclamando. Já que não tem dinheiro, que o Estado não financia, vamos à luta para dizer que a gente consegue fazer. E consegue fazer com um elemento que o Fernando Meireles jamais vai ter, que é o nosso sentimento. O filme é para isso. Para contar nossa história do jeito que a gente acha que deva ser contada. Não é para resolver os problemas da favela. O filme surge no conceito faça você mesmo. Não sou diretor, não sou escritor, mas minha história ninguém vai contar. Eu mesmo conto. Cacá Diegues pode ser meu amigo e me ajudar, mas não vai fazer. O que aconteceu com o Samba. Era uma manifestação originada dos escravos negros, que inclusive era reprimida. Aí, o homem do asfalto vem e legitima o samba. Troca o nome do barracão e chama de ateliê. Pega os pretinhos para tocar sem ganhar um tostão. Transforma em uma indústria que beneficia justamente aqueles que fazem a opressão contra os sambistas. O dinheiro não vai para quem criou aquele mercado. Não é o caso de acabar com o samba, mas é justo que o dinheiro retorne para aquela cultura. Como é que você pode ter a família do Cartola passando fome e o Carnaval jorrando dinheiro? É esse tipo de coisa que nos faz uma raça inferior coletivamente. Quando você tem um movimento de branco é chamado de racista. Movimento negro é protegido pelo governo. Mesmo entre os que nascem na favela há diferença entre pretos e brancos. Um tem a cor do poder. Fora da favela eles são diferentes. Nas favelas, os mercadinhos e as biroscas são dos brancos, também. Eu mesmo já me surpreendi imaginando em um velório que o preto morto baleado era de alguma comunidade, quando, na realidade, era um policial. Esse movimento vem dizer para esses jovens que a gente não vai aceitar mais p... nenhuma. Esse filme é isso. Ele não aponta caminhos. Denuncia sem falar. Ele diz que chegamos no fim. E não adianta buscar culpados. Não se pode dizer que a culpa é do presidente, dos ministérios, dos governadores ou dos prefeitos. A culpa é da sociedade brasileira. Podem dizer que a generalização deixa a responsabilidade mais distante, mas também não dá para personalizar. Lula é tão culpado quanto eu. Não começou no governo dele e não vai terminar no governo dele. Mas está proliferando. Não adianta ONG nos morros. O trabalho delas é muito insuficiente. Na Rocinha tem 50 mil crianças. O projeto Falcão não é para discutir Segurança Pública. É para criar uma consciência. A grande maioria desses jovens é de negros que não têm pais, sustentam suas famílias com dinheiro do tráfico e morrem antes dos 16 anos. Falam que ganham R$ 1 mil por semana. É mentira. Ganham R$ 350 por mês. Quando são enterrados fazem vaquinha. Chefão do tráfico é preso descalço ou de chinelo. Segurança pública é só a porta, as conseqüências de uma série de problemas que são ignorados ou são impossíveis de resolver. Se é impossível, vamos jogar a toalha e fechar as portas porque nós estamos inviabilizando o Brasil. Se não conseguem dar dignidade para os velhos e para os jovens é porque o país está inviabilizado. Se tem um câncer irreversível, depois de procurar o médico, ou jogamos a toalha ou vamos atrás dos remédios para conseguirmos a cura. A cura depende de reforma agrária, de distribuição de renda, da cultura, da educação, do fim do preconceito racial. O que este documentário mostra é que não tem saída. Se é preciso o caos para se começar o novo mundo, a hora é agora. O caos já chegou. Só não está vendo o caos quem mora no asfalto. Ficam todos indignados quando uma bala perdida atinge um prédio fora da favela. Filmam os buracos, entrevistam os moradores, os vizinhos. O que eles não mostram é que até a bala chegar naquele prédio, ela já furou 400 barracos. Isso não é notícia. Estamos falando de HK47, M16. São balas que atravessam barracos de papelão e madeira com a maior facilidade. Todo dia fura parede e fura corpo de gente preta e pobre. E isso não é notícia. A Globo tem os interesses dela e nós temos os nossos. Não estamos usando esse espaço por ser ingênuos. Não tem favor. Tem interesse. Para mim é um espaço que será usado em uma lógica que me atende. O documentário poderá ser visto por 135 milhões de telespectadores. Não importa que a emissora não tenha entendido nada anos atrás, quando nos processou. O Willian Waack só faltou chamar o Bill de bandido. Eles esqueceram, mas eu não. Eu falo disso no livro.
O que importa é que
eles nos ajudem a alcançar nossos objetivos. É para isso que a gente existe.
Trazer ovelhas para o rebanho. Seria ótimo que o Antonio Ermírio de Morais
viesse participar e ter uma consciência social. A luta do movimento social é
para isso também. Não vamos resolver nenhuma questão se elas não forem
discutidas. Fonte: Ag. Carta Maior, Nelson Breve, 20/03/2006. |