MEC e as
datas comemorativas
A comunidade acadêmica ficou intrigada. Ninguém entendeu as razões para escolha da data: uma terça-feira precedida de curto espaço de tempo englobando festas de fim de ano, folia de reis e carnaval, quando a academia estaria totalmente desmobilizada. As análises feitas pela comunidade universitária detectaram, no anteprojeto, um eixo principal que aponta para a mercantilização do ensino superior. Um dos pontos mais preocupantes é a idéia de criação de conselhos comunitários integrados de "representantes do poder público de qualquer nível de governo", de sindicalistas e de representantes classistas. Esses conselhos deverão opinar sobre "o desempenho da universidade, mediante relatórios periódicos, os quais serão obrigatoriamente considerados no processo de avaliação da instituição". Eu, de minha parte, entendi bem a escolha do 15 de fevereiro: o MEC quis homenagear os 109 anos do nascimento de Andreï Aleksandrovitch Jdanov. Esse líder soviético stalinista, nascido em 15 de fevereiro de 1896, foi o ideólogo do "realismo socialista" que inaugurou o dirigismo de estado nas artes. A ditadura stalinista, tal como no anteprojeto de reforma universitária do governo Lula, passava a criar mecanismos de censura cultural e acadêmica. Algumas linhas do saber e da estética tinham que ser execradas por não serem de "interesse nacional". Já imagino o pelego governista, no egrégio conselho, informando, em seu relatório, acerca do absurdo de se estar estudando a retórica da música acusmática ao invés de se atender ao mercado que demanda apenas dois acordes para o rock. A observação das mãos de pianistas e violinistas determinariam péssimas avaliações do conselheiro empresário: o currículo teria que incluir a prática de movimentos giratórios da munheca para que DJs bacharelandos pudessem bem interpretar seus scratchs. Algo parecido aconteceu em um outro 15 de fevereiro: o de 1948. Em discurso, naquela data, Andreï Jdanov, comissário da cultura da ditadura de Stalin, acusou Chostakovitch e Prokofiev de representarem a "perversão formalista e as tendências antidemocráticas" na música, transformando esta em "cacofonia". Os atuais estatutos da Universidade de Brasília, em vigor desde outubro de 1993, prevêm a criação de um Conselho Comunitário Social. Mas o artigo 20 do documento, que se refere a esse Conselho, esclarece que ele será "um órgão consultivo da Administração Superior da Universidade de Brasília". Infelizmente as sucessivas administrações da UnB, nos últimos 12 anos, trataram de colocar uma pedra em cima da bela idéia, fazendo com que o Conselho nunca saisse do papel. A falta de detalhismo estatutário demandava uma regulamentação que poderia ter sido estabelecida há 11 anos atrás. Em abril de 2003 alguns membros do Conselho Universitário da UnB pressionaram a administração e conseguiram regulamentar os artigos 20 e 21 dos estatutos, que tratam do CCS. A atual administração da Universidade de Brasília, entretanto, não implementou a criação do Conselho até agora. Observe-se que o CCS da UnB, conforme determinam os estatutos da Universidade, seria um orgão consultivo da administração. Isto é, a reitoria poderia convocar o Conselho para lhe pedir "conselhos" ou para, em outras palavras, lhe fazer consultas. Os "conselhos" a serem dados pelo Conselho poderiam ir até mesmo mais longe, apontando metas ou fazendo críticas que refletissem os anseios da sociedade. No anteprojeto de reforma universitária do MEC, entretanto, está proposta a criação de Conselhos Comunitários Sociais que não seriam apenas consultivos da administração universitária: seriam verdadeiros espiões-vigias do governo que, opinativos e avaliadores, fariam relatórios influindo na próxima dotação orçamentária. A Universidade autônoma e socialmente referenciada deve estar sob a vigilância permanente da sociedade sempre cambiante, sim, mas não deve estar sendo vigiada por governos que logo após a posse perdem a representatividade, fazendo com que a sociedade, desiludida, passe a esperar anos por novas eleições. O MEC, sob pressão, resolveu fixar novo prazo para apresentação de sugestões para mudanças no anteprojeto de inspiração stalinista. Agora a nova data é 30 de março, quando outros fatos históricos estarão sendo comemorados. Em 30 de março de 1945, após sangrenta batalha, as tropas de Stalin tomaram Danzig dos alemães. Em 30 de março de 1964 o governador Magalhães Pinto conspirava em Minas, dando início ao golpe militar no Brasil. * Professor da UnB, pesquisador do CNPq e membro da Academia Brasileira de Música. Fonte: Jornal do Brasil, 02/03/2005 |