O setor privado critica o Anteprojeto, logo o Anteprojeto é bom. Um mau
silogismo para defender a contra-reforma
Em um uso informal, o silogismo é uma forma de raciocínio que se presta a muitas brincadeiras entre os cientistas; contudo, na política, este modelo de apresentação de um determinado raciocínio – baseado em premissas que conduzem a uma inferência – freqüentemente é adotado com o objetivo de vender gato por lebre, gerando o sofisma. O MEC tem sido imbatível nesse quesito. De fato, para sustentar politicamente o seu Anteprojeto de reforma da educação superior, o Ministro da Educação, seus assessores e as entidades que compõem o cinturão protetor da política do governo federal para a educação superior, têm divulgado o seguinte “silogismo”: “Os empresários da educação criticam o anteprojeto. Os empresários são contra o controle estatal. Logo, o Anteprojeto é a favor do ensino público e subordina o setor privado ao controle estatal.” Há um claro sofisma nessa argumentação. Lendo o Documento “Considerações e Recomendações sobre a Versão Preliminar do Anteprojeto de Lei da Reforma da Educação Superior”, elaborado pelo Fórum Nacional da Livre Iniciativa da Educação, coletivo que reúne todas as entidades empresariais relevantes da educação superior, é cristalino que o Fórum acolhe, sem críticas, os principais aspectos da política do governo de Lula da Silva para o setor, como o ProUni, a Inovação Tecnológica, o Sinaes e mesmo o fundamental do Anteprojeto. O problema é que essas medidas são consideradas insuficientes: querem mais desregulamentação e liberalização. A divergência não é em relação ao conteúdo. É uma questão de grau. Certamente, o forte lobby privatista irá pressionar o governo a incorporar ao seu projeto os anseios do setor privado de modo ainda mais incondicional. As queixas dos empresários causam uma sensação de já visto. Com efeito, é muito semelhante ao tom das críticas de setores empresariais ao ProUni. Quando o MEC lançou a idéia, no início de 2004, muitos dirigentes manifestaram contrariedade, alguns de modo agressivo, afirmando que 20% das vagas era uma contrapartida abusiva a completa isenção de tributos. O governo acusou a pressão e reduziu as bolsas integrais a 10% e, a seguir, já no parlamento, novos reclamos e, por acordo com a base parlamentar do governo, as bolsas integrais despencaram para 4,25%. Assim, em retribuição a uma liberação tributária que totalizará mais de R$ 2,5 bilhões por ano, as empresas do setor cederão cerca de 100 mil bolsas integrais. A previsão inicial era de 400 mil vagas “gratuitas”! Moral da história: reclamar faz bem para os lucros empresariais! Assim, a experiência do ProUni pode nos ajudar a reescrever o “silogismo” anterior: “Os empresários da educação criticam o anteprojeto. Os empresários são contra o controle estatal. Logo, o governo irá liberalizar e desregulamentar ainda mais o setor”.
Medidas governamentais que atendem aos anseios dos empresários Entre as proposições governamentais que são congruentes com os anseios do setor privado, conforme expresso no documento do Fórum Nacional da Livre Iniciativa em Educação, destacam-se, entre outras: 1. A tese de que a educação é um bem público: “O Fórum entende a Educação como uma política pública específica de Estado.” Sendo um bem público, independentemente se a instituição é pública ou privada, as verbas estatais podem ser distribuídas a todas as instituições que atendem ao interesse social. Por isso, comemoram a isenção tributária do ProUni e a possibilidade, inédita, de conversão de filantrópicas em empresariais, inclusive com transferência do patrimônio, tudo isso sem ter de pagar impostos e contribuições. Com o ProUni, situações como a do reitor e proprietário da Universidade de Marília – que adquiriu prédios, aviões etc., em nome da instituição, quando esta ainda era filantrópica, e que se apropriou desses bens como pessoa física, sendo, por isso, condenado por sonegação – deixarão de existir. Em tempo, a sonegação desse reitor totaliza R$ 47 milhões (Germano Oliveira. Reitor é condenado por sonegação fiscal. O Globo, 3/4/05,p.12.). 2. O Estado deve estabelecer normas para a autorização dos cursos e avaliar o setor privado: “O Fórum reconhece que o Poder Executivo tem o dever de zelar pelos critérios de autorização de cursos e instituições, bem como pela observância do princípio da ´garantia de padrão de qualidade´ da educação superior, consagrado pela Constituição Federal.” Por isso, estimulam o “experimento” SINAES e ENAD que “aperfeiçoados” poderão facilitar a certificação e a qualificação das instituições de interesse social. 3. A institucionalização dos Centros Universitários na forma de Lei. Vale lembrar que esta modalidade não está discriminada na LDB, tendo sido criada por Decreto (Dec. N. 2306/97). Por ser um tipo de instituição que objetiva burlar o Art. 207, CF, foi duramente criticada pela comunidade acadêmica e mesmo pelos dirigentes das universidades particulares que os concebem como uma concorrência desleal: “têm prerrogativas de universidades, mas estão liberados da indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão”. O Anteprojeto atende assim a uma reivindicação da Associação Nacional dos Centros Universitários (ANACEU), embora, ao limitar a possibilidade desses Centros criarem cursos, o Anteprojeto atende a um anseio da Associação Nacional das Universidades Particulares (ANUP) e do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB). 4. As condições para o funcionamento das universidades e dos centros universitários privados. A abertura que a salvaguarda do Anteprojeto ofereceu satisfez de modo pleno os empresários. Com efeito, para uma instituição ser considerada universidade o Art.13 determina 12 cursos de graduação em três campos de saber e três cursos de mestrado e um de doutorado. Contudo, as universidades especializadas (o caso da quase totalidade delas, especializadas em Humanas), conforme o mesmo Artigo, podem ter apenas oito cursos de graduação (seis podem ser em um único campo!) e apenas um curso de mestrado ou doutorado! Todas cumprem essa exigência hoje! As mesmas facilidades são encontradas nos Centros Universitários. O Art. 25 determina seis cursos de graduação em, no mínimo, dois campos de saber. Se for um Centro especializado, bastam quatro cursos de graduação em um único campo de saber! 5. A autorização e a supervisão das particulares não universitárias poderão ser realizadas pelos estados, por meio de convênio da União com os entes federados, uma descentralização há muito reivindicada pelos empresários. 6. O instrumento que normatiza as condições da autonomia da universidade, o Estatuto, somente é registrado no caso das privadas, não passando por nenhuma esfera externa a instituição. Tratamento distinto é determinado para as públicas. O Estatuto precisa ser aprovado pelo CNE, um lócus privatista, e pelo próprio Ministro. 7. A qualificação da educação como área aberta aos investimentos estrangeiros. Embora restritos a 30%, o princípio da abertura do setor já está contido no Anteprojeto. No parlamento, os setores empresariais que representam as entidades com fins lucrativos (empresariais) já se manifestaram pela derrubada desse limite.
8. As mensalidades
seguem liberalizadas, sem quaisquer controles. As conquistas a serem ampliadas 1. Processo de gestão democrática. O Anteprojeto prevê a existência de eleição direta pela comunidade para a escolha de um pró-reitor com critérios elaborados pelo Conselho Superior, em geral constituído pela direção da instituição. No entanto, para as entidades empresariais isso fere o preceito constitucional (art. 209, I e II): o ensino é livre à iniciativa privada, desde que observadas as normas gerais da educação nacional, a autorização e a avaliação de qualidade pelo poder público. Os empresários lembram ainda que a CF somente prevê gestão democrática para as instituições públicas (Art. 206, CF). Desse modo, é de se prever que os empresários irão atuar no sentido de derrubar os frágeis artigos relativos a gestão democrática das privadas. Apesar de consultivo e de possuir composição em aberto, o Conselho Comunitário Social, bem como outros colegiados propostos no Anteprojeto, na avaliação do Fórum “tornam possível a substituição do mérito acadêmico e da competência administrativa por ações de cunho sindical, corporativista ou vinculadas a forças estranhas ao meio acadêmico. Trata-se, pois, de medida inadequada e que fere o princípio constitucional da autonomia. É necessário lembrar ainda que a gestão democrática do ensino, na forma que a Constituição Federal estabelece, é obrigatória apenas nas instituições públicas”. O ministro Tarso Genro, conforme Valor Econômico (01/03/05), lembra aos empresários que os referidos Conselhos serão apenas consultivos e não representam uma interferência indevida na gestão das universidades, “servindo apenas para discutir com transparência relações que já existem na sociedade”, minimizou o ministro. 2. Avaliação. Em que pese o apoio ao Sinaes/ Enade, os empresários reclamam a explicitação do que vem a ser “padrão de qualidade” para fins de avaliação. “Não são conhecidos os indicadores de cada padrão ou definidos os valores que eles deverão assumir para fins de controle do poder público, nem as medidas necessárias para evitar que julgamentos subjetivos conspurquem decisões de ordem administrativa”. Por isso, para os empresários, o credenciamento e a classificação não podem adotar, ainda, o Sinaes e o Enade. 3. Os empresários reclamam maior apoio à educação a distância e uma “gestão articulada entre ensino presencial e não-presencial, educação continuada e a distância, certificações intermediárias e finais, registro de certificações e fiscalização das profissões, etc”. “Qualquer reforma que se preze deve investir na direção do futuro em termos de formação, educação continuada e a distância, inovações didáticas e metodológicas e diminuição de controles em favor de avaliações de aprendizagem.” Uma matéria do jornal Valor Econômico (01/03/05) assegura que o Ministro da Educação acolheu essa sugestão que, a rigor, é congruente com as medidas de formação de professores encaminhadas pelo MEC, também assentadas na EAD. 4. As instituições privadas universitárias reivindicam maior apoio do fundo público para o financiamento da pesquisa, para favorecer a interação entre a pesquisa universitária e as empresas públicas e privadas e, também, para o apoio a qualificação dos docentes das privadas, por meio de bolsas. Nesse sentido, preconizam mudanças no sistema de avaliação da pós-graduação realizado pela CAPES (credenciamento e conceitos), objetivando melhores condições para que as universidades privadas possam edificar a sua pós-graduação. 5. O Fórum sustenta ainda que as mantenedoras, por estarem cobertas pelo preceito constitucional que assegura a livre iniciativa da oferta educacional, não podem ser objeto de regulação do Estado que ultrapasse “as normas gerais da educação nacional, a autorização e a avaliação de qualidade pelo poder público”.
6. Desenho
institucional: “o Fórum entende que a reforma deve constar de mais de um
projeto de lei, pela impossibilidade técnica e jurídica de matérias
distintas serem tratadas em uma única lei. A revisão do papel institucional
do MEC, tendo em vista a criação de uma agência reguladora independente,
especializada em avaliação e certificação de qualidade de cursos e
instituições, com poder para acreditar outras entidades especializadas em
avaliação, e capaz de produzir informação qualificada para fins de
supervisão do sistema de ensino superior”. Aqui as privadas querem levar
ainda mais longe a descentralização da avaliação e do credenciamento já
prevista no Anteprojeto. A criação de uma agência reguladora é o eixo dessa
proposta. Considerações finais As medidas empreendidas pelo governo e as previstas pelo Anteprojeto definem um grande marco normativo que fortalece o setor privado por meio de isenções fiscais, pelo aprofundamento da diferenciação das IES, pelo baixo perfil para a classificação das instituições como universidades e centros universitários e pela abertura do mercado ao investimento estrangeiro. A oportunidade de uma “reforma” da educação superior é vista pelos empresários como uma preciosa oportunidade de melhorar ainda mais as condições para os negócios educacionais, liberalizando e flexibilizando ainda mais o setor. E é sobre estas que os empresários têm dirigido as suas críticas (a exemplo do que fizeram no ProUni). É importante frisar que muitas reivindicações são específicas de setores (universidades empresariais, confessionais etc.) e não atendem a todo o setor privado. Os conflitos entre essas frações são agudos e o fato de todas as entidades empresariais terem acordado um documento unitário, por meio do Fórum, não autoriza a avaliação de que a competição entre essas frações será atenuada. Contudo, é inequívoco que o lobby no parlamento irá agir de modo articulado e produzirá modificações no projeto que o tornará uma lei para os empresários da educação. Seguramente, não foi por ingenuidade do MEC que as isenções do Prouni não geraram as 400 mil novas vagas com bolsas integrais previstas no projeto inicial. É certo que o MEC sabia que o programa seria redimensionado pelo parlamento. O fato da redução das vagas ter sido aprovada por acordo de lideranças corrobora isso. Igualmente, não há ingenuidade quando o MEC faz um Anteprojeto com imensas aberturas ao setor privado e com salvaguardas fragmentadas e débeis. “Estamos em busca de um consenso” disse o Ministro em uma reunião com os empresários da educação na CNI (Valor Econômico, 01/03/05). Não é preciso fazer futurologia para saber que as frágeis regulamentações das condições de funcionamento do setor privado serão derrubadas, muito provavelmente já na Casa Civil. Nos termos de uma liderança empresarial “a negociação tem início na Casa Civil”. Os vestígios de proteção ao sistema público e de controle sobre o capital foram adequados aos reclamos do setor privado: assim aconteceu com o Prouni, a Biossegurança, as PPP etc.
Constatar que
entidades participantes dos Congressos Nacionais de Educação estão
sustentando o “silogismo” veiculado pelo governo, por meio de intensa
propaganda, é, talvez, a única surpresa do momento. Somente desconsiderando
o que de concreto já foi encaminhado pelo governo e se eximindo de uma
leitura minimamente rigorosa do Anteprojeto é possível afirmar que os
empresários não estão saindo ainda mais fortalecidos. De fato, após o MEC
ter sido dirigido, por longos oito anos, por um ministro a favor dos
empresários (e que hoje assume a sua condição de empresário da educação),
parecia que a torrente privatista não poderia ser mais aprofundada. A
realidade nos mostra que pode. A coerência com os princípios e valores que
nortearam a defesa da educação pública e gratuita nos Congressos Nacionais
de Educação, o amplo e democrático debate de uma Agenda alternativa e a
forte mobilização nos espaços públicos são condições para que o programa
educacional neoliberal seja revertido.
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