CRIME CONTRA A HUMANIDADE
Manifesto de juristas defende processo
contra torturadores
Mais
de cem juristas, advogados, promotores e juízes de todo o país assinam
manifesto em defesa do debate nacional sobre o alcance da lei da anistia e
do julgamento de acusados de praticar tortura durante a ditadura militar.
Para signatários, tortura é um crime contra a humanidade e não cabe afirmar
que os crimes de tortura e de desaparecimento forçado foram anistiados.
Um grupo de mais de
cem juristas, advogados, juízes e promotores de todo o país assinaram um
manifesto em apoio à decisão do Ministério da Justiça de propor um debate
nacional sobre o alcance da lei da anistia e sobre a possibilidade de
processo pelo crime de tortura durante a ditadura militar.
O "Manifesto dos
Juristas" sustenta que a prática de tortura não constitui um crime político,
mas sim um crime de lesa humanidade. "Além disso", afirma ainda, "é consenso
na doutrina e jurisprudência internacionais que os atos cometidos pelos
agentes do governo durante as ditaduras latino-americanas foram crimes
contra a humanidade". "A Corte Interamericana de Direitos Humanos, neste
sentido, consolidou entendimento que os crimes de lesa humanidade não podem
ser anistiados por legislação interna, em especial as leis que surgiram após
o fim de ditaduras militares".
Os signatários do
manifesto defendem que não cabe afirmar que os crimes de tortura e de
desaparecimento forçado foram anistiados. "Tais crimes são, portanto, crimes
de lesa humanidade, praticados à margem de qualquer legalidade, já que os
governos da ditadura jamais os autorizaram ou os reconheceram como atos
oficiais do Estado".
A íntegra do manifesto
é a seguinte:
O MANIFESTO DOS JURISTAS
A
comunidade jurídica abaixo assinada assiste a manifestações
públicas em oposição ao debate sobre os limites da Lei
6.683/1979. Imprescindível, portanto, que venha a público
manifestar:
1.
Encontramo-nos em pleno processo de consolidação de nossa
democracia. Dito processo dar-se-á por concluído quando todos os
assuntos puderem ser discutidos livremente, sem que paire sobre
os debatedores a pecha de revanchismo ou a ameaça de
desestabilização das instituições. Só são fortes as instituições
que permitem o debate público e democrático e com ele se
fortalecem;
2. A
profícua discussão jurídica que ora se afigura não concerne à
revisão de leis. Visa, em verdade, a aferição do alcance de
dados dispositivos. É secundada por abundante doutrina jurídica
e jurisprudências internacionais, de que crimes de tortura não
são crimes políticos e sim crimes de lesa-humanidade. A perversa
transposição deste debate aos embates políticos conjunturais e
imediatos, ao deturpar os termos em que está posto, busca
somente mutilá-lo e atende apenas aos interesses daqueles que
acreditam que a impunidade é a pedra angular da nação e que
aqueles que detêm (ou detiveram) o poder, e dele abusaram,
jamais serão responsabilizados por seus crimes;
3. O
Brasil é signatário de numerosas convenções internacionais
relacionadas à tortura e à tipificação dos crimes contra a
humanidade, considerados imprescritíveis pela sua própria
natureza e explicitamente assim definidos. Desde 1914, o Brasil
reconhece os princípios de direito internacional, mediante a
ratificação da Convenção de Haia sobre a Guerra Terrestre, que
se funda no respeito a princípios humanitários, no caráter
normativo dos princípios do jus gentium, preconizados pelos usos
estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da
humanidade e pelas exigências da consciência pública.
O Estado
brasileiro reiterou o compromisso com a comunidade internacional
em evitar sofrimento à humanidade e garantir o respeito aos
direitos fundamentais do indivíduo, ao assinar a Carta das
Nações Unidas, em 21 de julho de 1945. O Estatuto do Tribunal de
Nuremberg ratificado pela ONU em 1946 traz a definição de
"crimes contra a humanidade", as Convenções de Genebra de 1949,
a Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Genocídio e o
recente Estatuto de Roma, enfatizam a linha de continuidade que
há entre eles, não deixando dúvidas para a presença em nosso
ordenamento, via direito internacional, do tipo "crimes contra a
humanidade" pelo menos desde 1945.
Além
disso, é consenso na doutrina e jurisprudência internacionais
que os atos cometidos pelos agentes do governo durante as
ditaduras latino-americanas foram crimes contra a humanidade. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos, neste sentido,
consolidou entendimento que os crimes de lesa humanidade não
podem ser anistiados por legislação interna, em especial as leis
que surgiram após o fim de ditaduras militares.
4. A
jurisprudência internacional reputa crime permanente o
desaparecimento forçado, até que sua elucidação se complete bem
como considera crime contra a humanidade o crime de tortura.
Pleitear a não apuração desses crimes é defender o
descumprimento do Direito e expor o Brasil a ter, a qualquer
tempo, seus criminosos julgados em Cortes Internacionais, mazela
que, desafortunadamente, já acometeu outros países da América
Latina. Lembremos que ademais da jurisdição nacional, há a
jurisdição penal internacional e a jurisdição penal nacional
universal.
5. Nunca
houve no Brasil uma legislação de anistia que englobasse os
crimes praticados pelos agentes do Estado brasileiro durante a
ditadura militar instaurada em 1964. A Lei 6.683/1979 concede
anistia apenas aos crimes políticos, aos conexos a esses e aos
crimes eleitorais, não mencionando dentre eles a anistia para
crimes de tortura e desaparecimento forçado, o que afasta sua
aplicabilidade nessas situações. A Constituição de 1988 que em
seu art. 8º do ADCT, anistiou todos os perseguidos políticos e
assim é feito pela Lei 10.559/02, não refere, em nenhum momento,
a anistia às violações de Direitos Humanos.
Nesse
sentido, não cabe afirmar que os crimes de tortura e de
desaparecimento forçado foram anistiados. Tais crimes são,
portanto, crimes de lesa humanidade, praticados à margem de
qualquer legalidade, já que os governos da ditadura jamais os
autorizaram ou os reconheceram como atos oficiais do Estado.
6. Os
cidadãos brasileiros que se insurgiram contra o regime militar,
e por contestar a ordem vigente praticaram crimes de evidente
natureza política, foram processados em tribunais civis e
militares e, em muitos casos, presos e expulsos do país mesmo
sem o devido processo legal. Além disso, quando presos, sofreram
toda sorte de arbitrariedades e torturas. Depois de julgados,
foram anistiados pela lei de 1979 e pela Constituição. Por que
os crimes dos agentes públicos, que nem sequer podem ser
caracterizados como crimes políticos, devem receber anistia sem
o devido processo.
Não se
trata de estabelecer condenação prévia, ao contrário, o regime
democrático pressupõe a garantia do mais absoluto e pleno
direito de defesa, devido processo legal e contraditório válido
a qualquer cidadão.
7. O
direito à informação, à verdade e à memória é inafastável ao
povo brasileiro. É imperativo ético recompor as injustiças do
passado. Não se pode esquecer o que não foi conhecido, não se
pode superar o que não foi enfrentado. Outros países tornaram
possível este processo e fortaleceram suas democracias
enfrentando a sua própria história. Ademais, nunca é tarde para
reforçar o combate contra a impunidade e a cultura de que os
órgãos públicos têm o direito de torturar e matar qualquer
suspeito de atos considerados criminosos. Os índices de
violência em nosso país devem-se muito ao flagrante desrespeito
aos direitos humanos que predomina em vários setores da nossa
sociedade, em geral, em desfavor das populações menos
favorecidas.
É assim
que a comunidade jurídica abaixo assinada manifesta-se em apoio
a todos aqueles que estão clamando à Justiça a devida prestação.
Manifesta-se em apoio ao Ministério Público Federal, ao
Ministério da Justiça e à Secretaria Especial de Direitos
Humanos pelo cumprimento de seus deveres constitucionais e por
prestarem este relevante serviço à sociedade brasileira e à
democracia. E ainda, por fim, presta solidariedade a todos os
perseguidos políticos que, a mais de três décadas, fazem coro
por uma única causa, a própria razão de ser do Direito: que se
faça a Justiça.
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Assinam o manifesto,
entre outros:
Deisy Ventura, SP,
Profa. Dra. Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São
Paulo
Dalmo de Abreu Dallari, SP, Prof. Dr. Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo
Fábio Konder Comparato, Prof. Dr. Faculdade de Direito da USP
Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça
Cézar Britto, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
Jose Ribas Vieira, RJ, Prof. Dr. Titular de Direito Constitucional da UFF e
PUC-Rio
Ovídio A. Baptista da Silva, RS, Prof. Dr. do Curso de Doutorado da
Universidade do Vale dos Rio dos Sinos
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, PR, Professor de Direito da PUC-PR e
Procurador Geral do Estado do Paraná
Claudia Maria Barbosa, PR, Profa. Dra. Pós-Graduação em Direito da PUC-PR
Cecilia Caballero Lois, SC, Profa. Dra. Programa de Pós-Graduação em Direito
da UFSC
José Ricardo Cunha, RJ, Coordenador Acadêmico do Mestrado Profissional em
Poder Judiciário FGV DIREITO RIO e Prof. UERJ
Pedro B. de Abreu Dallari, SP, Prof. Dr. Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo
Daniel Torres de Cerqueira, PA, Prof. CESUPA, Presidente da Associação
Brasileira de Ensino do Direito
Ricardo Seitenfus, RS, Prof. Dr. da Universidade Federal de Santa Maria,
vice-presidente da comissão interamericana de juristas
Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho, SP, Universidade de São Paulo
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto
Katya Kozicki, PR, Profa. Dra. Programa de Pós-Graduação em Direito UFPR e
PUC-PR
Rodolfo de Carvalho Cabral, PE, Prof. Departamento de Teoria Geral do
Direito e Direito Privado da UFPE
Eneá de Stutz e Almeida, ES, Profa. Dra. Mestrado em Direito da Faculdade de
Direito de Vitória/ES
Edna Raquel Hogemann, RJ, Profa. Doutora em Direito - Rio de Janeiro
Evandro Menezes de Carvalho, RJ, Coordenador da Faculdade da FGV DIREITO RIO
José Querino Tavares Neto, SP, UNAERP e Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Goiás
Angélica Carlini, SP, Prof. Dra. de Direitos Humanos da PUC-CAMPINAS
Rogério Barcelos Alves, RJ, Coordenador de Ensino da Graduação FGV DIREITO
RIO
Sandro Alex de Souza Simões, PA, Prof. Dr. Adjunto do CESUPA Centro
Universitário do Pará
Lívia Maria Oliveira Maier, DF, Advogada da União
Oto de Quadros, DF, Promotor de Justiça MPDFT
Judith Karine Cavalcanti Santos, PE, pesquisadora e professora universitária
Marco Aurélio Antas Torronteguy, SP, CEPEDISA/USP
Daiane Moura de Aguiar, RS, Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RS
Clarissa Franzoi Dri, RS, Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux
Lucas Pizzolatto Konzen, RS, Instituto Internacional de Sociologia Jurídica
de Oñati
Rosa Maria Zaia Borges, RS, Profa. Faculdade de Direito da PUCRS
Márcia Nina Bernardes, RJ, Profa. do Departamento de Direito da PUC-Rio
Ciani Sueli das Neves, PE, Profa. da UFRPE
Ana Carla Machado Leite, DF, Tribunal Superior do Trabalho
José Geraldo de Sousa Junior, da Universidade de Brasília
Fonte: Ag. Carta Maior, 12/8/2008.
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