Comportamento
As mais estressadas do mundo
Uma
pesquisa inédita revela que as crianças brasileiras vivem sitiadas
por medos e preocupações
O
medo é uma emoção onipresente na vida das crianças brasileiras. E não
são apenas as ameaças que fazem parte do cotidiano nacional, como os
assaltos e os seqüestros, que as crianças temem. Elas têm, por exemplo,
mais medo do terrorismo do que as americanas, que estão concretamente
sujeitas a atentados. Preocupam-se mais com a aids do que os meninos e
as meninas da África do Sul, onde a contaminação segue em ritmo
alarmante. Angustiam-se mais com a intimidação dos colegas de escola do
que as inglesas, que têm antiga tradição no fenômeno do bully – o
valentão que atormenta as outras crianças. |
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Também têm mais
medo de falhar no ingresso em uma universidade do que as japonesas, para
as quais o sucesso nos estudos é uma notória fonte de pressões
familiares. Chegam até a se apavorar mais com a gripe do frango do que
as crianças chinesas, que conviveram com a epidemia. Esses dados constam
de uma pesquisa inédita patrocinada pelo canal Nickelodeon, que ouviu 2
800 crianças entre 8 e 15 anos das classes A e C, em catorze países.
"Esperávamos números elevados entre as crianças brasileiras nas questões
relativas ao medo. Ainda assim, a proporção em que eles surgiram chega a
ser chocante", diz Noel Gladstone, vice-presidente internacional de
pesquisa do canal infantil e um dos responsáveis pelo levantamento, cuja
finalidade era mensurar o equilíbrio emocional das crianças de diversos
territórios em que o canal atua. O estudo mostra que as crianças do
Brasil são as mais estressadas do mundo e que o país vem falhando na
tarefa essencial de protegê-las e lhes dar tranqüilidade.
Os meninos e
meninas brasileiros não estão sós em sua aflição. Eles compõem uma
espécie de bloco com os do México, da África do Sul e, na liderança, da
Indonésia. E aí está um dos dados mais intrigantes da pesquisa. Entre
todas as nacionalidades pesquisadas, os indonésios são os únicos que
sistematicamente batem os brasileiros no quesito medo. Não é difícil
entender por quê, já que eles convivem com perseguição religiosa,
terrorismo, desastres naturais como o tsunami de 2004, pobreza e um
regime repressivo. No Brasil, só um desses itens – a pobreza – é
prevalente. As crianças indonésias, porém, ficaram no extremo oposto, o
mais baixo, num item fundamental do estudo: a "nota" atribuída ao stress
experimentado pelas crianças de cada um dos países. Tiraram 4,3. Os
brasileiros atingiram o pico de 7 pontos. Como explicar que os
indonésios, que têm mais medo, sejam tão menos estressados do que os
brasileiros? Tanto Noel Gladstone quanto a psicóloga Lidia Aratangy, que
interpretou os dados para o |
mercado nacional,
apontam uma razão fundamental para esse panorama desolador: a violência
e a instabilidade existem em alguma medida em todo o mundo, mas
normalmente se manifestam de forma localizada. Já a vida brasileira,
hoje, não oferece às crianças nenhum espaço – físico e psicológico – em
que elas se sintam a salvo dos problemas do universo adulto. O medo é
uma resposta natural às ameaças; já o stress advém da insegurança e da
sensação de tumulto, para as quais não há santuário. |
Qualquer pai e
qualquer mãe sabem que crianças são esponjas que absorvem tudo o que se
passa à sua volta. Por isso mesmo, é preciso envolvê-las numa membrana,
por assim dizer. Aquilo que é "grande", complicado ou angustiante demais
para o estágio em que elas se encontram tem de ficar do lado de fora ou
então ser quebrado em unidades menores, que os pequenos sejam capazes de
processar. Se acontecer uma morte na família, por exemplo, a criança
terá de lidar com o fato. Mas ninguém aproveitará a oportunidade para
esclarecer que todas as pessoas que ela conhece também virão a morrer um
dia. Parece óbvio, mas o que a pesquisa do Nickelodeon revela é que os
meninos e meninas brasileiros não parecem dispor hoje de nenhum filtro
ou anteparo que os mantenha a uma distância razoável dos aspectos mais
duros da realidade. |
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Entrada de uma escola brasileira, com grades e seguranças: lá dentro, a
preocupação é a nota; do lado de fora, um medo que abrange de seqüestros
à gripe do frango |
Eles são os que
mais se afligem com a questão da segurança, e também os que mais se
preocupam – com larga e triste vantagem – com questões adultas como
emprego, dinheiro e a destruição do meio ambiente. Ganham de lavada
ainda num item curioso. Só 20% das crianças inglesas e 50% das chinesas,
por exemplo, acham que fazer os pais felizes está entre suas
incumbências. Mas essa é uma expectativa partilhada por 95% das
brasileiras, em mais um desdobramento do medo e da impotência que elas
lêem nos gestos dos adultos. Não é de admirar, portanto, que apenas 16%
delas optem por conversar com os pais quando estão aflitas, uma média
muito inferior à dos outros pesquisados – em seu entender, levar
problemas a eles pode resultar em desagrado. |
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Meninas amish no enterro de cinco colegas mortas por um atirador, em
outubro, e indonésios à espera de auxílio após o tsunami de 2004:
ameaças existem em toda parte, mas em nenhum lugar elas geram tanto
stress quanto
entre as crianças brasileiras |
Segundo Lidia
Aratangy, dois outros fatores contribuem para alimentar esse pavor em que
vivem as crianças brasileiras. O primeiro seria o clima de catastrofismo que
se formou em torno do caos nacional. Ele faz com que os aspectos ruins de um
acontecimento sejam ressaltados, enquanto seus eventuais aspectos positivos
ficam (quando ficam) em segundo plano – algo fácil de verificar em
instâncias tão diversas quanto telejornais e conversas de vizinhos, em que a
maldade do bandido costumeiramente desperta muito mais interesse do que a
coragem do cidadão que o enfrentou. O outro fenômeno é um bocado mais
difícil de contornar: o espraiamento da adolescência. "Antes, essa era uma
fase cronológica e biológica que ia dos 13 ou 14 anos aos 17. Hoje, ela está
não só transbordando para a idade adulta como também acuando a infância",
opina Lidia. Ou seja, a confusão emocional típica dos adolescentes cada vez
mais atinge aqueles que, pelo calendário, ainda deveriam estar longe de
experimentá-la – o que só faz agravar as inseguranças já demasiado
esmagadoras da criançada. O cenário que a pesquisa do canal Nickelodeon
revela é, em suma, consternador: o de um país que vem privando suas crianças
de alguns dos seus direitos mais básicos – à inocência, à tranqüilidade e
àquele pouquinho de ilusão que dá cor à infância.
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Fonte: Rev. Veja, Isabela Boscov, ed. 1983,
22/11/2006 |