A língua que ninguém
fala
Este colunista gosta de ciências, mas não chega a ler revistas estrangeiras. Foi nos jornais brasileiros que hoje chamam negros de afrodescendentes que aprendeu que a origem do ser humano é a África. Somos todos afrodescendentes. A discussão sobre a afrodescendência recorda outra, hoje abandonada, sobre o nome dos americanos. Americano não podia, porque também somos parte da América; norte-americanos também não, porque México e Canadá também estão na América do Norte. Alguns optaram por "estadunidense". Só que estadunidenses são também os mexicanos, nascidos nos Estados Unidos do México; e, antes que mudassem o nome do país para República Federativa, também os brasileiros. Em geral, quem tenta fugir aos nomes consagrados revela o racismo que tem dentro de si. O cavalheiro não é "judeu": é de "ascendência judaica" (ou, muitas vezes, de "descendência judaica", o que mostra que além de racista o redator é meio analfabeto). Não é "índio", mas de "ascendência indígena". Negro é negro, anão é anão, judeu é judeu. Preconceito é outra coisa. Novilíngua Aliás, nós jornalistas adoramos usar uma língua que ninguém fala. Chamamos o passageiro, por exemplo, de "usuário". E o ônibus, o popular busão, de "coletivo". Aquele lugar por onde os carros (ou melhor, viaturas) rodam, que nos velhos tempos se chamava "rua", passou a ser "leito carroçável". E tome cuidado: às vezes, o usuário da viatura pode ser conduzido no contrafluxo. Na verdade, na verdade, não chega a ser uma adoração jornalística pelo inusitado. O problema é que, entrevistando técnicos e ouvindo seu jargão, o jornalista muitas vezes o assimila e se torna incapaz de traduzi-lo para o português normal. E toca a chamar avião de aeronave e a falar da "implementação" de projetos. Às vezes, é pura e simples invenção. Vá ao restaurante Speranza, ou ao Babbo Giovanni, em São Paulo, e veja se alguém pede uma "redonda". Agora, leia as indicações dos jornais: no duro, é verdade, eles chamam pizza de redonda. Outras vezes inventam moda: note que nenhum produto agora é vendido, é "comercializado". Já imaginou alguém chegando ao boteco e perguntando ao português se ele "comercializa" empadinha de palmito? Mas, para ser justo, não é só jornalista que gosta dessas coisas. Funcionário público também – tanto que, se você morar em São Paulo, no seu prédio o atestado de que o elevador foi vistoriado o chama de "aparelho de transporte", ou simplesmente AT. O "aparelho de transporte", em vez de elevador, ainda não chegou aos jornais. Mas deve ser apenas uma questão de tempo. Entre as manias que temos E, já que estamos falando de manias, uma que pegou firme é a de dar a nacionalidade do cavalheiro antes de citar seu nome. O "uruguaio" Lugano, o "argentino" Passarela, o "iraniano" Kia Joorabchian – como se o leitor não estivesse careca de saber a nacionalidade dos personagens (e, a propósito, como se isso tivesse alguma importância na ordem das coisas). Mas o mais engraçado é o que ocorre na Fórmula 1: o "piloto brasileiro" Rubinho Barrichello. E não fica por aí: a partir da segunda citação, é "o brasileiro Rubinho". A essa altura do campeonato, colegas, quem se surpreenderá com essa revelação? Volta, revisão! Este colunista trabalhou com os grandes Ruy Onaga, Raul Drewnick, Luís Carlos Cardoso. Que grandes goleiros! Com gente como eles na retaguarda, o chiquérrimo restaurante a ser inaugurado em São Paulo não teria um "piano de caldas", conforme o material enviado à imprensa. Nem uma jornalista se intitularia "acessora de imprensa". Está certo, com o final da revisão ficou mais fácil verificar quais profissionais conhecem e quais não conhecem o idioma em que se expressam. Só não se esperava que os que não conhecem continuassem escrevendo numa boa, ferindo os olhos e ouvidos de leitores, ouvintes, telespectadores e internautas.
Num só dia, em grandes
jornais, fomos informados de que a cartilha do Lula, aquela de termos
politicamente corretos, foi "distribuída e depois suspendida"; e que se
previa um congestionamento em certa região de São Paulo porque ali haveria
um "concerto". Não, a Sinfônica Municipal não se apresentaria naquele local,
atrapalhando o trânsito: seria substituída por uma empreiteira. * Jornalista, diretor da
Brickmann&Associados. Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br, nº 329, 17/05/2005. |