O lenço de
Desdêmona e o sexo das mercadorias
Flávio Aguiar*
Na peça de Shakespeare, Iago foi arrastado por sua denúncia, coisa que, parece, vai acontecer com o deputado Roberto Jefferson, ainda que depois ele possa colher recompensas de quem lucrar em definitivo com essa crise. Seu depoimento foi tiro pra todo o lado. Mas não foi desta vez que a cidadela caiu, apesar de haver feridos, quem sabe mortos que descobriremos no decorrer da semana. No fim da tarde da terça 14 deste quente mês de junho, desliguei a TV, onde assistia ao depoimento do deputado Roberto Jefferson, e fui à PUC de São Paulo para participar de um debate sobre “O novo Imperialismo e a atualidade de Marx”. Confesso e confessei ao punhado de bravos presentes ao debate que tinha a sensação de estar em Bizâncio, em 1453, diante da invasão dos turcos, comparecendo a uma discussão sobre o sexo das mercadorias, já que anjos andam escassos. *O debate foi interessante; aprendi muito com meus colegas de mesa, Carlos Carvalho & Carlos Martins, sobre economia contemporânea, os impasses do dólar, sobre se estamos diante de fato de um novo imperialismo, de hegemonia ameaçada, ou diante de uma nova fase do mesmo imperialismo, de hegemonia confirmada. Não se tratava, apesar de minhas bravatas retóricas sobre o sexo das mercadorias, de questões bizantinas. São questões fundamentais para orientar nossas ações, os remanescentes que consideram o marxismo um assunto interessante, em nossas arcas de Noé acadêmicas, já que nenhum partido político de relevo, hoje, no mundo, parece considerá-lo em sua pauta, à exceção talvez do PC cubano. Entrementes, o espetáculo performático do mensalão continuava a correr em Brasília e nas telas de TV, todos tentando ver que turcos, afinal, estavam invadindo nossas catedrais planaltinas. Antes do depoimento do deputado estive reunido com companheiros da Carta Maior discutindo a circunstância. Tentamos desenhar cenários e títulos para os cenários. Um dos que mais nos agradou foi “Entre Versalhes e Stalingrado”. Referia-se o título à possível matéria cercando o assunto sobre as possibilidades decorrentes do depoimento: se o deputado trouxesse provas, mesmo que poucas, mesmo que uma, estaríamos para o governo diante de uma situação equivalente àquela da rendição da França perante a Prússia, em 1870, com a conseqüente fundação do Império Alemão na casa do adversário. No caso, aqui, teríamos a re-fixação da Santa Aliança e da política de Restauração entre os ducados do PFL e o principado do PSDB, que voltariam a empolgar o séquito dos ávidos. Caso as denúncias não se confirmassem com provas, estaríamos diante do começo da batalha de Stalingrado. Os oposicionistas, conscientes de que estão na batalha decisiva, e que se a perderem pavimentarão o caminho para o presidente rumo à Berlim de sua reeleição, jogariam tudo daqui por diante: blindados, aviação, artilharia pesada e leve, morteiros, papéis e palavras em fúria contra o governo. Bueno, o depoimento do deputado esteve mais para a primeira batalha do rio Marne, em setembro de 1914. Foi tiro (para não usar outra palavra) para todo o lado, até no ventilador. Nem Moltke, o alemão, conseguiu dobrar Joffre, o francês, e tomar Paris; nem este conseguiu repelir de tal modo aquele a ponto de considerar a capital definitivamente salva. Em todo caso, não foi desta vez que a cidadela caiu, apesar de haver feridos, rombos nas muralhas, quem sabe mortos que ainda não vimos, mas descobriremos no decorrer da semana. Vendo o depoimento do deputado e os questionamentos, não pude deixar de me lembrar de um personagem de Shakespeare, talvez o mais fascinante e performático de todos: Iago, da tragédia Otelo. Como no caso do instigador do assassinato de Desdêmona, fica difícil determinar as causas de sua ação insidiosa, pertinaz, contundente e eficaz. Que objetivos terá a ação do deputado? Vingança? Contra quem? Ao que parece, contra quase tudo e quase todos, porque sobrou ontem farpa (novamente para não usar outras palavras) para todo mundo. A imprensa teve ontem páginas de credibilidade rasgadas pelo deputado. A casa do Congresso saiu mais esburacada do que bandeira na guerra do Paraguai; membros do governo parecem estar em plena Guerra dos Farrapos, podem perder batalhas, podem perder cargos mais sair impávidos para a história, se nada ficar comprovado; ou, ao contrário, podem ter como sobra apenas farrapos para tapar as vergonhas, se elas existirem de verdade e vierem a lume. Já o palhabote do presidente Lula parece atravessar impávido o Marne da batalha, em meio ao tiroteio. Mas paira sobre ele a ameaça de sair de tudo como a Rainha da Inglaterra, a que reina mas não governa; ou, se conseguir demonstrar firme liderança e vocação de estadista em meio à tempestade, sair como Winston Churchill, que prometeu e amargou “sangue, suor e lágrimas”, mas entrou para a história como vencedor, ainda que ele (Winston) tenha sido derrotado nas eleições logo depois da guerra, destino que, sinceramente, não desejo para o presidente. As oposições, ah, as oposições estão como Otelo vendo o lenço de Desdêmona. Ela é culpada, e ponto final. Ao contrário do mouro de Veneza, não gostam nem um pouco do Iago que a história agora lhes ofereceu. Mas dão crédito ilimitado a suas palavras, tenha ou não provas, venham as afirmações embrulhadas no que vierem, ou desembrulhadas. Cada vez que Iago levantava ou “provava” a “falta” de Desdêmona e Cássio, Otelo tinha um ataque epilético. As oposições parecem ter outro, só que ao invés de caírem em catatonia, entram em ebulição eufórica, sem perceber o estrago que a história toda está causando, inclusive para seus interesses de longo prazo. Nada mais importa. Otelo, junto com a condenação da esposa, queria recuperar o lenço, prenda egípcia que a mãe lhe dera de presente. As oposições apostam tudo, porque nada mais tem a oferecer ao país, na recuperação imediata (o que pode se estender até 2006) do Palácio do Planalto. O PFL, privado das benesses a receber do Planalto e a redistribuir por suas bases oligárquicas e a clientela, coisa a que estão acostumados desde os tempos áureos da ditadura e da Arena, parece viciado em síndrome de abstinência. Já o PSDB, que por ora nada tem a gerenciar senão sua inaptidão programática, sem privatizações para fazer na área federal, parece menino a quem tiraram o pirulito e vai fazer de tudo para tê-lo de volta. E tem de garantir isso rápido, desconstruindo Lula antes que a população se dê conta, por exemplo, do fracasso que vem sendo a administração de Serra em São Paulo até o momento. *O estrago que tudo isso vem produzindo é o do despudor no trato da coisa pública e a volta a galope da ceifa da dimensão política em nível macro no país. Há um afã de descrédito em geral, com base na crença de que tudo isso não passa de um “horror” e que no fundo o culpado por tudo isso é mesmo o povo brasileiro. Volta à baila um complexo peculiar da vida brasileira, que é a de que nosso problema como nação tem raiz mesmo na inconsistência do povo que a perfaz. Lá no fim do século XIX essa cronicidade da nação inviável tinha por base preconceitos raciais; agora eles são mesmo mais claramente de classe. O peso que impede o Brasil de decolar são as políticas assistenciais ou compensatórias que o Estado deve fazer, tornando-o incômodo e monstruoso para “o contribuinte”, em relação a um povo “economicamente inviável”. E para completar é esse povo que devolve a ingratidão de eleger Jeffersons e Collores, etc. Não, não, nossas classes dominantes e dirigentes nada têm com isso; nem a imprensa. O problema mesmo é o país. Dissemina-se daí uma aparente crítica geral que na verdade corresponde a um sentimento de ódio ressentido diante do contínuo esforço de escolher, votar, discernir, pesar, avaliar erros, que a vida política do cidadão exige. Deputado e políticos do PT, que nada têm a ver com as denúncias feitas, são atacados, ameaçados na rua, esmurram seus automóveis. Isso, pessoal, descamba para o fascismo, ainda que mitigado e sem Duce, não para uma impossível e quimérica “purificação” do país. Com seu ar de vestal, por vezes de “UDN de batina”, como glosava o saudoso Leonel Brizola, que hoje faz mais falta do que nunca, o PT deu contribuição para esse clima, colhendo agora o bumerangue moralista que jogou no ar durante duas décadas e meia. Uma coisa é de fato combater a corrupção, coisa que o governo, espera-se, esteja e continue fazendo; outra é fazer pose para o santinho, coisa que o PT fez, e agora PSDB e PFL estão fazendo. *O índice de desrespeito é tal que começa a gora a surgir uma “intelectuália”, acompanhados por cartunistas de quilate e de respeito, que aderem alegremente ao achincalhe do PT, sem perceber que estão avacalhando o sentimento republicano. Só assim se pode explicar a charge publicada em primeira página pelo jornal O Globo na edição de domingo passado. O desrespeito começa com o tirar, depois publicar a foto da calcinha da companhia do deputado Severino Cavalcanti em espetáculo de repentistas em Brasília. É de um voyeurismo chulo e vulgar. E continua em escala federal com a charge que mostra o presidente Lula com pernas de mulher, envergonhado porque sua calcinha está à mostra. O desenho não é engraçado; é triste, ainda mais vindo de quem vem, memorável companheiro de nossas lutas na imprensa alternativa durante a ditadura. *O troca-troca de denúncias e defesas, com provas ou sem provas, com chantagens ou sem chantagens, já que agora houve um verdadeiro liberô de impunidade para os dedos apontados e para as línguas afiadas, vai prosseguir. Presenciaremos uma paródia do processo contra Collor. Lá, honestas secretárias e surpreendentes motoristas demonstraram os malfeitos; agora serão os próprios emissários das veias sujas e tortas que virão a público posar para seus quinze minutos de glória como vampiros de reputações. Todos os dias haverá manchetes contundentes. Enquanto isso, esperemos que a taxa de juros pare de subir, que o Fundeb seja aprovado pelo Congresso, que a reforma agrária decole e prossiga, que o povo continue ganhando na Bolívia e arredores.
Na peça de
Shakespeare, Iago foi arrastado por sua denúncia, coisa que, parece, vai
acontecer com o deputado Roberto Jefferson, ainda que depois ele possa
colher recompensas de quem lucrar em definitivo com essa crise. Otelo se
matou, por causa do lenço de Desdêmona. Resta saber que Otelos virão a lume
se matar ou morrer pelo lenço, súbita prenda alucinante a exibir uma
capacidade de sedução que só o sexo, o poder, ou as rutilantes mercadorias
têm, como demonstrou o velho Marx quanto às últimas, Maquiavel quanto ao
segundo, e o mundo todo quanto ao primeiro. * Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior. Fonte: Ag. Carta Maior, 15/06/2005. |