João dos
Reis Silva Junior* debate carreira docente
Entrevista:
“O
professor nunca foi tão exigido na história da educação superior brasileira,
muito além das condições humanas”
Gentilmente,
o professor João dos Reis atendeu nossa solicitação de entrevista e, por
e-mail, salientou que “as respostas às indagações formuladas embasam-se em
longo período de pesquisa”, realizado por ele e pelo colega pesquisador
supracitado. Assumiu o ônus por quaisquer “pontos polêmicos que resultem em
debate”, embora o ADUR INFORMA antecipe que, o conteúdo que segue é de suma
importância não só para os docentes, mas, para todos aqueles que desejam
conhecer um pouco mais sobre os efeitos da intensificação do trabalho para
os cidadãos da sociedade contemporânea.
ADUR INFORMA: Como
avalia as atuais condições de trabalho docente nas Universidades públicas e
a política educacional do atual governo? Acreditam que houve a valorização
do profissional docente?
João dos Reis: É
impossível afirmar que o trabalho do professor nas universidades federais
não tenha sido valorizado nos últimos anos. Resta saber como, por que e a
que preço se deu esta valorização. Isto nos remete à análise das condições
de trabalho do professor e das mudanças na cultura e na identidade da
instituição universitária.
As práticas universitárias cotidianas nas IFES atualmente são a objetivação
de uma universidade reformada a conta gotas num contexto de anomia
intelectual e política e em face da continuidade da ortodoxia econômica de
extremada natureza conservadora praticada pelo Governo de Luiz Inácio Lula
da Silva em continuidade ao de Fernando Henrique Cardoso.
A pesquisa é o lei motiv da estrutural mudança das universidades públicas.
As investigações estão sendo desenvolvidas de forma predominante na
pós-graduação e por meio da indução do financiamento com origem no
Ministério de Ciência e Tecnologia. A coerção à realização desta pesquisa
aplicada e induzida está sob a responsabilidade da Capes, que na sua
história desde sua fundação na década de 1950, passa por radical mudança
instrumentalizada pelo seu modelo de avaliação que controla e regula o
Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) logo depois da Reforma do Aparelho
do Estado em 1995. Infelizmente com a adesão, muitas vezes, resultante da
absorção imediatista do pragmatismo da cultura universitária pública
reconfigurada, pelos professores. Adesão que em tese produziria a
legitimidade do perverso modelo. Este, por sua vez, produz o ranqueamento
dos programas de pós-graduação, sua conseqüente concorrência e a disputa por
verbas e boas notas, produzindo uma antropofagia entre os programas, com
graves conseqüências para o trabalho do professor da pós-graduação ou com
suas atividades adstritas à graduação posto que os critérios se reiteram
para toda a universidade.
Esta nova cultura universitária que tem na pós-graduação o pólo irradiador
tem como traços estruturadores o individualismo, as conspirações, a
competição, a negação de si em prol dos objetivos institucionais, a
centralização da gestão universitária, o esvaziamento dos órgãos colegiados
e das assembléias da categoria, esvaziando o sindicato mais combativo até a
gestão do presidente Lula. Trabalhando nesta cultura, o trabalho do
professor da universidade pública fica exposto ao sofrimento por longo
tempo, o adoecimento é uma conclusão inevitável, com destaque para os
problemas mentais. A compressão espaço-tempo presente no âmbito da sociedade
está presente por estes meios na universidade pública. Ao adaptar-se a esta
nova realidade o professor se submete a processos desumanos, e passa a usar
de drogas como a Ritalina para reproduzir de forma bioquímica a mesma
compressão objetiva em seu cérebro. Até o momento são desconhecidos os
resultados certamente nefastos destes e de outros procedimentos que estão se
multiplicando atualmente. Por isso, não há como dizer que não há valorização
do professor, ele tem valor para alguém que não é ele próprio, do que
decorre o estranhamento do professor em relação ao seu próprio trabalho.
Processo anteriormente jamais observado na universidade pública. O professor
nunca foi tão exigido na história da educação superior brasileira, muito
além das condições humanas.
Por que estaria a universidade pública desta forma? Porque as políticas para
ciência, tecnologia e inovação induzidas pela política industrial e
econômica são reféns da ortodoxa gestão econômica pela via do monetarismo e
subordinado planetariamente ao capital financeiro. Nos países de economia
central, o predomínio do bem viver faz-se por meio do capital financeiro,
que de per si não produz valor. Uma base de produção de valor é exigida
neste contexto de mundialização do capital. Cabendo aos países emergentes
com destaque para o Brasil na América Latina a produção desta plataforma.
Para isso a instituição universitária é chamada para o centro da produção
desta plataforma.
No dia 26 de maio de 2010, na abertura na 4ª Conferência Nacional de
Ciência, Tecnologia e Inovação, o presidente Lula disse a empresários,
políticos e cientistas. “Quero continuar exportando um navio com trezentas
toneladas de grãos, mas prefiro e é necessário exportar apenas um contêiner
de cheaps eletrônicos”. Isto é, a demanda imposta pelo Estado à universidade
pública é a produção de conhecimento com estrutural potência de se
transformar em valoração do capital nacional e internacional no país, para o
que a aproximação entre a academia e o capital industrial nacional ou
internacional é o primeiro passo. Ilustra o que se afirmou a lei das
parcerias público-privada, a Lei do Bem e a Lei de Inovação Tecnológica,
além da indução por meio dos financiamentos. Nesta seara encontra-se a
produção da atual identidade da universidade pública e a natureza perversa
do trabalho do professor desta instituição.
ADUR INFORMA: Quais
foram as principais mudanças no campo do trabalho de um professor
universitário, ocorridas nos últimos anos?
João dos Reis:
Inicialmente é preciso considerar a natureza imaterial do trabalho do
professor da universidade pública. Ela não deixa tão visível o tênue fio de
navalha em que vive o professor. No trabalho material, o corpo severamente
nos alerta e fenece quando ultrapassamos seus limites. Isto é, o ponto em
que o trabalho ainda continua humano e em favor da intensificação da
humanidade do trabalhador é também muito concreto. No trabalho imaterial,
isto não acontece. Muitos colegas entrevistados em nossa pesquisa disseram
do prazer de nosso trabalho. De fato, ele existe como existe em qualquer
trabalho. Contudo, em razão da existência deste prazer há o ofuscamento do
ponto em que o trabalho continua humano. Quando isso acontece, o trabalho
invade a privacidade e até a intimidade do professor, seqüestra-lhe sua
própria subjetividade e traz conseqüências muito graves no âmbito de suporte
fundamental do ser humano, a família, qualquer que seja sua configuração.
O prazer proporcionado pelo trabalho ao intensificar-se a este ponto, nas
palavras de um colega entrevistado, “torna-se uma droga perigosa e vicia.
Acho que por isso temos visto tantos colegas com problemas com o álcool”.
A mudança no campo do trabalho está na linha de continuidade com que
mostramos na resposta à pergunta anterior. Existe uma enorme cobrança
objetiva pela realização de pesquisa cujas razões e objetivos são exógenos à
autonomia científica do professor. Fato que se articula com avaliação
exógena realizada pela Capes e pelas próprias instituições, tornando o
trabalho do professor estranho a ele mesmo. Fato pouco percebido por nós,
que apenas se realiza quando as suas conseqüências são percebidas e neste
momento o estranhamento é estrutural e suas conseqüências para a existência
humana encontram-se no limite; e o adoecimento se concretiza de alguma forma
nem sempre perceptível pelo sujeito ou por seus colegas. Perversidade maior
é vista em situações em que alguns poucos professores percebem e usam a
fragilidade do colega para desqualificá-lo numa cultura institucional em que
adoecer é sinônimo de inutilidade e incompetência. Produz-se o estigma e o
decorrente isolamento.
É desumana, perversa e anti-coletiva a busca por destaque dentro desta
cultura. A maioria dos professores nega a si mesmo para obter todo tipo de
financiamento proporcionado pelo Estado segundo a racionalidade já anunciada
anteriormente. Coloca sua capacidade e energia física e psíquica nas
pesquisas, orientações e aulas subsumidas à racionalidade da ortodoxia
econômica adotada pelos dois últimos presidentes brasileiros. Torna seu
trabalho o avesso de si sem o saber. Mas isso lhe é imposto pelas muitas
formas de avaliação e ele cede em grande parte das vezes em que isto lhe é
posto. Além de cederem, alguns ou mais que alguns, se vangloriam desta
situação e se põem acima dos colegas no contexto de competitividade que
predomina nas universidades públicas.
Quando não são os editais, são as consultorias ao setor produtivo ou a
adesão a programas focais do governo federal que os levam à epifania da
glória no olho do furacão da ideologia do produtivismo acadêmico. Pois ao
trabalharem incorporando e objetivando em suas práticas cotidianas na
universidade a cultura cuja base encontra-se a subordinação ao econômico,
ainda que mediadamente, iludem-se e negam sua qualidade de existência: sua
humanidade.
ADUR INFORMA: Cada vez
mais, vemos que o professor – assim como outros trabalhadores – devem dar
conta de um maior número de atribuições em prazos exíguos. Essa situação tem
levado ao estresse e ao adoecimento de muitos docentes. O que poderia
comentar sobre o assunto?
João dos Reis:
Penso que muito do que esta indagação se nos apresenta encontra-se
respondido na resposta às perguntas anteriores. Entretanto, é preciso deixar
claro um movimento que se oculta muitas vezes quando este tema é posto para
discussão. A intensificação do trabalho do professor assim como a de
qualquer outro trabalhador, ao contrário do dizem alguns colegas
pesquisadores do tema que se trata de opção na academia a adesão ou não a
trabalho intensificado, é imprescindível acentuar o caráter estrutural deste
fato histórico.
Parte dos argumentos já foi anteriormente desenvolvida. Mas é preciso
completar. O século XX, século da social-democracia e do Estado de Bem Estar
Social foi marcado por um processo de controle e regulação social e
econômica específico. Nesta forma do capitalismo o aparelho de Estado se
colocava no lugar de consumidor dos bens de consumo da classe trabalhadora.
Isto é, por meio do gerenciamento do fundo público para o financiamento de
políticas de bem estar para os trabalhadores e de regulação e reprodução
econômica do capital na forma de políticas universais. Entretanto por vários
fatores que não cabe aqui discutir, tal estágio do capitalismo entrou em
crise dando origem ao momento histórico que vivemos agora. Na esteira da
nova configuração do aparelho do Estado veio conjuntamente outro paradigma
político com visível herança do que esteve presente no século anterior.
Se no passado as políticas para o trabalho e para o capital eram universais,
agora, há uma naturalização do seqüestro do fundo púbico pelo capital em
detrimento de seu uso em prol da classe trabalhadora. Embora no Brasil nunca
tivéssemos um Estado de Bem Estar Social, a reforma do aparelho introduz
este traço entre nós. Qual o significado deste movimento? O capital exige
que o fundo público se coloque a serviço de sua valoração, especialmente na
produção de valor no âmbito do capital industrial. Isto exige a panacéia de
todos os males; a inovação como política de Estado. Ela aumenta a
produtividade dos processos produtivos, intensifica e contribui para a
precarização do trabalho em geral. Porém, se o fundo público concentra-se na
demanda do capital, deve-se indagar o que aconteceu com as políticas de bem
estar social que se colocavam em prol dos trabalhadores? Transformaram-se de
sua condição de políticas universais dando lugar à caridade e cooptação que
fundam o afamado foquismo (as ações afirmativas, políticas compensatórias,
etc).
Em acréscimo, os trabalhadores para se manterem vivos consumindo o que
sempre os mantiveram anteriormente, agora, resta-lhes a via da
intensificação e precarização do seu trabalho. Esta é a outra dimensão das
condições de trabalho de todos que vivem da força de trabalho, incluindo aí,
os professores das universidades públicas.
ADUR INFORMA: A
intensificação do trabalho docente é uma característica do Brasil ou em
outros países vemos um recrudescimento da ação do Estado em desvalorizar
esses profissionais? Caso a resposta seja positiva, de que forma isso
acontece?
João dos Reis:
A intensificação do trabalho é um fato mundial, contudo desenvolve-se com
fortes discrepâncias entre os países de economia central e periférica. A
mundialização do capital e o domínio do capital financeiro no planeta
puseram para os países como o Brasil a condição de plataforma de produção de
valor, daí porque ainda que seja um fato no mundo todo, no Brasil e em
outros países periféricos, este fato é desumano e degrada a sociedade não
permitindo ao próprio capital a potência para a manutenção de um processo
civilizatório. Basta assistirmos em rede nacional de televisão a barbárie em
que vivemos.
O ápice da negação humana é o suicídio, a negação de si por meio de
processos mentais leva o ser humano nesta condição a tirar a própria vida.
No Brasil, o suicídio é a terceira causa que mais mata. São 25 suicídios
diários. E isto não expressa a realidade, pois as tentativas frustradas são
um número maior e o pensamento fixo na morte é traço cultural de nossa
sociedade. Uma sociedade mórbida.
Ainda assim, este mal não é objeto de política pública de Estado. Não é o
cidadão brasileiro que interessa, mas o valor que ele produz para
realizarmos a função que os governos FHC e Lula assumiram por nós.
Racionalidade produzida para o processo histórico brasileiro com o objetivo
de tornar o Brasil a plataforma para a produção de valores, para o que a
instituição universitária e a pesquisa aplicada à valorização do capital
ocupam lugar central.
ADUR INFORMA: Como dá conta dos seus
compromissos acadêmicos sem abrir mão de momentos de lazer? O que faz para
relaxar nas horas vagas?
João dos Reis:
Aqui há um suposto de que conseguimos cumprir todos os nossos
compromissos acadêmicos. Isto na área de humanidades seria impossível para
alguém que gozasse das deificadas qualidades de onipresença e onisciência no
mínimo. Fazemos o que 10h por dia durante 5 ou às vezes 6 dias na semana
possibilitam, deixando a noite fora deste regime já forçado de trabalho. Nos
finais de semana, sem ser preciso, busco, pessoalmente, qualquer atividade
que me faça presente no aqui e agora e me esqueço o caminho para a
universidade ou qualquer outro lugar que possa me lembrar o trabalho.
Transgrido. Termino dizendo o que ouvi de um artista cubano no Teatro de
Arena da Universidad de Havana em 1990. “La transgresión es la única
actividad humana para aliviar el dolor de la separación de la alma cindida!”
* João dos
Reis Silva Júnior é professor do Departamento de Educação da Universidade
Federal de São Carlos – UFSCar. Ele é um dos autores dos livros Novas Faces
da Educação Superior no Brasil – reforma do Estado e mudança na produção
(Cortez Editora, 2001, 2ª Ed.) e Trabalho Intensificado nas Federais –
pós-graduação e produtivismo acadêmico (Xamã Editora, 2009), bem como de
inúmeros outros trabalhos, realizados em parceria com Valdemar Sguissardi –
professor aposentado da UFSCar.
Fonte:
Adur-RJ Seção Sindical e Andes-SN.
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