O culto a João Paulo (o I, não o II)
 

Albino Luciani - Papa João Paulo I

O antecessor de Karol Wojtyla era afável, compreensivo e bem-humorado – qualidades que, segundo muitos, calhariam
bem ao próximo papa.

A nostalgia deve ser deixada de lado pelos cardeais na hora de escolher um pontífice, mas, fora dos muros do Vaticano, ela é um sentimento que tempera o período que antecede os conclaves. Depois de 26 anos de pontificado do polonês João Paulo II, uma parte dos vaticanólogos italianos se pergunta se não estaria na hora de eleger um papa compreensivo e afável – de uma personalidade diametralmente oposta à de Karol Wojtyla. A lembrança mais óbvia é a de João XXIII, um homem que conseguia o milagre de não perder a piada nem o amigo. A mais surpreendente é a de João Paulo I – surpreendente porque, afinal de contas, ele ocupou o Trono de Pedro por apenas 33 dias, em 1978, antes de ser fulminado por um ataque cardíaco que teorias conspiratórias implausíveis creditam a um envenenamento levado a cabo por cardeais maquiavélicos da Cúria Romana.

Albino Luciani, o patriarca de Veneza que se tornaria João Paulo I, era avesso à primeira pessoa do singular, como lembra o vaticanólogo Alceste Santini. Não dizia "eu quero", mas "nós queremos". A única vez em que usou o "eu" foi na sua fala inaugural, e justamente para confessar suas limitações em relação a João XXIII e Paulo VI. "Não tenho nem a sabedoria do papa João XXIII nem o preparo e a cultura do papa Paulo VI. Estou, porém, no lugar que era deles, e devo procurar servir à Igreja. Espero que vocês me ajudem com as suas orações", disse ele à multidão na Praça de São Pedro. Humilde, João Paulo I transmitia a impressão de ser um pároco de aldeia, alguém para quem a mitra papal era uma coroa pesada demais. Mas hoje não são poucos os estudiosos que acreditam que sua compaixão teria sido de grande utilidade para relativizar determinados vetos da Igreja – por exemplo, ao uso de métodos contraceptivos.

Quando era apenas um bispo da cidade de Vittorio Veneto, Luciani fez uma reflexão a respeito do assunto que, sob João Paulo II, seria motivo de advertência por parte do Vaticano. Disse ele a alguns sacerdotes: "Num encontro com casais, não consegui convencê-los de que lançar mão de anticoncepcionais era pecado. Ao final, não sabia o que dizer. O que poderia responder a um pai ainda jovem, que já havia tido seis filhos e era o único a sustentar a família? Eu sabia que ele era um excelente católico e que, no restante, cumpria a lei de Deus. Acabei dizendo que os bispos ficariam muito contentes de encontrar uma doutrina que declarasse legítimo o uso de anticoncepcionais, sob determinadas condições. E que, se houvesse uma possibilidade, deveríamos encontrá-la". Luciani não pararia por aí: mais tarde, fez chegar a Paulo VI um relatório em que afirmava que, depois de consultar especialistas, tinha um "parecer favorável a alguns métodos contraceptivos no contexto dos métodos naturais".

No pontificado de João Paulo I, diz-se, haveria mais compreensão, perdão – e, não menos importante, humor. Os biógrafos oficiais de Wojtyla gostam de retratá-lo como um homem terno e bem-humorado, mas é provável que tenha sido a doença a torná-lo mais doce, mais humano. Muitos de seus interlocutores afirmam que, quando esbanjava saúde, o papa era dono de um olhar inquisidor e sua desconfiança, não raro, traduzia-se em antipatia. Um teólogo conta que, num jantar com João Paulo II, no início de seu pontificado, disse a ele que gostava muito de poesia e que havia lido todos os seus versos. "O senhor escreveu mais alguns, depois de ter se tornado papa?", perguntou-lhe o teólogo. "Não, não escrevi mais poesias depois que me tornei papa", respondeu João Paulo II. "Poderia me explicar por quê?", voltou a perguntar o teólogo. O papa nada disse, virou-se para o outro lado e começou a conversar, como se não tivesse ouvido. Vinte minutos depois, João Paulo II encarou o teólogo e falou, em tom ríspido: "Falta o contexto". Depois do jantar, o teólogo despediu-se com a seguinte frase: "Santo Padre, agora toda vez que eu rezar pelo senhor rezarei por um poeta sem contexto". Quanto ao senso de humor de Wojtyla, ele nem sempre era adequado por causa de sua causticidade. Um monsenhor que serviu no Vaticano lembra de uma audiência do papa a religiosos e teólogos alemães. Terminada a audiência, o monsenhor levou os visitantes até a porta e virou-se para despedir-se do papa. João Paulo II, então, olhou-o fixamente, aprumou-se, bateu os calcanhares e fez-lhe um aceno com a mão direita. "Uma saudação nazista!", recorda o monsenhor. Naquele momento, João Paulo II deixara de ser um pastor universal para voltar a ser apenas um polonês que se vingava do antigo invasor por meio de uma piada de gosto discutível.

O humor de João Paulo I, ao contrário, nada tinha de corrosivo – servia para agregar, não para distanciar. Na vida social, ele o usava para quebrar a barreira da formalidade. Na catequese, para enlevar os fiéis. Uma boa amostra de seu espírito está num livro relançado na Itália pouco antes da morte de Wojtyla, já na esteira da nostalgia em relação ao "papa breve". Papa Luciani Racconta (Papa Luciani Conta) recolhe anedotas e historietas de João Paulo I, selecionadas por Francesco Taffarel, seu secretário quando ele era bispo de Vittorio Veneto. VEJA selecionou três delas:

"Perdido no deserto, um homem caminhava na areia escaldante, no extremo de suas forças. De repente, ele viu diante de si um vendedor de gravatas, que tentou vender-lhe uma. Com a garganta seca pela sede, o homem disse que ele era maluco: vender uma gravata a alguém que morre de sede? O vendedor deu de ombros e continuou seu caminho pelo deserto. À noite, o viajante sedento chegou a um restaurante luxuoso, com o estacionamento cheio de carros: uma construção grandiosa e solitária em pleno deserto. O homem subiu com dificuldade a escada que levava à porta e gemeu: 'Por piedade, um pouco de água!'. O porteiro respondeu: 'Sinto muito, senhor, mas aqui não se pode entrar sem gravata'."

"O médico se aproximou do homem que estava imóvel sobre a cama. Depois, levantou a cabeça e disse: 'É doloroso dizer isso, minha senhora, mas seu marido passou desta para melhor'. A criatura, inerte, deitada sobre a cama, emitiu um protesto com a voz débil: 'Não é verdade, ainda estou vivo!'. A mulher replicou: 'Cale a boca; o médico sabe mais do que você!'. A confiança cega na autoridade compromete a nossa percepção da realidade."

"Um protestante entrou numa igreja católica com sua filha pequena. Em vez de olhar as pinturas, a menina foi atraída pela lampadinha vermelha que havia ao lado do tabernáculo. Ela, então, perguntou: 'Papai, por que lá tem aquela lampadinha vermelha?'. 'Porque os católicos acreditam que dentro daquele armarinho está Jesus sob a forma de pão consagrado. A lampadinha lembra a todos sua presença.' Uma semana depois, pai e filha entraram na sua própria igreja para um culto. A menina olhou em volta, e depois puxou o paletó do pai: 'Papai, por que aqui não tem lampadinha vermelha?'. 'Para nós, protestantes, aqui não tem Jesus, minha filha!' A menina fez uma cara séria, triste e, pegando a mão do pai, disse: 'Papai, vamos para uma igreja onde tem Jesus!'."

Dá para entender a saudade de João Paulo I, um padre bondoso, à moda antiga, que no Vaticano tinha todas as qualidades para comportar-se, de verdade, como servo dos servos de Deus, um dos títulos do papa.
 

Fonte: Revista Veja, Edição nº 1901, Mario Sabino (de Roma), 20/04/2005.


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