Morre Jean Baudrillard, filósofo que inspirou "Matrix"
Estudioso alcançou a fama em 1991, ao alegar que a Guerra do Golfo "não
ocorreu". PARIS - O filósofo francês Jean Baudrillard, um dos pioneiros do pensamento pós-moderno - rótulo que ele próprio renegava -, morreu nesta terça-feira (6), em Paris, aos 77 anos, informaram seus familiares. Crítico feroz da cultura de consumo e da sociedade moderna, Baudrillard ajudou a inspirar os irmãos Wachowski na trilogia de "Matrix". No primeiro dos três filmes, o personagem Neo, interpretado por Keanu Reeves, aparece escondendo um de seus programas subversivos no interior do livro "Simulacros e simulação", um dos mais de 50 escritos pelo pensador francês. Baudrillard alcançou a fama em 1991, com a alegação deliberadamente provocativa de que a Guerra do Golfo "não ocorreu", argumentando que nenhum lado poderia cantar vitória e que o conflito não alterou nada no Iraque. Dez anos depois, em um ensaio intitulado "O espírito do terrorismo", ele voltou a causar controvérsia, ao descrever os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos como uma expressão da "globalização triunfante combatendo a si mesma". Fonte: G1, France Presse, 6/3/2007.
JEAN
BAUDRILLARD*
O
pensador que inspirou a trilogia "Matrix" não gosta do filme e acha que a
Baudrillard não parece ligar para a fama. Ele esteve no Brasil para lançar seu novo livro, Power Inferno (Sulina, 80 páginas, R$ 18), e participar da conferência 'A Subjetividade na Cultura Digital', na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, onde falou com ÉPOCA. Sempre pautado por assuntos atuais, ele analisa no ensaio os atentados de 11 de setembro de 2001 como um ato simbólico contra o Ocidente. Nesta entrevista, ele fala sobre seu pensamento turboniilista, 11 de setembro e arte. Se a realidade já não existe e vivemos um permanente e conspiratório espetáculo de mídia, como quer Jean Baudrillard, o pensador exerce a função de entertainer às avessas. Ele decreta o fim dos tempos, e todo mundo vibra. ÉPOCA - Suas idéias demolidoras estão mais em moda do que nunca. O mundo ficou mais parecido com o senhor? Jean Baudrillard - Não aconteceu nada. O resultado de um consumo rápido e maciço de idéias só pode ser redutor. Há um mal-entendido em relação a meu pensamento. Citam meus conceitos de modo irracional. Hoje o pensamento é tratado de forma irresponsável. Tudo é efeito especial. Veja o conceito de pós-modernidade. Ele não existe, mas o mundo inteiro o usa com a maior familiaridade. Eu próprio sou chamado de 'pós-moderno', o que é um absurdo. ÉPOCA - Mas pós-modernidade não é um conceito teórico racional? Baudrillard - A noção de pós-modernidade não passa de uma forma irresponsável de abordagem pseudocientífica dos fenômenos. Trata-se de um sistema de interpretações a partir de uma palavra com crédito ilimitado, que pode ser aplicada a qualquer coisa. Seria piada chamá-la de conceito teórico. ÉPOCA - Se não é pós-moderno, como o senhor define seu pensamento em poucas palavras? Os críticos o chamam de pensador terrorista, ou niilista irônico. Baudrillard - Sou um dissidente da verdade. Não creio na idéia de discurso de verdade, de uma realidade única e inquestionável. Desenvolvo uma teoria irônica que tem por fim formular hipóteses. Estas podem ajudar a revelar aspectos impensáveis. Procuro refletir por caminhos oblíquos. Lanço mão de fragmentos, não de textos unificados por uma lógica rigorosa. Nesse raciocínio, o paradoxo é mais importante que o discurso linear. Para simplificar, examino a vida que acontece no momento, como um fotógrafo. Aliás, sou um fotógrafo. ÉPOCA - Como o senhor explica a espetacularização da realidade? Baudrillard - Os signos evoluíram, tomaram conta do mundo e hoje o dominam. Os sistemas de signos operam no lugar dos objetos e progridem exponencialmente em representações cada vez mais complexas. O objeto é o discurso, que promove intercâmbios virtuais incontroláveis, para além do objeto. No começo de minha carreira intelectual, nos anos 60, escrevi um ensaio intitulado 'A Economia Política dos Signos', a indústria do espetáculo ainda engatinhava e os signos cumpriam a função simples de substituir objetos reais. Analisei o papel do valor dos signos nas trocas humanas. Atualmente, cada signo está se transformando em um objeto em si mesmo e materializando o fetiche, virou valor de uso e troca a um só tempo. Os signos estão criando novas estruturas diferenciais que ultrapassam qualquer conhecimento atual. Ainda não sabemos onde isso vai dar. ÉPOCA - A disseminação de signos a despeito dos objetos pode conduzir a civilização à renúncia do saber? Baudrillard - Alguma coisa se perdeu no meio da história humana recente. O relativismo dos signos resultou em uma espécie de catástrofe simbólica. Amargamos hoje a morte da crítica e das categorias racionais. O pior é que não estamos preparados para enfrentar a nova situação. É necessário construir um pensamento que se organize por deslocamentos, um anti-sistema paradoxal e radicalmente reflexivo que dê conta do mundo sem preconceitos e sem nostalgia da verdade. A questão agora é como podemos ser humanos perante a ascensão incontrolável da tecnologia. ÉPOCA - Seu raciocínio lembra os dos personagens da trilogia Matrix. O senhor gostou do filme?
ÉPOCA - Quanto à arte, o senhor se dedicou a analisar o fenômeno artístico ao longo dos anos. Em que pé se encontra a arte contemporânea? Baudrillard - A arte se integrou ao ciclo da banalidade. Ela voltou a ser realista, a desejar a restituição da reprodução clássica. A arte quer cumplicidade do público e gozar de um status especial de culto, situação prefigurada nas sinfonias de Gustav Mahler. Claro que há exceções, mas, em geral, os artistas se renderam à realidade tecnológica. Desde os ready-mades de Marcel Duchamp, a importância da arte diminuiu, porque a obra de arte deixou de ter um valor em si. Os signos soterraram a singularidade. Os artistas se submetem a imperativos políticos, e não mais seguem ideais estéticos. A arte já não transforma a realidade e isso é muito grave. ÉPOCA - Por que o senhor escreveu tanto sobre a cultura americana mas nunca refletiu sobre o Brasil, que o senhor tanto adora visitar? Baudrillard - Já me cobraram um livro sobre o Brasil. Cito-o em minhas Cool Memories (trabalho no quinto volume) e em outros textos, mas a cultura brasileira é muito complexa para meu alcance teórico. Ela não se enquadra muito em minhas preocupações com a contemporaneidade, não tem nada a ver com a americana, com seus dualismos maniqueístas, um país que se construiu a partir das simulações, um deserto da cultura no qual o vazio é tudo. Os Estados Unidos são o grau zero da cultura, possuem uma sociedade regressiva, primitiva e altamente original em sua vacuidade. No Brasil há leis de sensualidade e de alegria de viver, bem mais complicadas de explicar. No Brasil, vigora o charme. ÉPOCA - O que o senhor pensa da civilização americana depois dos atentados de 11 de setembro? O mundo mudou mesmo por causa deles? Baudrillard - Claro que mudou. Nunca mais seremos os mesmos depois da destruição do World Trade Center. Abordo o tema em Power Inferno, uma coletânea de artigos sobre o império americano e a política. Considero os atentados um ato fundador do novo século, um acontecimento simbólico de imensa importância porque de certa forma consagra o império mundial e sua banalidade. A Guerra do Iraque apenas dá seqüência às ações imperiais. Os terroristas que destruíram as torres gêmeas introduziram uma forma alternativa de violência que se dissemina em alta velocidade. A nova modalidade está gerando uma visão de realidade que o homem desconhecia. O terrorismo funda o admirável mundo novo. Bom ou mau, é o que há de novo em filosofia. O terrorismo está alterando a realidade e a visão de mundo. Para lidar com um fato de tamanha envergadura, precisamos assimilar suas lições por meio do pensamento.
Fonte: Rev. Época, Luís Antônio Giron, 6/3/03.
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