A ironia da história

 

"O partido com fortes raízes populares elege o primeiro presidente saído das camadas populares e, para manter o governo em pé, precisa calar e desmoralizar uma testemunha do povo"


Há exatamente dois anos, em março de 2004, o governo fez festa para um humilde trabalhador brasileiro. Era Francisco Basílio Cavalcante, faxineiro do aeroporto de Brasília. Ele encontrara uma carteira com 10.000 dólares esquecida num banheiro do aeroporto e entregou-a ao seu chefe, sem surrupiar um tostão. A carteira foi devolvida ao dono, um turista estrangeiro, e Francisco Cavalcante virou uma celebridade de quinze minutos. O presidente Lula falou dele em discursos e chegou a recebê-lo no Palácio do Planalto, onde conversaram e tomaram um cafezinho. Francisco Cavalcante saiu empolgado do encontro. Ganhara um autógrafo de Lula em seu macacão de faxineiro. Votara em Lula. Admirava Lula. Estava feliz.

E o que acontece agora?

Agora, exatos dois anos depois, o governo se empenha em impor silêncio e achincalhar um humilde trabalhador brasileiro. É Francenildo dos Santos Costa, o caseiro da mansão que o ministro Palocci jura – em público – que não freqüentava. O caseiro não pôde falar tudo o que sabe na CPI dos Bingos porque um senador governista conseguiu amordaçá-lo a tempo com um pedido judicial. E a polícia, com uma rapidez impressionante, descobriu uns depósitos em sua conta, deixando prosperar tenebrosas insinuações de que o rapaz recebeu dinheiro para falar... A polícia obteve acesso a dados bancários de um sujeito que não é investigado nem acusado de nada. (Ah, se essa mesma polícia tivesse essa eficiência para revelar a vida bancária de um Paulo Okamotto!)

Em apenas dois dias, o governo conseguiu massacrar o caseiro em sua celebridade de quinze minutos: mandaram-no calar a boca e vazaram a suspeita de que não passa de larápio vendilhão. Mas ninguém, nem os governistas, se arrisca a dizer que o caseiro mentiu.

É óbvio que o governo não faria festa para um caseiro que lhe faz acusações devastadoras, embora não fosse preciso tentar moê-lo na máquina da desmoralização, mas a diferença de tratamento dado a um e outro humilde trabalhador brasileiro é dramaticamente ilustrativa da trajetória que o governo Lula percorreu nos últimos dois anos. Eis a ironia da história: o partido com fortes raízes populares elege o primeiro presidente saído das camadas mais populares e, para manter o governo em pé, precisa calar e desmoralizar uma testemunha do povo. É emblemático.

Emblemático, também, porque a biografia do caseiro que abalou o governo é bastante parecida com a do presidente da República. Francenildo nasceu no povoado de Nazária, no interior do Piauí. É um retirante nordestino. Aos 13 anos, na companhia da mãe, pegou um ônibus para Brasília. Estudou até a 5ª série. Diz que trabalha desde que se conhece por gente. Ele gosta de Lula. Votou em Lula. "Vi que ele era bem votado no Nordeste e, como sou nordestino, resolvi votar nele." E pretende repetir seu voto. "Voto de novo no Lula. Fazer o quê? Não conheço os outros."

Esse é o monstro que conspira contra o governo.
 

Charge: Ique - Jornal do Brasil, 22/3/06.


Fonte: Rev. Veja, André Petry, Ed. 1948, 22/3/2006.


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