Os intelectuais contra a Reforma da Previdência (PEC 40)  1, 2, 3, 4, 5
"Esse governo não pode começar com uma negociata" 

(5)

WARWICK KERR *
 

"Para onde vai esse dinheiro que vão tirar da gente, será que é para os mais pobres? Não. A proposta do Lula é altamente capitalista"
 

Queria fazer aos caros colegas uma confissão. Eu votei no Lula três vezes. Se continuar como está não voto a quarta. O resultado grande, maléfico e terrível que eu vejo com a privatização da Previdência é que ela acaba com a aposentadoria integral. Mas isso será bom? Estamos assistindo a um processo de preparo de aposentadorias que, se consumado, fará drenar cérebros daqui para fora ou para a inatividade. É a destruição de uma parte importante do pensamento brasileiro.

A Previdência era integral e além disso qual é o contrato que o Lula fez com a gente? O que ele encontrou? Encontrou a Previdência integral e a paridade entre ativos e aposentados. Isso aí me tem feito um bem que vocês nem imaginam, não parei de trabalhar um minuto. Depois dos 70 anos, a aposentadoria é compulsória. Mas várias universidades, e a minha também, e aqui também, fizeram um negócio lindo. Se o professor quiser trabalhar, ele pode usar as instalações, mas tem que usar um documento de que ele jamais requererá o dinheiro do seu trabalho. Ele trabalha de graça mesmo. É o meu caso. Que gostoso que é trabalhar de graça. Aposentei-me aos 70 anos, ou seja, estou há 11 anos com trabalho de graça para a universidade. E assim estão muitos outros, já ouvi falar do Aziz, Pavan, Frota-Pessoa etc, são pessoas que trabalham de graça há bastante tempo.

A pergunta que a gente faz é para onde vai esse dinheiro que vão tirar da gente, será que é para os bolsos dos trabalhadores mais pobres, para resolver os enormes problemas sociais do país? Não. A proposta do Lula é altamente capitalista. Vai para fundos de capitalização organizados por banqueiros ou sindicatos, mas em ambos os casos o dinheiro irá para a especulação financeira mais rentável, quer dizer, aquela que mais explora os trabalhadores e o país. E de vez em sempre a especulação leva à quebradeira e os fundos de pensão também viram pó. É o caso da Capemi. Se a gente pusesse aqui seriam 20 exemplos. Os Estados Unidos têm um monte. A Enron foi um negócio formidável.

* Biólogo geneticista, foi professor da USP, Unesp, UFU e UFMA. Foi reitor da UEMA, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), presidente da SBPC e o primeiro diretor científico da Fapesp. É membro da National Academy of Sciences (EUA).


(4)

FÁBIO KONDER COMPARATO*
 

"Todo o peso da estabilização recai sobre as camadas mais pobres. Esta situação, no caso da Previdência, é frontalmente contrária à Constituição"
 

Não poderia deixar de estar presente aqui para manifestar minha opinião. Todos nós que elegemos Lula, e teimamos em manter até o último minuto a esperança de que esse governo seja bem-sucedido, não podemos deixar de lutar contra a colossal contradição que se instalou no governo. De um lado, é bom que se diga, temos uma política externa independente e democrática, como jamais ocorreu em toda a história política do Brasil. De outro lado, todo o peso da estabilização financeira e monetária recai sobre as camadas mais pobres da população. Esta situação, especificamente no caso da Previdência Social, é, devo dizê-lo, frontalmente contrária à Constituição. Infelizmente, durante muito tempo negligenciamos o aperfeiçoamento desses instrumentos jurídicos de proteção do povo. Para a maioria de todos nós intelectuais, isso eram tecnicalidades que não tinham muito sentido. Hoje nós vemos como o povo está desamparado.

Só vejo dois caminhos, ambos já minados pelo poder das classes dominantes. Em primeiro lugar, haveria necessidade de desenvolvermos um processo de referendo dessa reforma previdenciária. Nós sabemos que o governo tem maioria no Congresso e provavelmente vai conseguir aprovar na Câmara e no Senado tanto a reforma tributária quanto a previdenciária, mas nós deveríamos propor a realização de um referendo popular para ratificação dessas reformas. Precisamos fazer com que um terço da Câmara e um terço do Senado proponham a realização de um referendo para aprovação desses projetos. É preciso entender que a democracia essencialmente se funda na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos.

O direito à Previdência, à segurança social, é um direito fundamental, declarado como tal na Constituição, portanto nenhum órgão do Estado tem competência para reduzir as garantias que foram estabelecidas na Constituição. Se este referendo não prosperar, temos o caminho da Ação Direta de Inconstitucionalidade. De qualquer maneira, vamos manter sempre a convicção e a esperança de que devemos atuar ligados ao povo e nunca a um partido político ou a uma maioria ocasional.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi um dos advogados de acusação no processo de impeachment do então presidente Fernando Collor e um dos autores de uma ação contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Publicou, entre outros livros, Para viver a democracia.


(3)
OCTÁVIO IANNI * 

"Todos devemos estar preparados para a tempestade que se anuncia com esses ventos" 

Faz tempo que nós estamos lutando pela democracia e por justiça social. Alguns de nós estamos nesta batalha desde o declínio do Estado Novo, desde as lutas contra o nazi-fascismo e a ironia da história é que nós continuamos na mesma situação. Precisamos nos organizar, nos mobilizar e nos conscientizar para que os nossos direitos precários ainda sejam preservados e outros novos direitos sejam conquistados.

Em todo o mundo as conquistas sociais estão sendo desbaratadas. O Estado do Bem-Estar Social está sendo mutilado no Brasil, em países da América Latina, Europa e Estados Unidos, sem esquecer é claro a Ásia e a África. No caso do Brasil estamos assistindo a um processo de desmonte radical do projeto nacional.

Todos sabemos que durante os anos 30-64 se montou no Brasil um vigoroso projeto nacional. Não é o projeto dos meus sonhos e certamente não é o projeto dos sonhos de muitos aqui. Mas foi um poderoso projeto nacional, simbolizado, por quê não?, em Celso Furtado, em Juscelino Kubitschek, com a participação de muitos setores sociais que contribuíram para que este projeto alcançasse realizações excepcionais.

Pois bem, desde a ditadura militar, e agora pelos governos civis, estamos assistindo a um sistemático desmonte do projeto nacional. A Previdência é um dos capítulos do processo de desmontagem do projeto nacional e claro, do Estado de Bem-Estar Social muito precário que se havia alcançado.

E é lastimável, é de fato uma profunda e grave decepção que nós estejamos aqui reunidos para protestar contra as providências que este governo está adotando e que significam na minha maneira de ver uma das fases finais, se não a fase final, de desmonte do projeto nacional e do desmonte do Estado de Bem-Estar Social.

Mas a triste realidade é que também este governo já se entregou gostosamente às diretrizes, às práticas e à ideologia do neoliberalismo.

O que o governo está semeando é uma tempestade. Todos devemos estar preparados para a tempestade que se anuncia com esses ventos. Essa será, muito provavelmente, a ocasião em que os diferentes setores, classes e grupos sociais subalternos, organizados e atuantes, encarregar-se-ão de "educar duramente o Estado", criando um novo e transparente metabolismo entre as tendências predominantes na sociedade civil e um outro e novo Estado.

* Professor emérito de Sociologia da Unicamp e da USP. Professor honoris causa da Universidade Federal do Paraná e da Universidade de Buenos Aires. Autor de vários livros, entre os quais Estado e planejamento econômico no Brasil e Imperialismo na América Latina.


(2)
MARILENA CHAUÍ* 

"Precisamos impedir o colapso, o fracasso e a direitização de um governo de esquerda que está lá porque nós o construímos"

A
exposição do Wilson Cano foi decisiva porque muito impressionante. Podemos levantar duas questões. A primeira é por quê, não sendo necessária esta reforma (uma reforma sim, mas não esta), e sendo inconstitucional, por que é que ela está sendo feita. E levar em conta o que diz o Chico de Oliveira, que essa reforma rende mais do que qualquer privatização feita no governo Fernando Henrique e portanto está ligada a uma negociata. Isso para nós petistas é de uma gravidade sem precedentes, porque nos força a deslocar a discussão do campo econômico e do campo político e do campo ideológico para o campo ético puro e simples. Quando me preparei para dizer o que ia dizer, o Wilson Cano e o Chico ainda não tinham falado. Mas não mudei de opinião quanto a algumas coisas que vou dizer aqui.

Podemos dizer que, do ponto de vista de um governo petista, o primeiro equívoco foi tomar como prioritário um tema que pertencia à agenda do Fernando Henrique. Você não poderia, do ponto de vista da política entendida como operação com símbolos, propor como primeira reforma do seu governo aquilo que era a agenda prioritária do governo adversário que você derrotou.

Há um segundo equívoco gravíssimo. Ao propor esta reforma o governo abriu uma brecha que tende a se tornar um verdadeiro abismo que o separa de uma base social e política fundamental. Essa base política construiu, junto com outros, o Partido dos Trabalhadores e se organizou como oposição no interior da sociedade. Elegeu esse governo e está sendo afastada desse governo. Então, a reforma produz um corte político entre o governo e uma base de sustentação essencial, que será de gravíssimas conseqüências para o futuro.

O terceiro equívoco é de timing, na medida em que o governo nos diz que ao encontrar o país se desmanchando como uma geléia e uma expectativa nacional e internacional de que o país estava acabado de maneira mais terrível do que a Argentina, e que os coveiros disso seriam os petistas, houve a decisão de fazer o que eles chamam de reversão de expectativas, e demonstrar que o país não quebraria nas mãos do PT. Sabemos o preço de fazer isso, todos nós sabemos. Ora, no instante mesmo em que o governo julga necessário reverter expectativas dos organismos internacionais e da classe dominante brasileira, ele não pode fazer uma proposta de reforma previdenciária na qual anula o pólo antagônico, isto é, o pólo trabalhador.

Esta reforma é um enorme equívoco do governo. Abre uma contradição entre a sua proposta afirmada de inclusão e cidadania e uma proposta efetivada de exclusão. Então eu penso que mais do que nunca nós estamos convocados a uma ação política, temos a tarefa política de fazer isso para que efetivamente o governo de esquerda que nós elegemos possa se realizar. Penso que nossa tarefa de crítica, de contestação, de esclarecimento, de informação, de retomada no plano racional, político e técnico dessa questão é um dever histórico que temos, é uma tarefa política indeclinável, porque da nossa ação com relação a essa primeira exposição social do governo, do resultado da nossa ação, depende o que vai acontecer com o restante desse governo. É uma hora muito grave, estou sugerindo a nossa responsabilidade histórica de impedir o colapso, o fracasso e a direitização de um governo de esquerda que está lá porque nós o construímos. Esse governo não pode começar com uma negociata. Não foi para isso que trabalhamos durante 30 anos.

* Professora titular de Filosofia da USP. Foi secretária municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo entre 1989 e 1992. O que é Ideologia, Brasil – mito fundador e sociedade autoritária e Conformismo e Resistência estão entre os diversos livros de sua autoria.


(1)
WILSON CANO* 

"Não é verdade que a questão da reforma tenha como objetivo a resolução de um problema fiscal imediato. Isto é um engodo" 

A
o invés de estarmos hoje vivendo o sonho da reconstrução, estamos vivendo como que um verdadeiro pesadelo. As finanças públicas constituem um saco de mágico. Durante todos esses anos, os vários governos foram tirando os coelhos possíveis. E sobraram dentro desse saco só coelhos muito complicados de serem tocados. O grande chama-se receitas vinculadas, saúde e educação, e o governo não pode meter a mão nesse dinheiro. Tem outro dinheiro sagrado, intocável, que é o dinheiro dos juros dos banqueiros. E o que no passado nós imaginávamos que dificilmente seria tocado, que é o dinheiro do pagamento dos funcionários públicos da ativa e inativos. Na verdade só restou ao governo agora passar o caco de telha nos gastos da Previdência pública federal. É o que sobrou. Não há mais coelhos nessa cartola.

O governo contou com o velho preconceito da classe média, e incutiu esse preconceito muito bem na classe operária, nos comerciários, nos bancários, tentando mostrar sempre o funcionário público com aquela imagem do estúpido barnabé ou da gostosona, da Maria Candelária. Por isso a condução da reforma da Previdência, ao contrário do que desejaríamos, está avançando a passos largos, e vai ser extremamente difícil para nós fazer algum retoque substancioso nesse maldito projeto.

Mas esse reajuste será insuficiente, dado que não é verdade que a questão da reforma tenha como objetivo a resolução de um problema fiscal imediato. Isto é um engodo. O crescimento adicional de renda que ela vai proporcionar ou está automaticamente comprometido com os novos aumentos da aposentadoria, ou gerará um pequeno acréscimo na receita incapaz de dar ao menos um respiro. Vai sobrar o quê? Vai sobrar passar àquelas verbas vinculadas de uma forma camuflada. Qual é a forma camuflada? É a "focalização", que já vem recebendo documentos oficiais do Ministério da Fazenda. Tentando implantar no Brasil o receituário do Banco Mundial. E com isso eu afirmo perante a opinião pública que continuo a realizar gastos sociais.

O que tem essa reforma de verdade e o que tem essa reforma de mentira? Primeiro se infligiu à mídia o número astronômico de que o gasto era de R$ 75 bilhões. Esse é o primeiro engodo. Esse número tem que ser dividido em três partes: R$ 17 bilhões eles atribuem ao INSS, R$ 39 bilhões atribuem ao governo federal, e o restante aos governos estaduais e municipais. São três os problemas, e de naturezas diversas. É portanto uma impropriedade este governo e esta mídia juntarem esses três animais em uma só jaula. Se metade da dívida de R$ 160 bilhões fosse cobrada, e se a ela fossem aplicados os juros que damos prazerosamente ao sistema financeiro (26,5%, que é um escândalo), daríamos ao INSS mais R$ 22 bilhões por ano.

Mais ainda, com o artifício da desvinculação das receitas orçamentárias federais, que faz o governo? Ele separa 20% de tudo o que entra no Tesouro Nacional, seja dinheiro marcado, seja dinheiro não marcado. No final do ano, ele transfere ao INSS, rotulando esse dinheiro como transferência do governo federal, como se estivesse tapando o buraco da Previdência Social. Ora, meu Deus do céu! O orçamento da Previdência Social foi superavitário no ano passado em R$ 33 bilhões, e esses R$ 33 bilhões deveriam ser aplicados portanto na Previdência, não para déficit, porque não existe sistema previdenciário no planeta que seja superavitário. Seria aliás um contra-senso, que existisse sistema previdenciário que fosse superavitário. Esse déficit portanto é um engodo.

Ontem estive num debate com o Ministro, e tive o prazer de dizer a ele: "Ministro, cuidado, porque no projeto vocês elevaram o teto do INSS mas não constituiram nenhum fundo de acumulação. Vocês vão fazer com esse dinheiro como todos os governos anteriores, que nunca constituíram um fundo de acumulação para o INSS?", e aí dei a receita: "Ministro, pegue esse dinheiro e aplique durante 14 anos, pague a ele apenas um terço do que vocês pagam aos banqueiros, ou seja, dê 5% de juros reais, que em 14 anos acaba o ‘déficit’ do INSS. Sem fazer nenhuma reforma. Sem mexer na Previdência pública federal".

Estamos caminhando infelizmente para um projeto de reforma previdenciária que, se vingar do jeito que está, estaremos produzindo um novo sistema perverso de regressão na distribuição de renda nesse país. Uma figura fantasmagórica, Robin Hood às avessas, travestido, que não rouba dos ricos para dar aos pobres, que não tira da classe média para dar aos pobres, mas que vai tirar da classe média para dar ao sistema financeiro a absoluta garantia de que todas as dividas serão pagas. 

* Professor titular de Economia na Unicamp. Foi professor titular em cursos da Cepal, de 1966 a 1980. Publicou os livros Soberania e Política Econômica na América Latina e Reflexões sobre o Brasil e a Nova (Des)Ordem Internacional.


Fonte: Adusp, 6/2003.


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