Ingenuidade e ideologia
A surpresa do governo
com o anúncio de Morales e a
Lula viu-se obrigado a sorrir amarelo por causa da vaga cartilha ideológica de esquerda que passou a nortear as ações da diplomacia brasileira desde que ele assumiu a Presidência e com a qual ainda se sente obrigado a ser coerente. Foi essa vaga cartilha que o levou a considerar que Morales tinha o "direito" de tomar à força refinarias construídas com dinheiro brasileiro e de ameaçar o acordo de fornecimento de gás que viabilizou a construção (também com dinheiro brasileiro) do gasoduto até os mais importantes pólos industriais do país. O saldo da fala presidencial é desastroso: ao defender a Bolívia, e não o Brasil, Lula deu a impressão de ter sido também "nacionalizado" por Morales.
Não há maior pecado na diplomacia, cuja essência é o pragmatismo na busca pela manutenção dos interesses comerciais e geopolíticos do país, do que ser ingênuo. A diplomacia do governo Lula é, infelizmente, ingênua – e, como tal, tem dado em nada na esmagadora maioria das vezes. "A política externa brasileira se caracteriza hoje pela ideologização das decisões e pela politização das negociações comerciais", avalia o embaixador Barbosa. O resultado dessa opção tem sido uma sucessão de prejuízos para o país. Em troca de apoio para suas pretensões de conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança, o Brasil, em novembro de 2004, reconheceu a China como uma economia de mercado. Com o gesto – por meio do qual assumia que os chineses adotam práticas comerciais condizentes com as regras mundiais –, o Brasil abriu mão do direito de recorrer a salvaguardas comerciais para proteger-se em caso de concorrência desleal chinesa. Pequim retribuiu a gentileza aliando-se aos Estados Unidos e à Rússia, em 2005, para vetar o projeto que ampliaria o Conselho de Segurança, possibilitando a entrada do Brasil no grupo. Não foi só. Mais recentemente, o governo aceitou que a Argentina, parceira no arruinado Mercosul, impusesse barreiras à importação de alguns produtos brasileiros para proteger o seu mercado interno, sob o inacreditável argumento de "ajudar o país vizinho no seu retorno a um ciclo de crescimento". Agora, na crise boliviana, o governo repete o padrão de subordinar os interesses nacionais às obsessões históricas do partido pelo qual foi eleito. Ao roubo do patrimônio brasileiro praticado por Morales, Lula respondeu com um discurso em que negou a existência de crise com o país vizinho – a que se referiu como "esse povo sofrido que tem o direito de reivindicar maior poder sobre a maior riqueza que tem". Nada sobre o fato de os interesses brasileiros na Bolívia terem sido agredidos de forma inaceitável. A crise com a Bolívia (que apenas para o presidente brasileiro não existe) escancarou o modelo centralizador implantado pelo Itamaraty da era Lula. Por esse modelo, todos os poderes estão concentrados nas mãos do trio de cordeiros em pele de cordeiro formado pelo chanceler Celso Amorim, pelo assessor especial de política externa, Marco Aurélio Garcia, e pelo secretário executivo do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães. Aos embaixadores, pouca autonomia restou. Ou alguém sabe o que anda fazendo o representante do governo brasileiro em La Paz? Antonino Mena Gonçalves (esse é o nome do embaixador na Bolívia) conseguiu a façanha de tornar-se mudo e invisível em meio à mais barulhenta confusão envolvendo o país que ele representa e aquele no qual trabalha. Lula sonhou em resgatar a "liderança natural" do Brasil na América do Sul apoiado em seu carisma pessoal e no velho ideário da esquerda que preconiza "a união dos oprimidos contra a hegemonia do opressor". Deu-se mal, claro, e os motivos saltam aos olhos. O primeiro deles é que não se constrói uma liderança com base em retórica. "Quem quer influenciar nas decisões dos demais países tem de ter recursos humanos e materiais para oferecer", diz Marcos Azambuja, ex-embaixador brasileiro em Paris. Traduzindo: o exercício da liderança demanda um bom talão de cheques. O presidente venezuelano Hugo Chávez, um arruaceiro montado em petrodólares, não pára de sacar o seu. No acordo que selou a entrada da Bolívia numa certa Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) – nascida da cachola de Chávez –, firmado no sábado anterior ao anúncio da nacionalização, a Venezuela se compromete a criar um fundo de até 100 milhões de dólares para "financiamento de projetos produtivos e de infra-estrutura" na Bolívia. Não espanta que Morales tenha preferido essa oferta de seu titeriteiro venezuelano à amizade incondicional de Lula – amizade que, talvez para assombro do próprio boliviano, continua incondicional apesar de tudo.
Há um segundo motivo
pelo qual o presidente brasileiro não concretizará seu sonho de
transformar-se no "guia dos oprimidos", na versão subcontinental. Ele reside
no fato de que, a despeito do que desejam o presidente e o triunvirato do
Itamaraty, os oprimidos não parecem nem um pouco interessados em abrigar-se
sob as asas do Brasil para fazer frente ao "opressor" (no caso, os
americanos). No mesmo dia em que Morales surpreendeu o Brasil com o anúncio
da nacionalização, o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, anunciou, em
visita a Washington, a intenção de deixar de ser membro pleno do Mercosul
para tornar-se apenas um associado. O novo status lhe dará liberdade para
assinar com os americanos um acordo de livre-comércio. O Paraguai caminha na
mesma direção. Antes dele, o Chile, o Peru e o Equador – países que Lula
tentou insistentemente atrair para o Mercosul – já haviam feito a opção por
acordos comerciais bilaterais com os Estados Unidos. Tais acordos são,
agora, a estratégia americana para substituir a Área de Livre-Comércio das
Américas (Alca), que resultaria na criação de um grande mercado comum do
Alasca à Patagônia e foi torpedeada por Chávez e seus asseclas, com apoio do
Brasil. Traído pelo "muy amigo" Morales, esvaziado no papel de grande líder
latino-americano e com toda a chance de ficar com a tocha do Mercosul na
mão, falando sozinho, só resta a Lula fingir que tudo anda às mil
maravilhas, assim como fez no que se refere ao mensalão. Mas que nossos
"hermanos" não se enganem: se os atuais ocupantes de cadeiras em Brasília
gostam de apanhar, o Brasil não é mulher de malandro. Fonte: Rev. Veja, Camila Pereira, ed. 1955, 10/05/2006 |