A independência energética
José Goldemberg* 
 

“O problema não é apenas nosso, mas domina, no momento, as relações
internacionais de muitos países, desde que a energia passou a ocupar
um lugar central no mundo moderno”

A recente disputa ente a Petrobrás e a Bolívia em relação aos investimentos da empresa naquele país e a continuidade do suprimento de gás para SP não só nos ensinaram como é difícil depender dos outros, mas também como é difícil ser uma nação imperial.

O problema não é apenas nosso, mas domina, no momento, as relações internacionais de muitos países, desde que a energia passou a ocupar um lugar central no mundo moderno. Sem petróleo e gás as sociedades modernas simplesmente deixam de funcionar, tanto na paz como na guerra.

Algo parecido com isso ocorreu no passado com a importação de alimentos, cuja falta provocava aumentos de preço e até racionamentos, mas a dependência de importações, neste caso, raramente leva a uma crise sem solução.

A falta de alguns alimentos pode quase sempre ser solucionada com a sua substituição, e uma certa produção local sempre existe, permitindo ajustes graduais.

Com gás e petróleo os problemas podem ser muito mais dramáticos. Basta fechar uma torneira no gasoduto que leva gás da Rússia para a Europa Ocidental para que uma grave crise se instale imediatamente, o mesmo ocorrendo com o suprimento de petróleo do Oriente Médio, do qual os EUA são particularmente dependentes. 

A instabilidade política naquela região do mundo, agravada pela invasão do Iraque e pelas ambições nucleares do Irã, tem repercussão direta no preço do petróleo e na regularidade do seu suprimento. Não é, pois, de admirar que boa parte do enorme poder militar dos EUA esteja engajado naquela região.

Até recentemente - pouco depois da queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética - se passou a pensar que, com a emergência de uma única superpotência mundial como os EUA, as tendências nacionalistas diminuiriam à medida que os países se integrassem numa economia de mercado globalizado, numa espécie de "pax americana", como foi a "pax romana", que levou a civilização de Roma a todos os pontos do seu enorme império.

O domínio de Roma resultou na escravização dos demais países existentes na época, permitindo que os cidadãos romanos atingissem um nível de prosperidade invejável. Repetir o exemplo de Roma nos dias de hoje não é mais possível, apesar de várias tentativas nesse sentido.

A integração poderia, contudo, ocorrer com a universalização do acesso à informação, por meio da internet, e da expansão da democracia em muitos países.

São elas que deram origem à popularidade dos escritos de Thomas Friedman, influente jornalista americano, que escreve para o jornal The New York Times.

Ele disseminou a idéia de que "o mundo é plano", sem barreiras, e que gradualmente todos os países atingiriam o nível de bem-estar e de valores dos EUA.

É evidente, hoje, que isso não está acontecendo. A ascensão do nacionalismo como uma força política de primeira grandeza está ocorrendo em várias partes do mundo, principalmente na América Latina, e a crise do petróleo e gás está alimentando essa tendência.

Além disso, os conflitos culturais e étnicos atuais nos Bálcãs e na África - que chegam a lembrar os conflitos entre nações que nos levaram à 1ª Guerra Mundial e aos genocídios da 2ª Guerra Mundial - mostram que a integração das civilizações não está ocorrendo de forma muito suave. Mais recentemente, até na Europa e nos EUA esses problemas se manifestaram de forma intensa, na tentativa de barrar as ondas migratórias que invadem seus países.

No caso da energia - petróleo, gás e até de energia nuclear -, a instabilidade política no Oriente Médio e o abandono do multilateralismo pelo atual governo americano estão acirrando as tendências nacionalistas de muitos países que sentem que não podem depender de governos que colocam seus interesses nacionais acima do interesse dos demais.

É natural, portanto, que estes países tentem reduzir ao mínimo possível importações de energia, produzindo dentro de suas fronteiras nacionais o que for necessário.

A procura pela independência energética não é um fato novo no mundo moderno e não foi por outra razão que o general De Gaulle impulsionou a energia nuclear na França para produzir eletricidade.

Para a França, que gerava energia elétrica a partir de carvão ou derivados de petróleo, essa era uma solução.

Outros países, como o Brasil, que tem um sistema energético com outras características, não precisam seguir o modelo francês, porque possuem outras opções mais atraentes, procurando sua independência energética pela via da auto-suficiência.

Para o Brasil, a solução natural para a produção de eletricidade é, ainda, a energia hidrelétrica, com a auto-suficiência em petróleo assegurada pela exploração da plataforma continental, além do gás natural, para resolver o problema dos transportes, e do álcool combustível.

Na verdade, o Brasil já exerce um papel de destaque no cenário mundial, servindo de exemplo aos outros países. A auto-suficiência em gás natural poderá ser conseguida acelerando os trabalhos de extração das reservas da Bacia de Santos.

Tais projetos poderão tornar-nos independentes da Bolívia e, evidentemente, da Venezuela - que está propondo uma aventura, que é a de construir um gasoduto de mais de 6 mil quilômetros, parte dos quais na floresta amazônica.

Os impactos, de todos os tipos, decorrentes desse projeto podem ser extremamente elevados e precisam ser avaliados com cautela. À primeira vista, essa proposta pode servir aos interesses dos venezuelanos, mas não aos nossos, nem do ponto de vista de segurança energética nem ambiental.

* José Goldemberg é secretário do Meio Ambiente do Estado de SP.

Estadão, 15/8/2006


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