INCLUSÃO DIGITAL
Maioria dos projetos de inclusão digital ignora inclusão social
 

Na semana da inclusão digital, organizações que trabalham para levar computador à população carente afirmam que muitos programas
têm
enfoque apenas ferramental. Elas defendem o uso do
software livre e a participação popular na gestão dos
projetos como condição de acesso à cidadania

 

“Digital, digital. Preciso de uma chance pra mostrar meu potencial. Digital, digital. Um dia quero ser um profissional”. No refrão do Rap da Inclusão Digital, o jovem Ademir Francisco da Silva, de 18 anos, mostra a aposta que faz no mundo da informática para mudar o mundo da comunidade de Paraisópolis, uma das mais carentes da cidade de São Paulo. Há cinco anos, ele freqüenta a Escola de Informática e Cidadania (EIC) Creche Arquinha. Ali, uma vez por semana, ele e mais de 100 crianças e adolescentes têm aulas de computação voltadas não apenas para a inclusão digital, mas, principalmente, para a social. “A tecnologia mudou a minha vida. Às vezes eu me enrolo no teclado, mas já sei usar a internet para fazer pesquisas para a escola, tenho e-mail, fiz o meu currículo, tudo ficou mais rápido”, conta Ademir. 

As EICs são escolas criadas em comunidades de baixa renda e que têm como objetivo a inclusão digital e social por meio da utilização de tecnologias da informação e da comunicação. São um projeto do Comitê para a Democratização da Informática (CDI), uma organização que nasceu há doze anos no Rio de Janeiro com o objetivo de integrar ao universo da tecnologia pessoas que estejam à margem do processo de acesso e uso de computadores. Hoje, o CDI está presente em 20 Estados brasileiros e em dez países. A Rede CDI já conta no Brasil com 962 escolas – em áreas de pobreza, assentamentos, comunidades quilombolas, penitenciárias, aldeias indígenas e instituições de ressocialização de jovens infratores – , que funcionam neste modelo através do trabalho de cerca de dois mil educadores e mais de mil voluntários. Mais de 500 mil jovens e adultos já se formaram nesses espaços, onde o encontro com o computador abre caminhos para a construção de cidadania. 

Na chamada era da informação e do conhecimento, garantir o acesso da população à informática pode ser visto como uma ferramenta tão essencial ao desenvolvimento humano como o acesso à educação, à saúde e aos demais direitos humanos. O brasileiro, no entanto, está ainda muito longe desta realidade. A média nacional de acesso a computadores é de 12%, e apenas 8% da população têm acesso à internet. Segundo o Mapa da Exclusão Digital, publicado em 2003 pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, as menores taxas de acesso são encontradas nos estados mais pobres, como Maranhão e Piauí, ou de ocupação recente, como o Tocantins. Os domicílios com altos percentuais de acesso digital estão, em sua maioria no sudeste urbano, principalmente na região metropolitana de São Paulo (31,10%). Dos chamados “incluídos digitais”, 97,24% encontram-se em áreas urbanizadas. 

Outro dado interessante do estudo é o que mostra que a população branca representa 79,77% dos incluídos digitais (no Censo 2000, a população branca corresponde a 53,74% da população brasileira). Os pardos representam 15,32%, contra 38,45% indicados pelo Censo. Os negros correspondem a apenas 2,42% dos incluídos digitais, o que prova que os apartheids racial e digital caminham de mãos dadas no Brasil, mesmo quando se consideram brancos e afrobrasileiros que obtiveram as mesas oportunidades de educação e emprego. Mesmo sob a igualdade destas condições, a chance de um branco ter acesso à internet é 167% maior do que a de um não branco. 

É para diminuir este abismo digital – que contribui para a perpetuação e aumento da exclusão social no Brasil – que centenas de programas de inclusão digital nasceram e se proliferaram no país, pela iniciativa do poder público e, principalmente, da sociedade civil. A imensa maioria deles, no entanto, ainda é focada na simples oferta de computadores e internet à população carente, sem que se garanta que essas pessoas usem a tecnologia para adquirir o conhecimento necessário para a transformação social. 

“No discurso, todo mundo que está falando de inclusão digital demonstra preocupação com a inclusão social e com usar as ferramentas como meio para essa inclusão. Na prática, é um pouco diferente, e a gente corre um risco muito grande de falar para os convertidos. Mas se a gente foca na tecnologia apenas, que já está pronta e que foi criada por quem não está lá, sabendo das necessidades de quem precisa, não tem sentido. O sentido é partir das necessidades das pessoas e usar a tecnologia a favor. É isso o que fazemos quando discutimos comunicação, organização comunitária, protagonismo juvenil. Esse é o pulo do gato”, acredita Rodrigo Alvarez, coordenador do CDI-SP. 

Para o professor Ismar de Oliveira Soares, do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo, os grupos que promovem inclusão digital com foco da cidadania ainda são minoria. “O que predomina é o ferramental. E o discurso instrumental é o predominante da matriz, ou seja, dos Estados Unidos. São eles que difundem a tecnologia, que lutam por espaços, conseguem vender seus equipamentos, fazem grandes feiras, mas ficam no mercado e no comércio. Na prática, o que as pessoas vão fazer com essa tecnologia ninguém sabe. É um pessoal voltado para o seu umbigo, com pouquíssima preocupação social. E essa prática ainda é muito presente no Brasil”, afirma Soares. “Quando a inclusão digital se soma à cidadania, nós temos a ponta de lança para fazer avançar as questões. Os grupos que estão fazendo isso estão superando a fragmentação que muitos tecnólogos trouxeram, ao fazer um discurso laudatório da tecnologia sem compromisso social. A união dos grupos que trabalham com inclusão social a partir de uma perspectiva da convergência de linguagens e da prática da cidadania representa a ponta mais avançada do processo de avanço na discussão de democratização da própria sociedade”, diz.

Participação popular

Nos diversos debates realizados em diferentes capitais do Brasil nos últimos dias, quando comemora-se a Semana da Inclusão Digital, ficou muito claro um dos caminhos a ser seguido na busca pela relação entre inclusão digital e inclusão social: a participação da população atingida pelos projetos na sua gestão e definição de rumos. O exemplo de como efetivar isso na prática foi dado pela prefeitura de São Paulo em seu programa de inclusão digital. Durante a última gestão municipal, quando foram instalados 124 telecentros nas regiões de menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da cidade, foram criados também 80 conselhos gestores desses telecentros. Ali, a participação popular definia em parceria com o poder público questões desde o horário de funcionamento dos espaços até os cursos que seriam oferecidos aos moradores locais. 

Com a mudança na administração de São Paulo, o programa de inclusão digital foi um dos primeiros a sofrer cortes. A gestão Serra alega restrições orçamentárias para manter o projeto funcionando nos mesmos moldes, mas também houve modificações em áreas que não dependem necessariamente de recursos financeiros – o que alterou, na prática, o modelo de inclusão digital que vinha sendo desenvolvido na cidade. 

“Na gestão passada, trabalhávamos com o tripé inclusão digital, internet cidadã e software livre. Na inclusão digital, era central a participação popular. Não queríamos formar consumidores de políticas, de serviços e de softwares, aprisionados aos monopólios; mas formar cidadãos. Não tivéssemos a cabeça em que o central é formar cidadãos, não teríamos feito um terço do que fizemos”, explica Beatriz Tibiriçá, ex-coordenadora do Governo Eletrônico do município de São Paulo. “Hoje os telecentros estão escorrendo por nossos dedos. Não há manutenção dos equipamentos e os conselhos gestores foram reduzidos a conselhos regionais, num total de nove. A estrutura comunitária que cuidava dos telecentros desapareceu. Em vez de assumir o plano de inclusão digital – o maior da América Latina – e transformar isso numa conquista da cidade, a nova gestão optou por criar consumidores e não cidadãos que cobram do poder público o que ele deve fazer para a melhoria da vida da população”, critica Beatriz. 

Para tentar reverter este processo e institucionalizar os conselhos gestores dos telecentros, diversas organizações que trabalham com inclusão digital elaboraram um projeto de lei de iniciativa popular que mantém os conselhos regionais e garante um conselho local para cada um dos telecentros. De acordo com o projeto, cada conselho local seria formado por seis representantes da comunidade, eleitos em assembléia, um representante dos profissionais do telecentro, um da sub-prefeitura e um indicado pela prefeitura do município. A este conselho caberia, por exemplo, acompanhar a implementação e participar da elaboração e do planejamento das atividades a serem desenvolvidas pelo telecentro, encaminhar propostas para o Conselho Gestor Regional dos Telecentros, propor ao poder público medidas que visem à organização e manutenção do telecentro, à melhoria do sistema de atendimento aos usuários e à consolidação do seu papel como centro gerador de inclusão digital e social, e articular a população para promover debates e novas propostas para capacitação e inclusão social. 

O projeto, que também prevê a criação de um Conselho Municipal de Inclusão Digital, será abraçado como uma das bandeiras da Frente Parlamentar em Defesa dos Telecentros e do Fórum Municipal em Defesa da Inclusão Digital e da Liberdade do Conhecimento, lançado nesta quinta-feira (31) por iniciativa dos mandatos dos vereadores Paulo Teixeira e Soninha Francine, ambos do PT. Entre os objetivos do Fórum estão a manutenção e ampliação do projeto de inclusão digital da Prefeitura de São Paulo e a luta para que a administração pública passe a trabalhar com o software aberto. Um pontapé para esta luta também foi dado nesta quinta, com o lançamento do projeto Gabinete Livre pelos mandatos dos deputados estaduais Simão Pedro e Mário Reali e dos vereadores Paulo Teixeira e Soninha. 

"96% dos softwares da administração pública do Estado de São Paulo são proprietários. É inadmissível num país como o nosso continuarmos a usar o software proprietário e a enviar royalties para o exterior. Somente em 2002, um bilhão de reais em licenças foi enviado. Estes recursos precisam ser investidos em pesquisas no Brasil", aponta Simão Pedro. "Da mesma forma, não podemos desenvolver políticas públicas de inclusão digital via software proprietário. O software livre é uma luta da esquerda, de quem quer implantar uma sociedade democrática, contra o aprisionamento da informação e do conhecimento", diz o deputado. 

Se depender do exemplo do governo federal, a sociedade de São Paulo deve comprar a briga por programas de inclusão digital focados na inclusão social e baseados no uso de software livre. Dois projetos que em breve serão implantados pelo governo Lula seguem justamente neste caminho. O primeiro deles, chamado de Casas Brasil, instalará nas capitais e maiores cidades do país centrais de inclusão digital com telecentros rodando softwares livres, salas de produção multimídia e laboratórios de popularização da ciência. O segundo, intitulado PC Conectado, que subsidiará o acesso aos computadores para a população de baixa renda, também trabalhará com softwares livres e sistema operacional GNU/Linux.

Fonte: Agência Carta Maior, Bia Barbosa , S. Paulo,  01/04/2005. 


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