"Ideologia emburrece"
A
filósofa diz que Lula age como um tirano, afirma que Alckmin "Não há nada mais flexível do que a espinha de um político brasileiro"
Veja – Apesar de todas as denúncias contra o seu governo, e com o PT caminhando para um encolhimento nas urnas, o presidente Lula continua com alta popularidade. Como explicar esse fenômeno? Maria Sylvia – Primeiro, isso se deu graças a uma política populista desenfreada e ao uso desmedido do dinheiro público e da estrutura governamental para propagandear essa política. Depois, ocorreu porque Lula é um sobrevivente, exatamente como na definição do escritor Elias Canetti (búlgaro, prêmio Nobel de Literatura em 1981 e autor do livro Massa e Poder). Para Canetti, os homens que têm uma posição carismática, e de poder, terminam por criar um vazio em torno de si. Exemplo disso é a capacidade que Lula tem de se livrar até dos auxiliares mais próximos, quando isso é necessário. Ele sabe que o perigo o cerca de todos os lados. Atento a isso, criou um deserto à sua volta. Tem mensalão, ministro que pede demissão, outro que é acusado de corrupção, um monte de gente do PT envolvida – mas, para cada um desses problemas, ele inventa uma desculpa. Ora diz que foi traído, ora que não sabia de nada. Ou, então, se livra sem pudores dos auxiliares mais próximos. Veja o (ex-ministro da Fazenda) Palocci. Lula o defendeu até o último minuto. Quando ficou claro que o ministro estava comprometido, ele simplesmente o tirou. O mesmo aconteceu com o José Dirceu. Esse é o destino do tirano: ele acaba se isolando porque, para conseguir chegar ao poder, elimina qualquer tipo de relação, seja ela política ou social, de amizade ou de confiança. Tudo isso em proveito de si próprio. Veja – Esse seria o traço mais forte da personalidade política do presidente? Maria Sylvia – Lula é um fenômeno que guarda peculiaridades. Sua característica mais evidente seria a esperteza. Ele tem um certo tipo de inteligência que pega o momento oportuno e segue nesse rumo. Hoje eu não tenho mais dúvida de que, mesmo no período em que era líder sindical, seu projeto era uma mudança de classe. A mudança dele – já que, pela natureza do capitalismo, é impossível a mudança estrutural de toda a classe operária. Ocorre que, quando indivíduos isolados transpõem essa barreira, perdem a determinação da classe da qual saíram e assumem a determinação de outra classe. Essa, aliás, é uma análise marxista. Diz-se que, desde o período sindical, Lula fazia alianças com a burguesia. Era agressivo no palanque e conciliador na mesa de negociação com os empresários. O marco disso é o momento em que ele conseguiu se eleger. Houve uma mudança até na sua aparência física. Hoje seria impossível distinguir Lula em uma reunião de empresários – a não ser pelo fato de que ele talvez estaria mais bem vestido. Aquele alfaiate dele é muito bom. Só não conseguiu mudar tudo, como se vê pelas gafes e pelos erros de português que comete. Veja – Mas os discursos o ajudam a tornar-se mais popular. Maria Sylvia – Não sei se o ajudam, mas o fato é que isso não deveria ocorrer. Lula teve trinta anos para se cultivar. Ou ele não fez isso porque é muito preguiçoso ou porque explora essa falta de cultura como mais uma faceta da sua atitude esperta diante do mundo. Ou é preguiça ou é canalhice. Na verdade, o bom português é o mínimo que se exige de um presidente da República. Não aceito o argumento de alguns lingüistas de que a língua falada é dinâmica. Existe uma gramática, com significados definidos. São estruturas que têm de ser respeitadas, senão a língua desaparece, vira um dialeto incompreensível. Veja – A história da democracia no Brasil tem episódios de avanços e retrocessos. Qual a explicação para o ressurgimento de um fenômeno populista como o lulismo neste momento? Maria Sylvia – O problema está na forma como o poder republicano se institucionalizou no Brasil. A lógica da Presidência é imperial, de concentração de poderes. Mas há também os defensores dos interesses regionais, que têm sua sede no Parlamento. A função deles é garantir uma parte dos recursos que são sugados para os cofres do governo federal. Nessa queda-de-braço, o presidente da República dificilmente contará com um bloco muito fiel entre os deputados e senadores. Em decorrência disso, passa a exercer pressão sobre o Congresso de duas maneiras: fazendo a interlocução direta com as massas, e virando o pai dos pobres, ou desviando dinheiro público para encher o bolso de parlamentares aliados e, assim, garantir apoio. É Bolsa Família e mensalão. Veja – Em que medida a tibieza da oposição ajudou o presidente Lula a passar ao largo das denúncias e dar continuidade a esse projeto? Maria Sylvia – A blindagem de Lula vem, em certa medida, dos interesses políticos envolvidos. Por que o PSDB se cala diante das denúncias? Arthur Virgílio (senador do PSDB do Amazonas), que vinha fazendo um grande ataque, no outro dia recua. A mesma coisa acontece com as CPIs. A CPI dos Correios criou várias oportunidades para que se pedisse o impeachment de Lula – por exemplo, quando foram descobertos pagamentos de campanhas eleitorais em contas no exterior. Isso não aconteceu porque os tucanos têm telhado de vidro – um pouco mais sólido, é verdade. Se nada de significativo apareceu contra os tucanos até agora, foi apenas porque eles têm mais experiência no poder, não são afoitos como esse pessoal do PT, que se juntou com criminosos ligados a esquemas de lixo e a bingos. Veja – Na sua opinião, quais as chances de o candidato tucano, Geraldo Alckmin, vencer a eleição? Maria Sylvia – Eu sempre imaginei que havia algo por trás dessa escolha de Alckmin. Por que a opção por uma pessoa tão inexpressiva – sem carisma, sem ligações importantes em lugar nenhum – para enfrentar um homem como Lula? Hoje está na cara. Alckmin foi escolhido para perder. Veja – Como assim? Maria Sylvia – Aécio (Neves, governador de Minas Gerais) e Tasso (Jereissati, presidente do PSDB) escolheram alguém para ser queimado. O projeto do PSDB é para 2010. As chances de Alckmin são muito pequenas porque, inclusive, o tucanato não vai se empenhar. Diz-se que Lula não tem herdeiros, daí o "Lulécio", o Lula com Aécio. Meu marido (o filósofo Roberto Romano) tem uma expressão muito adequada. Afirma que os tucanos são primos do PT e que, no futuro, vão se reunir em família e dividir o bolo. Acho que haverá um ajuntamento entre Lula e esses dirigentes mais novos, como Aécio. O único problema é o PMDB, um partido muito forte e oligárquico. O Brasil é assim: de um lado, a força do governo federal; de outro, o poder das oligarquias regionais. E quem congrega essas oligarquias é o PMDB. Veja – A senhora já disse que tanto Lula como Geraldo Alckmin têm traços autoritários. Quais os exemplos de autoritarismo dos dois candidatos? Maria Sylvia – Em Lula, há exemplos todo dia, como nessa frase de que é fácil governar para pobre. Porque, segundo ele, pobre não protesta – então, é fácil de dominar. Em Alckmin, o exemplo fundamental ainda é sua atitude na pré-candidatura. Ele disse: "Eu quero ser candidato, e é para já" – apesar de todas as indicações de que ele não ganharia a eleição. Veja – A senhora acredita que, em caso de vitória por larga margem de votos no primeiro turno, Lula se sentiria tentado a governar desprezando as instituições e dialogando diretamente com as massas, como sugeriu o ex-petista e também candidato a presidente, Cristovam Buarque? Maria Sylvia – Acho possível, mas não temos muito que fazer, só rezar. Essa reeleição do Lula é perigosa. Há um vazio político muito grande. Toda uma geração está deixando a vida política e não há uma nova para assumir esse posto. Entre os partidos, só vejo o PV, do Fernando Gabeira, e o PSOL. Veja – Mas o PSOL, além de uma visão de mundo ultrapassada, traz alguns vícios idênticos aos do PT. Maria Sylvia – Sei disso. Sei que há também demagogia e oportunismo, todos os males da política brasileira. Mas é preciso que um partido de oposição sobreviva. O PMDB não vai fazer oposição, é visceralmente conciliador. O PSDB está mostrando a cara: concilia também, e muito. O PFL é outro conciliador. Quando se trata de repartir o poder, eles estão todos juntos. Não há nada mais flexível do que a espinha de um político brasileiro. Veja – A senhora é conhecida por distribuir críticas a pensadores tanto do PT quanto do PSDB. Há alguma diferença entre um intelectual petista e um tucano? Maria Sylvia – No PT, há dois tipos de intelectual. O primeiro é correto, mas tem um fanatismo exacerbado. São pessoas que não tiram vantagem nenhuma de apoiar o PT, às vezes dão de si e do próprio bolso, sem receber nada em troca. Mas são capazes de cortar relações com você só porque você faz críticas ao PT. É um apego ideológico, e ideologia emburrece. O segundo tipo é o intelectual de um oportunismo atroz, como Marilena Chaui. Uma pessoa com a formação dela não pode dizer que, quando Lula abre a boca, o mundo se ilumina. É uma professora universitária que diz que o mundo é iluminado por alguém que faz a apologia da ignorância, que é capaz de dizer "minha mãe nasceu analfabeta". Alguns membros do PT fazem essa apologia. Veja – E o intelectual tucano? Maria Sylvia – É cultivado, até mais do que os do PT, mas tem uma certa desvinculação da estrutura partidária. Os tucanos são mais individualistas e têm uma capacidade maior de ajustamento às circunstâncias. Veja – Qual a origem desses dois grupos? Maria Sylvia – Os dois grupos são formados por intelectuais originados da ortodoxia marxista. Houve um bom período de domínio hegemônico dessa corrente na universidade. Os partidos comunistas mais ortodoxos sustentavam grupos universitários de poder, controlando cargos acadêmicos, formação de colegiados e até publicações. Nem precisava ser membro de algum desses partidos para ter essa sustentação, bastava ser uma linha auxiliar, um simpatizante. Essa instrumentalização hoje se mantém, ainda que com menor vigor. Esses monopólios são difíceis de ser quebrados. Veja – Para quem olha de fora, parece que a intelectualidade marxista continua bem forte nas universidades brasileiras. Maria Sylvia – Sim, mas o fato é que já foi bem mais dominante. Além da ortodoxia marxista, outra corrente acadêmica muito forte era aquela com raízes românticas, representada principalmente pelo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Raízes do Brasil, por exemplo, é um livro de fundamentos românticos. Veja – Quais as conseqüências da predominância dessas duas correntes na vida acadêmica? Maria Sylvia – Elas produziram grupos extremamente conservadores. Do romantismo você não pode esperar outra coisa. É uma posição pacificadora. Hoje em dia ninguém acredita no homem cordial do Sérgio Buarque, em uma sociedade harmoniosa, mas essa idéia persiste e passou pela antropologia americana, pela Igreja, pelas comunidades eclesiais de base, pelas organizações não governamentais e deu origem a um vocabulário próprio. Você, por exemplo, não pode mais falar "favela", tem de falar "comunidade". Veja – Seu livro Homens Livres na Ordem Escravocrata, lançado em 1969, hoje é um clássico. Mas levou dez anos para ser publicado. Qual a razão da demora? Maria Sylvia. – Ele foi resultado de uma tese de doutorado e, na ocasião, era contra todas as interpretações correntes no Brasil. Desagradava tanto aos ortodoxos marxistas quanto aos liberais. Essas dificuldades do período inicial da minha carreira persistiram até não faz muito tempo. Os estereótipos, as idéias feitas, principalmente quando são propostos por intelectuais de importância, têm uma força enorme. Veja – Por quê?
Maria Sylvia – Porque
são grupos de poder que se instalam e que têm uma circulação interna de
auto-sustentação muito grande. Em seus trabalhos de pesquisa, as pessoas se
citam reciprocamente, e abundantemente. Se você procurar a literatura
publicada imediatamente depois do meu livro, não encontrará nenhuma citação.
Isso só foi ocorrer anos depois. A censura ideológica neste país é muito
grande. Fonte: Rev. Veja, Marcelo Carneiro, ed. 1963, 5/7/2006. |