ENTREVISTA
Betania Libanio Dantas de Araújo nasceu no Rio de Janeiro, é filha de potiguares e mora há bastante tempo em São Paulo. Autodidata desde cedo, sua mãe conta que aprendeu a falar com um jumento que relinchava no bairro carioca onde morava. Então, antes de falar a língua dos humanos, falou a voz do jumento. Aprendeu a escrever com três anos de idade porque a mãe ia descansar e, ficando na sua solidão infantil, olhando o irmão estudar em voz alta para a escola, alfabetizou-se sozinha. Ao chegar em São Paulo, sofreu com o mal-humor da cidade e com as agressões que os professores aplicavam nos alunos. Cresceu numa escola estadual paulista onde era impossível fazer várias coisas, entre elas cantar, fazer teatro, desenhar, pintar, fazer redações e não faltavam comparações com as experiências de escola que tinha em sua terra natal. No catecismo era repreendida pela professora porque se perdia em meio aos vitrais da igreja e depois de responder que Jesus era o pai de Deus, seu fim foi certeiro, ainda que tenha conseguido formar-se no catecismo. Os conflitos de uma educação insignificante em São Paulo fizeram com que estudasse a Arte para pensar qual a escola que queria. Seria possível expressar-se simbolicamente em meio às expressões secas e truculentas da escola? Tornou-se professora de Arte na Prefeitura de São Paulo e professora universitária. Fez graduação em Artes Plásticas pela Belas Artes de São Paulo, mestrado em Artes Visuais pela UNESP e doutorado em Educação pela USP, em ambas as pesquisas estudou qual contribuição que a linguagem do humor no desenho traria para a escola. Acredita que a pesquisa só tem função se retornar à comunidade, é o que tem feito nesses anos, mas ainda não publicou as pesquisas que considera importantes para os professores, os arte-educadores e leitores em geral. Participa atualmente do Grupo Ler e Escrever em Arte pela PMSP. Carta Maior - Você acredita numa educação escolar mais leve, mais arejada, com mais humor? Como implantá-la se o humor é tão transgressivo e as respostas da pedagogia são tão confluentes ao pensamento único? Betania Libanio Dantas de Araújo - Eu acredito no humor instigado, pesquisado, elaborado, no humor como prática de liberdade. O humor à-toa, de puro deboche, da exclusão por preconceito, eu considero mal-humor e, lamentavelmente, é o que acontece na escola sob a sua autorização, veja só! O humor sem qualidade é bastante trabalhado na TV por programas como Zorra Total e outros encontrados aos montes. Piadas de preconceitos, ridicularização da mulher, deboche sobre o homossexual, O bom humor, ao contrário, é comprometido e só exerce a sua função se for transgressivo. O humor atua como pensamento divergente, mas é diferente do processo da criatividade. Na criatividade, o pensamento divergente atua na criação e a descoberta permanece. No humor, o pensamento divergente nega a todo momento a sua própria descoberta, ocorre a negação da negação. Um pensamento criado é sempre transgredido. O humor bem elaborado por professores e alunos transgride a escola. Sou otimista, acredito no movimento que cresce contrário ao pensamento único. Como professora falo seriamente, usando os contrários. Aos poucos, os alunos começam a prestar atenção na maneira controvertida de se falar. Algumas mães conversaram comigo e contam encontrar seus filhos preparando-se para a escola, pesquisando outras maneiras de falar, isso é muito bom. Aos poucos, essa outra percepção vai tomando conta das relações. E aí o professor deve estar atento aos alunos espirituosos e eles fazem muita diferença na sala-de-aula. Muitas vezes dizem uma verdade que a turma inteira queria dizer mas não tinha coragem, em outras vezes, fazem grandes conclusões (sacadas) sobre as pesquisas que fazemos, certo dia começam a puxar uma legião de imitadores mostrando que o trabalho deu certo. O bom humor deve estar comprometido em mudar o estado das coisas, portanto é mais sério do que imaginamos. Parte da impossibilidade do que desejamos para a realidade e fala pelos contrários. CM - Em que medida recursos como história em quadrinhos podem ser utilizados no processo educativo como elemento que lida com conteúdos e com as formas de expressão? Incorporar estes recursos ao cotidiano das escolas não lhes roubaria o caráter transgressivo, normatizando-os? BL - Trabalho com quadrinhos e o meu olhar é sobre os cartuns e as charges. Lá acontece uma condensação de idéias e a síntese é uma marca também do humor visual. Os quadrinhos de Quino são os quadrinhos que mais gosto. Toda Mafalda (na foto), tirinhas com textos escritos, reúne os quadrinhos da menina revolucionária Mafalda que é reforçada pelas ideologias tão distintas dos colegas, é graças a essas crianças que Mafalda surpreende. Mas Quino produz também os quadrinhos sem texto escrito e, neles, os alunos desenvolvem percepções detalhadas para compreendê-los. Olhando rapidamente é difícil entender, precisa detalhar o olhar para ver. Penso que se eu não levar Quino, Henfil, quadrinhos, cartuns e charges grande parte dos alunos não conhecerão. É papel da escola levar filmes, livros, imagens a que, talvez, só pouquíssimos alunos teriam acesso. A linguagem do humor gráfico contribui com o estudo das caricaturas, da síntese gráfica e visual. Imagine que um cartunista ou chargista dispõe de apenas um quadro para contar a história. Isso é síntese e, na síntese, exclui-se tudo o que é desnecessário e é isso que o estudante também precisa aprender. A institucionalização de qualquer prática é muito perigosa. Graças aos estudantes, a leitura de gibis permanece marginalizada, tudo o de que a escola não conseguiu se apoderar é muito bom que continue acontecendo à parte e que sobreviva mesmo nos tempos da TV, internet e qualquer mídia que venha a aparecer. CM - A teoria da “abordagem triangular”, proposta pela arte-educadora Ana Mae Barbosa, entende a necessidade da existência de educadores atualizados, artistas e acesso aos trabalhos contemporâneos para que os estudantes consigam atingir o máximo do desenvolvimento do conhecimento. Como isso se traduz no trabalho específico com quadrinhos? Os arte-educadores conhecem o universo temático e formal dos quadrinhos? Os artistas desta área costumam visitar escolas? Os alunos, principalemnte os da rede pública, têm acesso aos quadrinhos publicados? BL - Ana Mae Barbosa é uma referência em todo o Brasil. A sua proposta, a abordagem triangular, atua em todas as instâncias do conhecimento. É claro que alguns professores na História do Brasil já faziam isso no passado e foi necessário que Ana Mae pensasse o processo de conhecimento e nos explicasse sobre a abordagem triangular para nos dizer que, se atuamos apenas no fazer sem reflexão ou só na leitura alheia ao fazer, quebra-se aí o princípio da aprendizagem significativa. Esse é um problema em muitas escolas que ensinam quadrinhos apenas como repetição de uma técnica determinada impedindo os seus estudantes de criar os seus próprios personagens com traços próprios e perdem quando não lêem sobre a história em quadrinho, não debatem. Enfim, permanece muito do procedimento das primeiras escolas de Arte no Brasil. Os quadrinhos e toda a arte, todas as áreas do conhecimento só acontecem por esses três momentos da aprendizagem. Quer dizer que se uma garota produz quadrinhos com repertório (ou seja, se ela lê quadrinhos), com estudos dirigidos e livres, se repensa o que produziu, pesquisa, aprender a ver, debate, enfim, vai criar com mais propriedade. Certa vez, meu marido lecionava em uma escola particular e percebeu que os professores de arte pegaram todos os livros dos impressionistas deixados pela editora numa mesa (só as nossas escolas públicas é que não recebem essas visitas editoriais). Quando olhou na mesa só havia sobrado um livro sobre história em quadrinhos e me deu (aliás, as editoras teimam em republicar milhares de livros impressionistas, mas o desenho gráfico não é contemplado sendo o desenho mais visto por nossos alunos fora da escola). Quando li, apaixonei-me, meus alunos das oitavas séries fizeram seminários criativos sobre capítulos do livro: entrevistaram pessoas na rua e perguntaram sobre a leitura de gibis na infância. Um grupo trouxe um filme inspirado em quadrinhos e fez um paralelo entre cinema e história em quadrinhos , outro grupo dramatizou uma história em quadrinho lida, fantasiados a caráter, foram muitas propostas. É claro que isso não surge do nada, os professores vão explodindo milhares de idéias para que os alunos criem repertórios de escolha. Os arte-educadores não conhecem o universo dos quadrinhos (salvo um ou outro curioso) e a culpa não é deles, a culpa está na faculdade que não incorporou essa linguagem como disciplina permanecendo ou nos cânones ou na arte contemporânea. A culpa é editorial, há muita publicação de arte moderna, um pouco de arte clássica, um pouquinho de arte contemporânea e praticamente nada de quadrinhos. Parece-me que alguns quadrinistas, cartunistas e chargistas vão à escola, mas é raro. O arte-educador também não sabe como encontrá-los. Recentemente (2006) o grupo Caostidiano de Ferraz de Vasconcelos, que tem a participação do arte-educador Onézio Cruz, fez um maravilhoso trabalho com os alunos da escola em que trabalho, vindo gentilmente à nossa escola. Os cartunistas Bira e Baraldi deram uma palestra há alguns anos atrás bancando os seus próprios gastos, vindo de Campinas e Santo André. Os estudantes têm acesso a quadrinhos da indústria cultural e a nossa comunicação começa por esse viés, aprendendo com eles e depois os aproximando dos quadrinhos que não conhecem porque não estão nas bancas. Eu tenho o meu acervo próprio, toda escola municipal tem a Mafalda do Quino e a escola pode aumentar o acervo da sala de leitura com os pedidos do arte-educador. CM - Você conhece (e poderia citar) algumas iniciativas de trabalho educacional a partir das artes, se possível no campo das histórias em quadrinho, que aconteça fora da escola, em espaços alternativos, como oficinas, ateliês, centros culturais etc.? Estes trabalhos são norteados por diretrizes pedagógicas? BL - A Gibiteca Henfil (dentro do Centro Cultural Vergueiro), a gibiteca do Sesi (Av. Paulista 1313), Animanga, Comics, Devir Livraria, E-Comics, Revistaria Luca. Devir, no Cambuci.Comix, na Alameda Santos.Jeremias, o Bar, na Avanhandava. Tem livraria de quadrinhos na av. São João altura do Largo do Paissandu. Quanto as atividades o Grupo Caostidiano de Ferraz de Vasconcelos são amigos profissionais que atuam em diversas áreas das Artes Gráficas. Como atelier lembro: Universohq, fábrica de quadrinhos, hq em foco, Cosmo hq, as oficinas culturais do estado, Centro Cultural, as oficinas municipais de São Paulo, todas essas escolas e muito mais você pode pesquisar na internet. Em Campinas, há a escola Pandora. Se você acessar a internet com os termos desenhistas de quadrinhos, escola de quadrinhos vai encontrar muita coisa, inclusive a bibliografia e os espaços que tem material. Como a própria situação hierárquica em que a Arte se encontra na escola, os quadrinhos também sofrem e as gibitecas (lugar pra ler quadrinhos, biblioteca de quadrinhos) estão abandonadas pela cidade, além de serem pouquíssimas. CM - É papel do professor de arte fazer com que as relações entre a arte produzida em sociedade e os alunos não sejam relações ingênuas? Como instrumentalizar os alunos a chegarem a esta relação no plano da participação, criação e transformação dos conceitos pré-determinados pelo modelo educacional vigente? BL - Passar branquinho no balão dos quadrinhos e xerocar para que os alunos escrevam a fala ou pedir para que dividam a folha em quatro ou oito partes iguais e façam um desenho em seqüência é empobrecer os quadrinhos. É necessário ler quadrinhos em sala de aula. A partir do 5º ano, os mangas já são de maior interesse. A banca de bairro só vende quadrinho americano e japonês. Começar a olhar a tomada de cena (de onde o desenhista ou o personagem olha, é o seu campo de visão), observar o tempo em que a cena acontece (rápida, lenta), a distância ou aproximação, ficar só mostrando aos alunos que existe onomatopéia, balão não faz avançar. É necessário estudar os símbolos do desenho gráfico. É necessário matar a cobra e mostra o pau, indo diretamente nos quadrinhos conversando com a turma. A escola é muito boa em falar de coisas sem mostrá-las. Estudamos as palavras fora do seu contexto, conhecemos definições de figuras de linguagem, mas não a entendemos e não conseguimos fazer. O "leia em casa para a prova" deve acabar. A maioria dos alunos não lêem, é necessário ler juntos, ler quadrinhos, ler charges, ler cartuns. Eu não entendo de futebol apesar do meu pai ter sido técnico de times masculinos e do primeiro futebol feminino, então os meus alunos me ensinam a ler as charges de futebol. É necessário abertura para compreender que o aluno tem conhecimento a contribuir. Uma leitura coletiva é sempre gostosa, não invalida as leituras individuais que cada um deve fazer.
Fonte: Ag. Carta Maior, Eduardo Carvalho, 22/2/2007. |