A hora
da esbórnia Roberto Pompeu de Toledo
Da festiva
viagem para o enterro do papa à posse do filho de Severino No começo da viagem, reinou a circunspecção. Rezaram um pai-nosso e os líderes religiosos a bordo, católicos e de outras religiões, improvisaram um ato ecumênico. Mas não dá para ser sério o tempo todo, ainda mais numa reunião de gente que quase nunca se reúne, e por isso foi inevitável o clima festivo. Cantou-se Parabéns para Marisa Letícia, a primeira-dama, que fazia anos. Fernando Henrique Cardoso puxou o coro. O programador do cineminha de bordo também teve o seu papel para descontrair o ambiente. Foram exibidos Alguém Tem que Ceder e Pelé Eterno. Nada de Vida de Cristo ou de Os Dez Mandamentos. Rumavam para o funeral do papa ao embalo das divertidas peripécias de Jack Nicholson e de Diane Keaton, na comédia americana, e da bola que rola e da rede que estufa ao toque mágico do Rei do Futebol, na produção brasileira. Foi assim a viagem a Roma do presidente Lula e comitiva, que incluía ex-presidentes da República e atuais presidentes do Senado, Câmara e Supremo Tribunal Federal. Estava dada a partida para uma semana de farra, aqui, na África e, por que não?, em Roma. Afinal, "enterro de papa é uma festa", como disse o ex-padre e atual embaixador do Brasil em Cuba, Tilden Santiago, ao repórter Expedito Filho, de O Estado de S. Paulo. "Começa pelo luto, que é vermelho." Severino Cavalcanti, o grande Severino, célebre parceiro do cachaceiro de João Alfredo, provocou, como sempre, muitas risadas. Ainda no avião, quando o chamaram para o ato ecumênico, respondeu, meio dormindo, que não, obrigado, já tinha comido. Depois, já em Roma, comentou, orgulhoso, que havia sido chamado de "o tormento de Lula" pela "revista dos economistas de Londres". A revista é The Economist, que não tem nada a ver com economistas. Mas Severino iria brilhar de verdade já de volta ao Brasil, na memorável cerimônia em que seu filho José Maurício seria empossado no cargo de superintendente do Ministério da Agricultura em Pernambuco. "Essa história de nepotismo é para os fracassados que não souberam criar seus filhos", ensinou. Ele tanto soube criar que cria até hoje o rapagão José Maurício, moço diplomado - diplomado, sim, senhor! - que, aos 49 anos, se regala nos trampos cavados pelo pai. José Maurício agradeceu ao "querido pai" e prometeu "honrar os ensinamentos" recebidos dele. Sugestão de pauta aos repórteres: acompanhar como o chefão da Agricultura em Pernambuco, tendo assumido na explícita condição de protegido do pai, será visto pelos colegas, pelos subordinados, pelo homem que lhe serve o cafezinho. "Isso mostra que, no Brasil, estamos fazendo política de forma civilizada, madura", disse Lula em Roma. Ele se referia à ecumênica delegação, tanto sob o ponto de vista religioso como político, montada para o enterro do papa. A forma civilizada e madura de fazer política fazia-se presente na nomeação do garotão José Maurício. Mas também deu o ar da graça no Senado de Renan Calheiros, esse Renan que, eclipsado pelo queridinho Severino, não tem merecido o crédito a que faz jus, como um dos pilares da farra política que assola o país. Renan e seus companheiros no conglomerado de interesses particulares conhecido como PMDB derrotaram o indicado do governo à diretoria-geral da Agência Nacional do Petróleo. Não que ao indicado, o engenheiro José Fantine, faltassem qualificações para o cargo. Foi reprovado para aplicar uma lição na ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, acusada de não dar a atenção devida aos parlamentares. A "atenção aos parlamentares" é item que merece estudos aprofundados dos politicólogos. Como poucas vezes na história da República, é o eixo que tem movido ou emperrado a ação governamental. Quem tem preguiça para os estudos de ciência política que fique com a frase do senador conhecido como Mão Santa: "Começou o 'É dando que se recebe'". Estamos em tempos de explicitude, como mostra a defesa do nepotismo por Severino. Mão Santa também era explícito: ou a ministra dá os suculentos cargos nas empresas estatais sob sua guarda ou não recebe. Enquanto isso, na África... Lula, em giro por cinco países, num dia se metia no cerimonioso traje chamado "kenté" em Gana, no outro batucava em um instrumento musical típico na Guiné-Bissau. Estava no seu papel predileto, o de showman. "Na África só tem blablablá", irritou-se a certa altura o ministro Furlan. É um homem que só pensa em vendas. Já Lula contra-atacou os críticos de sua viagem ensinando que diplomacia é olho nos olhos. "Como diz o povo brasileiro", acrescentou, "é no tête-à-tête." Ainda bem que recorreu à linguagem típica dos brasileiros. O povo francês costuma dizer "cabeça a cabeça", o que é muito feio. "Não haverá farra do boi", dissera Lula, outro dia, garantindo que seu governo manterá o prumo. Haverá, sim. Ou melhor: está havendo, e é mais ainda do que farra. Vivemos a hora da esbórnia. O Cachaceiro de João Alfredo assumiu o controle. Fonte: Revista Veja, Edição nº 1901, 20/04/2005. |