Entrevista: Connie
Hedegaard
A guerreira do clima
A
difícil missão da ministra dinamarquesa é obter o consenso internacional em
torno
de um acordo para conter o aquecimento global
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"Não importa quem venha a ser o novo
presidente dos Estados Unidos, a repercussão
será positiva na luta contra o
aquecimento global"
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A
dinamarquesa Connie Hedegaard, de 48 anos, tem dois filhos e 1 712 amigos
listados em sua página no site de relacionamento Facebook. Ministra de Clima
e Energia de seu país, ela precisa fazer amigos e influenciar o máximo
possível de pessoas para levar adiante uma missão delicada e exaustiva: a de
convencer governos de todos os continentes, ricos e pobres, a chegar a um
compromisso para conter o aquecimento global. A ministra prepara o terreno
para a Conferência sobre Mudança Climática das Nações Unidas, que será
realizada na capital dinamarquesa em dezembro do próximo ano. Essa é a
data-limite para a assinatura de um tratado para substituir o Protocolo de
Kioto, que estipulou metas de redução dos gases do efeito estufa até 2012.
Em visita ao Brasil, onde se encontrou com representantes do governo e
visitou uma usina de etanol, Hedegaard concedeu a seguinte entrevista a
VEJA.
O mais conhecido
dos céticos, o dinamarquês Bjorn Lomborg, considera exagerada a preocupação
com o aquecimento global. Qual a posição do governo da Dinamarca?
Lomborg tem o direito de pensar o que quiser. Note que ele próprio admite
que está ocorrendo uma mudança climática, mas diz que deveríamos esperar uns
cinqüenta anos para começar a lidar com esse fenômeno. A posição da
Dinamarca é outra. Confiamos nas estimativas do Painel Intergovernamental
para Mudança Climática (IPCC), da ONU, segundo as quais em 2050 já será
tarde demais para fazer qualquer coisa. Temos de agir agora. Se não o
fizermos, o aquecimento global vai se acelerar de tal maneira que se tornará
muito caro revertê-lo. Caso isso ocorra, a humanidade não será capaz de
manter o padrão de vida atual. Precisamos tomar uma atitude com urgência.
"Temos de agir agora. Se deixarmos para o futuro, reverter os efeitos
do aquecimento global se tornará tão caro que a humanidade não
conseguirá manter o atual padrão de vida" |
Qual é o principal indício do aquecimento global?
Em 2004, quando fui nomeada ministra do Meio Ambiente, recebi a informação
de que em trinta anos o derretimento do gelo do Ártico iria permitir a
navegação entre o Mar do Norte e o Oceano Pacífico. Decorreram apenas quatro
anos e, no último mês, a passagem já ficou livre do gelo. Ou seja, a
abertura do caminho ocorreu muito antes do previsto. Esse é um claro exemplo
de que agir agora faz muita diferença. Os países desenvolvidos precisam
fazer o maior esforço para reduzir as emissões dos gases causadores do
aquecimento global. Mas as grandes economias emergentes, como a China, a
Índia e o Brasil, também têm de contribuir.
A senhora assumiu
no ano passado o Ministério de Clima e Energia. Qual a missão dessa pasta?
Vamos sediar em Copenhague, em dezembro de 2009, a Conferência sobre
Mudança Climática das Nações Unidas. No encontro de Bali, na Indonésia, no
ano passado, ficou decidido que será preciso chegar a um acordo na
conferência de Copenhague sobre o que virá depois do Protocolo de Kioto. Há
muito que fazer para que Copenhague tenha sucesso. Uma das funções do novo
ministério é conduzir uma espécie de diplomacia climática. Venho gastando
uma quantidade considerável de tempo em viagens ao redor do mundo tentando
juntar peças do quebra-cabeça necessário para que se chegue a um grande
acordo global no próximo ano. Eu não poderia ser apenas ministra de Clima
sem ser responsável também pela eficiência energética do meu país. Clima e
energia são hoje temas correlacionados.
Do que depende o
sucesso do encontro em Copenhague?
Depois do fracasso das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC),
o maior desafio das relações multilaterais passou a ser a concretização de
um acordo para combater o aquecimento global. Dois fatores são essenciais
para isso. Primeiro, os Estados Unidos precisam aumentar seu envolvimento
nessa causa. Creio que isso dependerá do que vai acontecer nas eleições
presidenciais americanas. Segundo, como a recessão internacional vai influir
no assunto. Nesse quesito, há dois caminhos possíveis. Os países podem
decidir que não é o momento certo de se comprometer com metas rigorosas e
custosas de redução da poluição. Ou podem fazer o raciocínio oposto: o preço
do petróleo está alto, e a solução é tornar-se mais eficiente e independente
do ponto de vista energético.
O Protocolo de
Kioto fracassou?
Criticar hoje o que foi feito anos atrás por outros governos seria muito
fácil. Naquele momento foi o melhor acordo possível. Claro que, já em 1997,
todos sabiam da deficiência decorrente do fato de os Estados Unidos não
terem assinado o acordo. Desde então, as emissões da União Européia
começaram a cair, enquanto a poluição americana continua subindo. Isso é uma
prova de que algo funcionou no Protocolo de Kioto.
O que a senhora diz
para convencer os políticos americanos a aderir aos esforços contra as
mudanças climáticas?
Estive, em um dos comitês do Senado americano, frente a frente com alguns
dos políticos mais contrários à luta contra o aquecimento global. Eu disse a
eles que, sendo uma política conservadora, sei que sempre podemos contar com
os Estados Unidos quando o mundo se defronta com um grande problema. Foi
assim nas duas guerras mundiais, na Guerra Fria e na luta contra o
terrorismo. Mas isso não ocorreu nos últimos oito anos quando o assunto foi
mudança climática. Para o bem dos interesses dos Estados Unidos, agora é o
momento de o país se engajar nessa agenda. É essencial que a nova geração de
europeus, latino-americanos e asiáticos veja os Estados Unidos abraçando uma
das maiores causas deste início de século.
Barack Obama e John
McCain demonstram maior preocupação ambiental em relação ao atual presidente
americano, George W. Bush. Com qual dos dois será mais fácil negociar?
Acredito que haverá avanços com qualquer um dos dois, apesar de eles quase
não falarem em mudança climática. Tanto Obama quanto McCain colocam, em seus
discursos, maior foco na independência energética. Nós devemos trabalhar em
cima disso. Se eles se engajarem em um acordo internacional para a redução
das emissões, pouco importa se o que os levou a isso foi a preocupação
econômica ou a ambiental. Dois anos atrás, McCain esteve comigo na
Groenlândia e tive a oportunidade de discutir com ele o tema da mudança
climática. Sei que McCain tem grande interesse pessoal pelo assunto. Eu
tenho falado também com os assessores de Obama. Não há dúvida de que, não
importa quem venha a ser o novo presidente dos Estados Unidos, ele fará algo
com repercussões positivas sobre o aquecimento global.
A senhora é a favor
de recompensar países como o Brasil ou a Indonésia pela redução do
desmatamento?
Esse é um ponto crucial. Se eu sou um fazendeiro brasileiro e tenho uma
propriedade na Amazônia, posso ganhar dinheiro plantando soja, mas não lucro
nada mantendo as árvores de pé. Preciso de um incentivo para fazer isso. Da
mesma forma, devemos criar, por meio de negociações internacionais,
mecanismos de compensação aos países que conseguirem proteger a floresta. O
substituto do Protocolo de Kioto deve conter algo assim para atrair a adesão
do Brasil, da Rússia, da Malásia e da Indonésia.
O combate ao
aquecimento global pode atrapalhar o desenvolvimento dos países pobres?
Quando falamos em reduzir o desmatamento e em outras medidas de combate
ao aquecimento global, não queremos de forma alguma prejudicar o direito ao
crescimento econômico dos países emergentes. Para sustentarmos um bom padrão
de vida para a população mundial de 9 bilhões de pessoas, como está previsto
para 2050, teremos de ser mais eficientes no uso dos recursos naturais e
investir em fontes renováveis de energia. Quinhentos milhões de pessoas
vivem sem luz elétrica na Índia. Claro que não podemos pedir ao governo
indiano que seu país pare de crescer economicamente. Precisamos descobrir
uma maneira de tornar esse crescimento sustentado, com um impacto menor
sobre o ambiente.
"Se o crescimento do número de carros no Brasil supera os benefícios
do combustível limpo, significa que o país tem alguns desafios a
resolver. O etanol é bom, mas é preciso fazer mais" |
Que papel o etanol de cana-de-açúcar pode ter na redução de emissões de
poluentes no mundo?
Ao tornar os biocombustíveis sustentáveis, o Brasil contribuiu com uma
tecnologia que pode ajudar bastante na redução da poluição. As emissões
brasileiras, no entanto, continuam subindo. Se o crescimento do número de
carros rodando nas estradas e ruas brasileiras supera os benefícios do
combustível limpo, significa que o país ainda tem alguns desafios a
resolver. O etanol é bom, mas é preciso fazer mais e investir em outras
fontes de energia. Na Dinamarca, temos um potencial eólico muito bem
aproveitado, mas também temos de fazer mais em termos de eficiência
energética.
O lobby contra o
aumento da adição de etanol à gasolina é bastante influente na União
Européia. Será em vão o esforço da diplomacia brasileira para transformar o
álcool combustível em uma commodity internacional?
Não. A meta da União Européia é que 10% da frota use fontes renováveis de
combustível já em 2020. Isso pode ser atingido com etanol, com eletricidade
ou com novas tecnologias. Nós queremos que todo o setor de transportes
reduza suas emissões. A discussão relacionando a alta no preço dos alimentos
com a produção de biocombustível serviu para esclarecer o assunto. Alguns
biocombustíveis são sustentáveis, outros não. Os critérios que vamos
estabelecer na União Européia não serão em prejuízo do etanol brasileiro,
porque este será capaz de atender às exigências. Coisa diferente ocorre na
Europa, onde há quem queira fazer etanol de vinho. Gasta-se sete vezes mais
combustível fóssil para transformar vinho em etanol, e isso, obviamente, é
uma loucura inadmissível. A eficiência do produto, as conseqüências para a
natureza, para a água, tudo isso tem de ser estudado. Na Dinamarca, estamos
investindo em biocombustíveis de segunda geração. Uma de nossas empresas
desenvolveu uma enzima capaz de transformar lixo em biocombustível, uma área
em que podemos estabelecer cooperação com o Brasil.
Qual o segredo para
a auto-suficiência energética da Dinamarca?
Nos anos 70, sofremos muito com as crises do petróleo. O uso de automóveis
chegou a ser proibido nos domingos. Nos últimos trinta anos, investimos
muito em nossas próprias fontes de energia, muitas delas renováveis. Hoje
somos 100% independentes em energia. Em Copenhague, todo o lixo doméstico é
incinerado e transformado em aquecimento central para 70 000 residências. O
vento responde por 28% de nossa eletricidade. Nossa tecnologia no setor
eólico evoluiu tanto que hoje um terço das turbinas de vento do mundo é
produzido na Dinamarca. Com tudo isso, nossa economia cresceu bastante, a
ponto de termos o pleno emprego no país, mas o consumo de energia permaneceu
estável.
Especula-se que o
derretimento da capa de gelo que cobre a Groenlândia pode levar a ilha a se
tornar independente da Dinamarca. Isso é possível?
Essa é uma grande pergunta. A posição oficial da Dinamarca é que a
Groenlândia pode ter tanta soberania quanto quiser. O Reino da Dinamarca
fará o que for melhor para a ilha. Há, de fato, a possibilidade de encontrar
minérios no solo da Groenlândia, conforme o gelo for derretendo. Quanto mais
a temperatura do globo aumenta, maior a chance de que se chegue a esses
recursos, hoje escondidos sob o gelo. Devido ao derretimento da cobertura
gelada, já se consegue até plantar batata na parte sul da Groenlândia. Mas
seria preciso plantar muita batata lá para compensar as inundações e a
destruição do sustento de milhões de pessoas na Ásia causadas pelo
derretimento do gelo. Também na Groenlândia há muita gente preocupada com a
velocidade das mudanças climáticas, que estão prejudicando a indústria
pesqueira local. Tudo é bastante imprevisível.
Fonte: Rev. Veja, Diogo Schelp, ed. 2081,
8/10/2008.
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