Uma guerra no fim da história
A
Geórgia invadiu a Ossétia, que pediu ajuda à Rússia, que invadiu a Geórgia.
É assim mesmo no Cáucaso, há eras.
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O
romancista americano William Faulkner escreveu que o passado nunca está
morto. De fato, nem sequer é passado. Ele se referia a outro lugar e outra
situação, mas a definição se aplica bem ao Cáucaso. Essa cadeia de montanhas
nos extremos de dois continentes, a Europa e a Ásia, é o lar de uma
variedade de povos que convivem aos trancos uns com os outros. Alguns de
seus pequenos estados estão entre os mais longevos. A Armênia foi o primeiro
país a adotar o cristianismo como religião oficial, em 314. A Geórgia, que
tinha sido súdita do Império Romano, atingiu seu esplendor entre os séculos
X e XIII. A profundidade das raízes nacionais pode ser aferida pela
exclusividade do idioma georgiano, que não pertence a nenhum dos grandes
troncos lingüísticos, como o indo-europeu, que inclui o português. O
isolamento pode ser exemplificado por uma excentricidade: enquanto na
maioria das línguas a palavra para mãe reflete o "mama" balbuciado pelo
bebê, em georgiano é o pai que atende por "mama". Mãe é "deda".
Os ossetas, que falam
uma língua aparentada ao persa e nunca formaram um reino poderoso,
acreditam-se descendentes diretos dos alanos. Em parceria com os vândalos,
esses nômades devastaram a Península Ibérica e o norte da África (daí o
adjetivo "vândalo"). Os alanos que permaneceram no Cáucaso se alistaram nas
hordas de Átila, o Huno. Em homenagem a tais ancestrais, a Ossétia do Norte
quer ser chamada de Alânia. Todas essas populações têm em comum a submissão
centenária a vizinhos grandalhões. Não é difícil entender por que esses
povos ciosos de sua identidade vivem em contínua ebulição nacionalista. A
região é um barril de pólvora. Desde o início dos anos 90, a Rússia luta
para submeter os chechenos, um povo muçulmano vizinho à Geórgia. Depois de
penar nas mãos de tártaros, persas e otomanos, a Geórgia foi incorporada ao
Império Russo no início do século XIX. A Ossétia do Sul foi riscada do mapa
como uma região autônoma em território georgiano por decisão de Josef
Stalin. Um túnel construído sob uma montanha é sua única conexão com a
Ossétia do Norte, na Rússia. São obscuras as razões do ditador para a
criação de duas entidades de um mesmo povo em países diferentes. Stalin era
georgiano, mas tinha bisavô osseta. O que não pegava bem, pois os russos
consideram os georgianos uns bandidos e os georgianos vêem os ossetas como
bárbaros semipagãos.
Essa perambulação
pela história tem por finalidade ajudar na compreensão dos
acontecimentos recentes: a invasão russa que esmagou o pequeno exército
da Geórgia. O estopim da crise foi o separatismo dos sul-ossetas, que a
Geórgia não aceita. Um cessar-fogo precário existe desde 1992. A
soldadesca russa também garante outro grotão separatista, a Abkházia, no
sul da Geórgia. O presidente Mikhail Saakashvili elegeu-se prometendo
restabelecer a soberania georgiana nessas regiões. Saakashvili, que
estudou e morou nos Estados Unidos, quer transformar o país num exemplo
de democracia e capitalismo moderno, numa região que nunca viu nada
parecido. Também quer entrar para a Otan, a aliança militar do Ocidente.
Na sexta-feira 8, ele perdeu a paciência e mandou seu minúsculo exército
atacar a capital da Ossétia do Sul. A reação russa foi brutal. A curta
guerra foi facilmente vencida pela Rússia, que ocupou várias cidades no
interior da Geórgia. A explicação do presidente russo, Dimitri Medvedev,
e do primeiro-ministro Vladimir Putin, que é quem realmente governa, é a
obrigação moral de ajudar um povo amigo ameaçado. Não é tão simples,
evidentemente.
Ao defender seus
clientes separatistas, a Rússia mandou basicamente três mensagens ao
mundo. A primeira é que o Kremlin, vitaminado pelo lucro da venda de gás
natural e de petróleo, tem músculos e não hesita em usá-los para
defender seus interesses estratégicos. A segunda é que a influência
americana e européia nas áreas vizinhas à Rússia é vista como ameaça e
pode levar à punição dos países que se aliarem ao Ocidente. A Ucrânia,
que também quer entrar para a Otan, que se cuide. A terceira mensagem é
que a Europa não vai |
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Dimitri Medvedev |
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Vladimir Putin |
se livrar com
facilidade da dependência energética em relação à Rússia. O único
oleoduto entre o Mar Cáspio e o Negro que não passa pela Rússia
atravessa a Geórgia. |
Que Putin preparou
o cenário da guerra e Saakashvili caiu na armadilha está fora de dúvida.
Nos últimos meses, a pretexto de manobras militares, a Rússia concentrou
tropas na Ossétia do Norte. Nas últimas semanas, as milícias ossetas
atacaram aldeias georgianas. Numa tentativa de contornar a crise,
Saakashvili telefonou para Putin para lembrá-lo de que o Ocidente
garantia a integridade territorial da Geórgia. Adepto da linguagem
direta, o russo disse ao georgiano onde deveria enfiar as garantias
ocidentais. No final, Saakashvili ficou mesmo sozinho. Quanto ao
presidente americano, George W. Bush, o máximo de auxílio que deu à
Geórgia, um de seus raros aliados na Guerra do Iraque, foi mandar alguns
aviões de ajuda humanitária.
A indiferença
russa em relação ao que pensa a comunidade internacional ficou evidente
nos dias que se seguiram ao cessar-fogo costurado pelo presidente
francês, Nicolas Sarkozy, na quarta-feira passada. No texto do acordo,
Moscou reconheceu a independência da Geórgia, mas não a unidade de seu
território. "Os georgianos podem esquecer quaisquer negociações sobre a
integridade territorial do país", avisou o chanceler russo, Sergei
Lavrov. É a primeira vez que a Rússia invade um estado soberano desde o
colapso da União Soviética. Apesar do que parece, não se trata de um
recomeço da Guerra Fria. O conflito entre as
duas |
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TERMINOU EM DESASTRE
O presidente georgiano Saakashvili: decisão imprudente e trágica
de atacar |
superpotências era
balizado por ideologias opostas. Isso não existe mais, ainda que a
nostalgia pelo império soviético domine os corredores do Kremlin. |
Como escreveu a
americana Samantha Power, historiadora cotada para ser secretária de Estado
caso Barack Obama vença as eleições, Tucídides (460 a.C.-404 a.C), o
cronista da Guerra do Peloponeso, disse que os povos vão à guerra por
"honra, temor e interesse". Putin parece ver o conflito no Cáucaso
principalmente como uma questão de honra. Ou, na opinião de Samantha, como
uma oportunidade para expurgar o sentimento de humilhação existente em
Moscou. Depois do colapso do império soviético, a Rússia viu-se forçada a
engolir o avanço da Otan em países da Europa Oriental que por décadas foram
seus satélites. A independência do Kosovo foi a última afronta ao orgulho
soviético. O fato de a Geórgia ser apoiada pelos Estados Unidos torna o
ataque uma espécie de revanche à atitude ocidental nos Bálcãs. A derradeira
mensagem parece ser "se vocês podem, eu também posso". É a lógica do
Cáucaso.
Fonte: Rev. Veja, Duda Teixeira, ed. 2074,
20/8/2008.
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