Geração MANGÁ

O fenômeno surgiu no Japão, mas já se espalhou pelo Ocidente. Obcecados por quadrinhos, desenhos animados e games, uma legião de adolescentes inventa um mundo de fantasias que, em alguns casos, pode se tornar patológico

 

Foto: Editora JBC/Divulgação

É como se de repente a vida real perdesse todos os seus atrativos: adolescentes passam meses sem sair do quarto, dedicando-se a personagens de histórias em quadrinhos ou desenhos animados e rejeitam qualquer relação com o mundo exterior. Há alguns anos a mídia ocidental fala de estranhos comportamentos cada vez mais difusos entre os jovens japoneses, freqüentemente apresentando-os como exemplos de desvios exóticos. Estudos recentes sugerem, porém, que esse fenômeno não é exclusividade dos orientais.  

Um desses exemplos extremos é Simon, 24 anos, que vive em Omã, país que faz fronteira com a Arábia Saudita. Há cinco anos ele não sai do quarto. A mãe deixa comida do lado de fora da porta, que está sempre trancada. Durante o dia Simon dorme e à noite assiste à TV ou joga videogame. Alguns psiquiatras diagnosticaram depressão e outros, esquizofrenia, mas o jovem não aceita os medicamentos que lhe foram prescritos. Não se considera doente – quer simplesmente ficar só. Desesperados, os pais buscaram até ajuda espiritual, sem sucesso. Segundo o psiquiatra Samir al-Adawi, da Universidade Sultan-Qaboos, em Maskat, trata-se da síndrome hikikomori, identificada originalmente no Japão. 

ISOLADOS DO MUNDO  

Em japonês hikikomori significa “isolar-se” e é um termo usado para indicar tanto o transtorno, quanto o sujeito. O Ministério da Saúde do Japão classifica como hikikomori um rapaz ou uma garota que não sai de casa – em momento algum - por pelo menos seis meses. O problema já ganhou proporções epidêmicas. Estima-se que cerca de 20% dos rapazes japoneses seja hikikomori, o que já preocupa as autoridades de saúde. Segundo o psicólogo Tamaki Saito, da Universidade de Tóquio, até 1,2 milhão de jovens vivem isolados em suas próprias casas – 25% deles há mais de cinco anos e 8% há mais de dez.  

Os hikikomori não costumam procurar ajuda. As famílias japonesas freqüentemente consideram a reclusão do filho uma vergonha e não falam sobre isso, na esperança de que o problema se resolva, de alguma maneira, por si só. O primeiro levantamento japonês sobre a síndrome, realizado em 2001, identificou mais de seis mil casos, sendo que 40% dos jovens afetados tinham entre 16 e 25 anos, e um quinto, entre 25 e 30 anos. O estilo de vida desses adolescentes eremitas é característico: a maior parte do tempo ficam reclusos, dormem de dia e passam a noite em frente ao computador ou à televisão, quase sempre são obcecados por videogames, por meio dos quais constróem uma realidade alternativa. Não cultivam relações sociais que não sejam mediadas pela internet. 

O caso de Simon foi descrito por al-Adawi com colaboração de alguns psicólogos japoneses num artigo publicado em 2005 na revista The International Journal of Psychiatry in Medicine, sendo o primeiro registro de hikikomori fora das fronteiras nipônicas. Segundo o psiquiatra Noriyuki Sakamoto, co-autor do estudo, o problema tende a se disseminar pelo mundo globalizado.  

Durante muito tempo a síndrome hikikomori foi considerada um fenômeno tipicamente japonês, favorecido pela estrutura social do país. Os motivos vão desde um ideal histórico de solidão até o sistema escolar repressivo, no qual a intimidação entre os estudantes é muito difundida e a competição feroz está presente desde a educação infantil. Além disso, a estreita relação com a mãe torna ainda mais difícil a conquista da independência, especialmente para os rapazes. 

Em 1996, o governo japonês tentou reduzir a pressão escolar: as aulas aos sábados foram abolidas e o programa de estudo foi modificado de modo a deixar mais espaço para a prática de atividades lúdicas e criativas. Com isso, houve um boom de escolas privadas mais “duras” e de escolas noturnas no estilo Kumon, método de aprendizagem baseado na repetição exaustiva. “As crianças japonesas crescem em uma sociedade obcecada pela formação”, ressalta o psicólogo Michael Manfé, professor da Universidade de Salisburg. Ele adverte, porém, que isso não justifica conclusões apressadas que limitam o problema à cultura japonesa.  

TRIBO A DISTÂNCIA 

Há quem considere os hikikomori representantes de uma variante extrema dos otakus, isto é, pessoas apaixonadas pelas histórias em quadrinho, japonesas, mais conhecidas como mangás, mostrando uma dedicação ao tema que muitas vezes beira o fanatismo. Os otaku já são cultura de massa. Estudo realizado em 2005 no Instituto de Pesquisa Nomura de Tóquio identificou pelo menos 1,7 milhão de otaku no Japão. Esse estilo de vida começou a se difundir pelo mundo na onda dos mangás e dos animês (os desenhos animados japoneses) no início dos anos 90, chegando à Europa e aos Estados Unidos, onde hoje contam com milhões de seguidores. 

Mas o que difere os otaku dos hikikomori? Qual é o limite entre a dedicação maníaca aos quadrinhos e a vida solitária fruto de uma escolha consciente? Embora o isolamento social seja um aspecto comum aos dois casos, os hikikomori protegem-se fisicamente dentro de seus quartos, enquanto os otakus isolam-se subjetivamente dentro de um universo midiático.  

O otaku significa literalmente “sua casa” ou “em casa”, mas acabou se transformando em uma espécie de pronome pessoal para ser usado em situações específicas. A língua japonesa oferece diversas modalidades de tratamento para nos dirigirmos aos outros e que são escolhidas segundo a posição social do interlocutor, exatamente como acontece quando usamos “você” ou “o senhor/a senhora”. Quando não há condições de avaliar com quem se está falando, os japoneses usam a palavra otaku, que é um modo de se dirigir a outra pessoa mantendo uma distância respeitosa. 

No início dos anos 80, os membros da comunidade mangá japonesa passaram a tratar uns aos outros como otaku. Eles começaram a se reunir nas convenções conhecidas como costplay (fusão das palavras costume e play, que significam fantasia e brincadeira, respectivamente) fantasiados como os personagens dos quadrinhos, mas sempre mantendo certo distanciamento uns dos outros.

 


Sucesso editorial: cresce o número de mangás traduzidos para o português.

Essa forma de cortesia expressava, no entanto, um sentimento vago. Em 1983 uma revista japonesa sobre a cultura mangá cunhou imagem do otaku-zoku (geração ou tribo otaku): o fã maníaco, que devora mangás e até escreve os seus, veste-se como seus personagens preferidos e encontra seus pares em eventos como o Comiket, o maior evento sobre histórias em quadrinhos do Japão, que acontece duas vezes por ano.

Com o tempo, porém, a palavra otaku deixou de indicar um interesse específico para designar também o modo como alguém se dedica a ele. Assim, o otaku ideal é um especialista no seu restrito campo de interesse: conhece tudo, tem tudo e ambiciona tornar-se o soberano dos otaku, isto é, um otaking. Manfé dedicou um livro a esse fenômeno, subdividindo-o em quatro categorias principais: o otaku de bonecos, que coleciona miniaturas de personagens e mantem com eles uma relação muito íntima; o otaku fotográfico, interessado em fotos de apelo erótico com pessoas reais em poses cotidianas; o otaku de celebridades, admirador maníaco de estrelas e modelos, geralmente adolescentes. E, por fim, o otaku dos mangás, apaixonado por esse tipo de quadrinhos, cujas vendas no Japão alcançam a marca de 2 bilhões de exemplares. 

Um dos gênero de mangá mais difundidos é justamente aquele em que as histórias são escritas e desenhadas pelos próprios otakus. A variedade dos temas é ampla, mas as preferidas são a adaptação e, às vezes, a paródia, de heróis de mangás das séries profissionais, cujo conteúdo erótico é freqüentemente muito explícito. Alguns autores de doujinshi - como o grupo Clamp, formado apenas por mulheres - tornaram-se famosos e hoje publicam profissionalmente.

 

 


Cosplayer brasileiro jovens vivem na pele as aventuras de seus personagens favoritos.

ESTIGMA DE VIOLÊNCIA

Segundo Manfé a diferença entre otaku e hikikomori é justamente a atitude do primeiro e a passividade do segundo. “O hikikomori afunda e, sem trabalho psicoterápico, o retorno à sociedade parece impensável. Já o otaku é ativo, criador.” O psiquiatra é contrário a uma interpretação psicológica do otakismo como fetichismo ou sinal de esquizofrenia. Não é possível, segundo ele, associar um fenômeno cultural a uma patologia apenas porque ele parece incompreensível ao observador não iniciado. Apesar disso, Manfé reconhece que um otaku pode evoluir para a condição de hikikomori. 

Em 1989, após uma série de brutais homicídios de garotas japonesas, os otaku foram alvo de uma onda de hostilidade porque o assassino, colecionador de mangás e animês pornográficos, foi rapidamente definido por jornalistas como otaku. Com isso os adeptos desse estilo de vida ficaram marcados pela suspeita de serem serial killers potenciais, conotação negativa que se mantém viva até hoje no Japão. 

Nesse meio tempo o movimento chegou à Europa e aos Estados Unidos. As vendas do mangá Dragon Ball, por exemplo, são comparáveis às de bestsellers como Harry Potter e às de quadrinhos de super-heróis consagrados, como Super-Homem e Homem-Aranha. Nos países ocidentais, entretanto, a palavra otaku não tem conotação negativa, sendo usada para definir e dar prestígio aos apaixonados por quadrinhos e desenhos animados japoneses. 

Não seria o otaku um hikikomori em estágio inicial? Não necessariamente, afirma Manfé. “O retiro do otaku não é uma fuga, é uma decisão consciente. Para eles a vida é um espaço utópico no qual experimentam a própria individualidade.” A versão ocidental do otakismo geralmente é mais branda que a original japonesa. Quando um jovem italiano ou alemão diz ser um otaku, quer reforçar o fato de pertencer a uma comunidade. De fato, o otaku pode parecer um ser solitário, mas nunca está sozinho nas suas paixões.

 


TEMPO DE TRAVESSIA

Não é de estranhar que sejam os adolescentes e jovens adultos os mais sujeitos a desenvolver identificação profunda com histórias em quadrinhos e desenhos animados a ponto de preferir a realidade virtual aos desafios concretos. Ao escolher seus personagens favoritos, em geral misteriosos e poderosos, o jovem recorre a uma espécie de identidade alternativa para evitar o contato com aspectos mais sensíveis e fragilizados da própria personalidade, diante dos quais teme desorganizar-se psiquicamente. Naturalmente, ao refugiar-se no mundo irreal, o adolescente não percebe sua atitude como uma busca por proteção ­ trata-se de um gesto inconsciente.

Pesquisas da psicóloga Beatriz Luna, diretora do Laboratório de Desenvolvimento Neurocognitivo da Universidade de Pittisburg, têm mostrado que, do ponto de vista neurológico, o adolescente é particularmente sujeito às influências do meio. Segundo a pesquisadora, imagens obtidas por meio de ressonância magnética funcional (fMRI)

 


Adolescentes andam fantasiadas pelas ruas de Tóquio.

revelam que o cérebro é um sistema bastante vulnerável às influências do meio. Para pais, educadores e profissionais da saúde surge uma questão: até que ponto o isolamento é aceitável? Para a psicanalista Leda Maria Zancanela, professora do curso de especialização em psicoterapia da adolescência do Instituto Sedes Sapientiae, um tanto de fantasia e solidão são próprios dessa fase e necessários para o amadurecimento. Mudanças bruscas de comportamento, diminuição de contatos sociais, falta às aulas e queda do rendimento escolar, porém, podem funcionar como sinais de alerta. E, nesses casos, buscar atendimento psicológico costuma ser a saída mais saudável.
 

 


A MECA DOS OTAKUA

O escritor americano William Gibson foi um dos primeiros ocidentais a retratar os otaku na literatura ocidental, descritos por ele como “tecnofetichistas patológicos com carências sociais; a encarnação do connoisseur da era da informática”. A estreita ligação entre otakus e altas tecnologias é muito visível naquela que é considerada sua “cidade”: Akihabara (foto), o bairro comercial de Tóquio onde se concentram as maiores lojas de artigos eletrônicos do mundo.  

Além de computadores e video­games, é possível encontrar nessa espécie de Meca high tech todos os acessórios a eles relacionados. Os otaku costumam passar dias inteiros nas ruas de Akihabara à procura da edição rara de um mangá, do boneco que falta em sua coleção ou do mais novo episódio de seu game favorito. Estima-se que eles alimentem um mercado que, somente no Japão, já supera 900 milhões de dólares.
 

 


MANIA DE COLECIONAR

Tanto os otaku quanto os hikikomori são fanáticos por coleções, já que é por meio delas que mergulham no mundo virtual de seus heróis. Muitos deles têm em casa centenas de bonecos, quase sempre de personagens de mangás, animês e games. Há quem não saia de cada sem um bonequinho; outros preferem os de tamanho natural, que tratam quase como se fossem pessoas. 

Outra obsessão dessa tribo são as fotos, seja de amigos, de partes do corpo, de suas coleções ou do próprio quarto, sem falar nas de conteúdo erótico - o que importa é que sejam muitas. É preciso também que sejam digitais, para que possam ser compartilhadas com os colegas na internet. Mas são os mangás a forma de expressão mais difundida na cultura otaku.
 

 

PARA CONHECER MAIS

Mangá - O poder dos quadrinhos japoneses. Sônia Bibe Luyten. Editora Hedra, 2000. 
Otaku – Os filhos do virtual. Étienne Barral. Editora Senac, 1999.
Adult Manga - Culture and power in contemporary Japanese society. Sharon Kinsella. University of Hawaii Press, 2000.

 

Fonte: Rev. Mente&Cérebro, Christoph Uhlhaas e Carola Bimbi, ed. 173, jun/2007.

 

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