Na fronteira com as Farc
Como
é a vida dos militares brasileiros no pedaço da Amazônia dominado pelos
O sol acaba de se pôr e, sobre as águas do Rio Uaupés, na fronteira do Brasil com a Colômbia, desponta uma embarcação. É um bongo, como os nativos chamam as canoas que servem de condução pelas águas da Amazônia. Bem em frente ao pelotão de fronteira do Exército brasileiro, em Querari, um soldado manda que o condutor se aproxime da margem. A bordo estão duas mulheres, três homens e uma criança. São colombianos e levam bolsas e sacos de náilon abarrotados, supostamente com roupas e alimentos. O soldado, fuzil a tiracolo, faz uma revista superficial. É o suficiente para irritar o passageiro mais velho, identificado como Victor Villegas, de 47 anos. Villegas fecha a cara, descontente com a ação militar. “Sou assistente de saúde do governo”, diz. O grupo está a caminho de Mitú, capital do Departamento de Vaupés, reduto das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc. Nenhuma sacola foi aberta. A vistoria feita pelo soldado brasileiro é encerrada, e os colombianos seguem viagem. A cena, corriqueira por ali, retrata a vulnerabilidade das fronteiras do Brasil na Região Norte. Mesmo nos lugares onde há postos de vigilância é fácil atravessar de um lado para outro. A ausência de controle rigoroso, somada às dificuldades que o isolamento impõe aos militares em serviço nos 28 regimentos espalhados pelos 11.000 quilômetros de linha fronteiriça do Brasil na Amazônia, abre espaço para a ilegalidade. Ao longo dessas fronteiras, vicejam o narcotráfico, o contrabando e o tráfico de armas. Até militares desafiam a lei. Alguns têm filhos com meninas índias, menores de idade. Agora há também os que investem numa atividade paralela que se transformou em negócio lucrativo: a compra do ouro explorado ilegalmente pelos garimpeiros.
Menos de três horas após a passagem quase incólume do bongo do colombiano Villegas, o comandante do pelotão brasileiro, tenente Adrien Costa Brelaz, chama para conversar dois de seus comandados mais experientes naquele pedaço de selva. A reunião, que antecede o jantar, é numa das casas de madeira do destacamento. Os cabos M. Rodrigues e Vásquez são índios da região. Um é da etnia tucano. O outro é cubeu. O tenente s é recém-chegado. Diante do repórter de ÉPOCA, ele pergunta aos dois cabos se é comum a passagem de guerrilheiros das Farc por aquele trecho do Rio Uaupés. A resposta é positiva. “Eles costumam passar com algum conhecido e dizem que são agentes de saúde do governo colombiano”, afirma Rodrigues. O jovem tenente, de 21 anos, parece assustado. A cena descrita é igual à que ele assistira no fim daquela tarde. Não que o bongo de Villegas estivesse necessariamente transportando alguma mercadoria suspeita. Por ali também passa gente comum que transita entre Brasil e Colômbia, principalmente para comprar mantimentos em São Gabriel da Cachoeira, a cidade mais bem estruturada da região, distante 500 quilômetros por via fluvial. Mas a coincidência entre a cena do fim da tarde e o relato dos cabos índios deixa o tenente intrigado. É só o começo. O pelotão de fronteira de Querari tem muitas outras debilidades. Na mesma tarde, para patrulhar o rio, foi preciso pedir gasolina aos índios da aldeia cubeu. O estoque de combustível do pelotão havia acabado na véspera. “Estamos esperando chegar mais combustível”, dizia o tenente. Como a unidade está num lugar isolado, é preciso esperar que a Aeronáutica traga os suprimentos em aviões que costumam demorar dois meses para tocar na pista de pouso entre o pelotão e a aldeia de Querari. A água que se bebe é da chuva, temperada suavemente com o gosto alcalino do zinco, dos telhados das casas. A energia elétrica, compartilhada com os índios, vem de uma microusina movida pela queda-d’água de uma barragem. Há também um gerador, mas falta óleo para fazê-lo funcionar. Resultado: a energia é racionada. Das 22 horas até o amanhecer, o pelotão e a aldeia ficam no escuro. Sem energia, o único aparelho de radiocomunicação do destacamento não funciona – um problema que amplia ainda mais o isolamento. O aparelho passa boa parte do tempo sem emitir nem receber sinal. Quando o pelotão está sob tempestade, situação comum na Amazônia, ele é desligado para não correr o risco de ser danificado por um raio. Se houver necessidade, pedir reforço ao batalhão de São Gabriel pode ser algo impossível.
Tristes memórias não faltam para ilustrar o temor de um enfrentamento. Em 1991, três sentinelas do Exército morreram e outras nove ficaram feridas num ataque da guerrilha ao destacamento de Vila Esperança, às margens do Rio Traíra, na mesma região da Amazônia. Depois disso, já houve outros incidentes. No mais recente, no ano passado, militares brasileiros trocaram tiros com quatro supostos guerrilheiros no pelotão de Cucuí. Do lado de lá, falar da guerrilha é pedir para encerrar a conversa. “Não tem Farc por aqui”, diz Rafael Gómez, índio guanano da comunidade de Montenegro, na margem oposta do Rio Uaupés, em território colombiano. Em plena tarde, a aldeia mais parece uma vila fantasma. Seu Rafael e outros dois índios são as únicas almas vivas ali naquele momento. Tentam montar uma garrucha velha, enquanto o restante da tribo trabalha nas roças de abacaxi.
Já não há dúvidas, nem mesmo entre os comandantes militares, de que as Farc agem também do lado de cá da fronteira. Em volta de São Gabriel da Cachoeira, na região conhecida como Cabeça do Cachorro pela silhueta no mapa, atuam duas frentes da guerrilha: a Frente 1 e a Frente 16. A primeira é a mais próxima de Querari. Reúne 300 guerrilheiros. Os primeiros acampamentos estão a menos de 30 quilômetros do pelotão. Mitú, distante apenas 50 quilômetros do destacamento brasileiro, já chegou a ser completamente dominada pela guerrilha. Do outro lado da Cabeça do Cachorro, mais perto do pelotão de Cucuí, a área é da Frente 16, uma das mais fortes de toda a estrutura das Farc. Ela é responsável pelos negócios da guerrilha: da gestão da pasta de coca produzida em seu “território” à movimentação do dinheiro obtido com a negociação da droga, passando pela aquisição de armas.
O fluxo é sempre o mesmo: coca para cá e para lá, comida, dinheiro, produtos químicos usados no refino da droga e, não raro, armas do mercado negro. O Exército hesita em agir por avaliar que não tem as condições necessárias para isso. A Polícia Federal, que mantém um pequeno efetivo na região, pouco pode fazer. No posto de São Gabriel, na semana passada, havia apenas dois policiais federais em serviço. A maioria dos militares dos pelotões de fronteira é formada por índios de diferentes etnias, que vêem na farda uma forma de ganhar algum dinheiro. A não ser pela cor da pele, os olhos puxados e os cabelos pontudos, pouco guardam da cultura indígena. Mal se lembram de seus nomes originais. Josuel dos Santos Mesquita tem 22 anos. Exímio mateiro, 1,55 metro de altura, é da etnia barasana. Entrou para o Exército como recruta. Hoje é o Cabo Mesquita. “Eu tinha um nome indígena, mas já esqueci”, diz. “É coisa dos missionários, que batizaram a gente com os sobrenomes deles.” O soldo do cabo é de R$ 1.300, depositado mensalmente pelo Exército. Quem movimenta a conta bancária, num vilarejo distante dali, é uma irmã de Mesquita. No meio da selva, o cabo nem vê o dinheiro. “Ela está juntando para mim”, afirma.
O isolamento que torna difícil a vida nos pelotões de fronteira constrói um ambiente que se rege por normas próprias. O efetivo militar e as comunidades indígenas ao redor se tornam uma coisa só. E nem sempre a convivência é harmoniosa. Só em Querari, três índias da tribo cubeu, situada ao lado do pelotão, tiveram filhos com militares. Duas delas têm menos de 18 anos. Caso de Janete Edilene Rodrigues, de 17. Mãe solteira, ela carrega no colo o pequeno João Marcos, de 10 meses. O pai dele, o soldado Hélder Sarmento Ribeiro, de 26, é branco e serve no pelotão como sentinela. Os pais de Janete não gostaram de saber da gravidez da filha. “Eles mandaram casar, mas não tenho condições”, diz o soldado. De vez em quando, ele leva comida para o filho na aldeia. Janete afirma que os soldados procuram as meninas da comunidade e vice-versa. “Às vezes são eles que procuram, às vezes são as meninas daqui que vão atrás”, diz. Dos militares com filhos na aldeia, Hélder é o único que ainda está ali. “Os outros dois já foram embora daqui e deixaram os filhos para trás”, diz Eduardo Martinho Gonçalves, de 45 anos, agente sanitário e uma espécie de conselheiro da comunidade. “As meninas estão aprendendo essas coisas com as novelas.” E aponta para as antenas parabólicas entre as malocas.
A vida na selva já tem muito dos costumes dos brancos. Bem no meio da aldeia, a cena de crianças índias botando formigas cabeçudas para brigar em cima de um velho tonel emborcado contrasta com o volume da música sertaneja que sai de dentro de uma das malocas. “É Bruno e Marrone”, afirma Luís Gilberto Gomes, cubeu de 25 anos que ainda tem esperança de ser chamado para servir no pelotão. Ao mesmo tempo que impõe sacrifícios, o isolamento oferece oportunidades – nem sempre limpas – de enriquecimento. No pelotão de fronteira de Maturacá, no sopé do Pico da Neblina, já na fronteira com a Venezuela, militares estão ganhando dinheiro no mercado negro do ouro. Compram o metal precioso de garimpeiros, que atuam ilegalmente nas dezenas de garimpos em volta do pico, e revendem no comércio de São Gabriel ou mesmo em Manaus. Eles ignoram uma norma do Exército que proíbe o envolvimento de militares com o comércio de ouro. Na mão dos garimpeiros, os militares conseguem comprar o grama do metal a R$ 28. Em São Gabriel, vendem a R$ 38. “Se souber fazer direito, dá para ganhar um bom dinheiro com isso”, disse um militar a ÉPOCA, sob a condição do anonimato. Na Bolsa de Mercadorias & Futuros, de São Paulo, o grama do ouro tem sido negociado a R$ 48. A corrida pelo ouro tem gerado desavenças entre os próprios militares. Os oficiais e suboficiais com soldos mais altos podem oferecer mais aos garimpeiros. Os soldados ficam prejudicados na concorrência. Em São Gabriel, não faltam interessados em recomprar o ouro que os militares adquirem nos garimpos. São cinco as joalherias que funcionam na cidade. Apesar de o mercado ser concorrido, alguns militares estão conseguindo mudar de vida graças ao ouro. Dentro do quartel, é comum ouvir casos de praças que montaram negócios na cidade. Alguns já planejam até largar a farda.
Na quinta-feira 6, os soldados saíram para laçar Bandido, um boi criado na área do pelotão. O animal viraria churrasco no dia seguinte, numa festa para encerrar uma semana de competições esportivas no destacamento. Antes, porém, Bandido deu um drible na tropa por cinco horas até ser morto a machadadas. Sem conseguir dominar o animal, os soldados pediram autorização ao comandante para usar um fuzil. A resposta foi não. Errar os tiros contra os cachorros abalou a confiança do comandante na precisão dos subordinados. “Se eu deixar, vocês vão acabar acertando alguém por aí. É melhor não”, disse o tenente Adrien. A culpa pela má pontaria talvez não seja só dos soldados. Treinamento de tiro ali só acontece de dois em dois meses. Sorte dos cachorros.
Qual é a principal
ameaça na fronteira amazônica?
Fonte: Rev. Época, Rodrigo Rangel, de Querari
(AM) e Ontenegro (Colômbia),
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