Frágil como papel
A
Justiça brasileira é incapaz de manter presos assassinos confessos e
corruptos pegos
em flagrante. Na origem da impunidade está a própria lei
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O
episódio do mensalão não foi apenas o mais grave escândalo ocorrido no
governo Lula – foi também o mais impudente. A título de lembrança,
apenas algumas das cenas de corrupção explícita que ele revelou:
empresário carequinha que com uma mão recebia rios de dinheiro do
governo e com a outra distribuía bolos de notas a aliados desse mesmo
governo; deputados saindo de bancos com malas recheadas de reais ou
entrando furtivamente em quartos de hotel para repartir o butim;
marqueteiro confessando em rede nacional que recebeu pagamento do PT
proveniente de caixa dois e o depositou em conta no exterior... Pois
bem: esse escândalo – definido pelo procurador-geral da República,
Antonio Fernando Souza, como resultado da
ação de uma
"organização criminosa" |
chefiada pelo
ex-ministro José Dirceu – acaba de completar seu segundo aniversário sem
que haja um único punido. |
Do ponto de vista
legal, seus quarenta implicados quase não foram incomodados: a denúncia
apresentada contra eles pelo Ministério Público ao Supremo Tribunal Federal
não foi sequer apreciada. Do ponto de vista prático, a vida dos mensaleiros
também pouco mudou. Quer dizer, em alguns casos mudou, sim – mas para
melhor. Marcos Valério, por exemplo, o lobista carequinha, ganhou cabelos, e
seus tentáculos agora estão no campo. Hoje, vende gado à Europa, arrenda uma
fazenda que abriga seus cavalos de raça e continua morando na casa que ocupa
meio quarteirão em Belo Horizonte e foi reformada no capricho. José Dirceu,
o "chefe do organograma delituoso", na definição do procurador Antonio
Fernando, virou "consultor de empresas" e chega a embolsar 150.000 reais por
mês com as "consultas" que dá. Perdeu o cargo, mas não os hábitos do poder:
só circula em carro com motorista e freqüenta restaurantes caros, onde é
visto sempre com um charuto cubano na mão. Para completar, acha que pode dar
lição de moral. Outros, como o deputado federal José Janene – ex-líder do PP
e sacador de 4,1 milhões de reais das contas de Marcos Valério –, não
perderam nem mesmo as funções nas quais foram flagrados com a mão na botija
do valerioduto. Aposentado pela Câmara com um salário integral de 12.800
reais, Janene foi reeleito em abril primeiro-tesoureiro do PP. Isso mesmo. O
homem que, em nome de seu partido, recebeu milhões de reais não declarados à
Justiça Eleitoral continua dirigindo a legenda – e no cargo de gestor de
finanças.
Os mensaleiros – que a
ex-deputada Angela Guadagnin "homenageou" com sua tristemente famosa dança
da pizza – são apenas a face mais gritante de um mal que, no Brasil, já se
tornou endêmico: a impunidade – produto resultante da soma de um trabalho
policial precário com um código processual anacrônico e um sistema
judiciário labiríntico. Para ilustrar o fenômeno, VEJA investigou o desfecho
de dez operações deflagradas pela Polícia Federal entre outubro de 2003 e
dezembro de 2004. Além do fato de terem ocorrido há um mínimo de dois anos e
meio, todas as ações selecionadas envolveram a prisão de políticos,
empresários ou funcionários públicos por acusação de corrupção ou desvio de
dinheiro. Juntas, elas produziram 245 prisões. Decorridos três anos, em
média, o que a reportagem apurou sobre o resultado dessas operações é
desalentador. Em apenas três delas o inquérito resultou em julgamento, mesmo
assim só em primeira instância. Nos julgamentos, 64 pessoas foram
condenadas, mas apenas duas permanecem hoje na cadeia: o juiz João Carlos da
Rocha Mattos e sua ex-mulher, Norma Regina Cunha, ambos pegos na Operação
Anaconda.
Ressalte-se que,
embora a PF tenha cometido diversas falhas em inquéritos (o que, algumas
vezes, comprometeu seriamente o andamento do processo, como o que teve
origem na Operação Vampiro), no que se refere às dez operações
analisadas por VEJA, ela é a que menos culpa tem pela situação. O fato
de parte dos detidos ter sido liberada logo em seguida à prisão não
significa necessariamente ineficiência policial. Muitas dessas prisões
são temporárias – duram apenas cinco dias, prorrogáveis por mais cinco –
e têm por finalidade ajudar a investigação, evitando que o suspeito
prejudique a coleta de provas ou intimide testemunhas, por exemplo. O
pífio resultado das operações da Polícia Federal está diretamente ligado
a outro problema, este da esfera judicial.
Como grande parte
das ações da PF produz indiciados com direito a foro privilegiado – caso
de políticos e altos servidores públicos –, os processos em que eles
estão envolvidos seguem diretamente para os tribunais superiores, como o
Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal. Ocorre que
os ministros desses tribunais só costumam julgar recursos – não estão
habituados a comandar a instrução do processo, que inclui a audiência de
testemunhas e a produção de provas. |
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Pimenta Neves: assassino confesso da
ex-namorada, mesmo tendo fugido e sido condenado, ele conseguiu habeas
corpus que lhe garante a liberdade até o julgamento definitivo. |
A necessidade de
fazê-lo, somada à quantidade extraordinária de trabalho que se acumula
nas mesas dos ministros, faz com que toda ação que chega a esses
tribunais acabe mofando por anos nas gavetas. Isso explica por que,
passados dezessete meses, a denúncia do mensalão não foi nem sequer
apreciada. Na semana passada, o STF anunciou que isso finalmente deve
ocorrer no próximo dia 22. |
Em relação ao
trabalho da polícia, é sobretudo nos crimes violentos que ela mostra seu
mais alto grau de ineficiência. Em capitais como Rio de Janeiro e São
Paulo, menos de 2% dos casos de homicídio apurados resultam na
condenação do assassino. Em países como Japão e Inglaterra, esse índice
chega a 90%. Uma pesquisa ainda inédita, realizada pelo Núcleo de
Estudos da Violência, ligado à Universidade de São Paulo, examinou
345.000 boletins de ocorrência registrados em delegacias paulistas. De
acordo com os resultados, apenas 22 000 desses boletins (6%) viraram
inquérito. Ou seja, resultaram em algum trabalho de investigação por
parte da polícia. O restante, presume-se, teve como destino o arquivo
morto das delegacias. "Isso mostra que boa parte da impunidade se produz
a partir do trabalho da própria polícia", diz o sociólogo Sérgio Adorno,
coordenador da pesquisa.
A lógica da
impunidade, no Brasil, independe da natureza do crime em questão. Tanto
nos delitos de corrupção quanto nos chamados crimes do colarinho-branco
e ainda nos que implicam violência contra a pessoa, como o homicídio,
ela segue o mesmo roteiro: começa com a precariedade da investigação
policial e continua na fase processual – quando entram em
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Edemar Cid Ferreira: por meio de um
batalhão de advogados, o ex-banqueiro abarrota a Justiça de
requerimentos inúteis com o objetivo de retardar seu julgamento. |
cena advogados
contratados a peso de ouro não para atestar a inocência dos clientes,
mas para protelar a todo custo seu julgamento (veja
quadro). |
É o que ocorre com a
ação envolvendo Edemar Cid Ferreira, o dono do Banco Santos, que teve a
falência decretada em 2005. Denunciado por lavagem de dinheiro, desvio de
recursos e evasão de divisas, Edemar – ou melhor, seu batalhão de advogados
– fez de tudo para tumultuar o processo. E conseguiu. Numa ação em que ele e
seu filho são réus, por exemplo, a defesa chegou a enviar pelo menos 32
requerimentos à Justiça, a maioria sem a menor relevância para o processo.
Como o juiz deve dar um parecer sobre cada um dos pedidos, que incluem
oitiva de testemunhas e novas perícias, o vai-e-vem burocrático dessas
intervenções é altamente eficiente para atrasar o julgamento da ação.
Em dezembro do ano passado, Edemar foi condenado em primeira instância, mas
seus defensores conseguiram um habeas corpus junto ao STF. Esse costuma ser
o grand finale da impunidade: mesmo condenados, os criminosos continuam
soltos, graças à infinidade de recursos a que têm direito. No Brasil, até
assassinos confessos podem recorrer de uma sentença em liberdade. O caso
mais conhecido é o do jornalista Antonio Pimenta Neves, que, em agosto de
2000, matou a tiros sua ex-namorada Sandra Gomide. Mesmo depois de ser
condenado e fugir, obteve um habeas corpus que lhe permite ficar em
liberdade até o seu julgamento no STF. Pimenta Neves levou seis anos para
ser julgado em primeira instância e não deve receber uma sentença definitiva
antes de 2011. Enquanto isso, o assassino confesso e condenado continuará
livre. E o Brasil seguirá sendo o país da impunidade.
A deputada não reeleita Angela
Guadagnin e sua coreografia no plenário da Câmara, tristemente
conhecida como a "dança da pizza": celebração da impunidade. |
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ELES NÃO
SAEM DE CENA
Não adianta denunciar, processar e condenar. Os políticos
brasileiros sempre dão um jeito de voltar ao poder
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ORESTES QUÉRCIA
Responde pelo desvio de 2,8 bilhões de dólares do Banespa e pela
contratação de funcionários-fantasma. Em 2000, foi condenado, em
segunda instância, a devolver 140 000 reais, por desvio de verba
pública. Em 2006, foi reeleito presidente do PMDB paulista.
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FERNANDO COLLOR
Acusado de se beneficiar do esquema de corrupção montado pelo
empresário PC Farias, renunciou ao mandato de presidente da
República e teve os direitos políticos cassados por oito anos.
Em 2006, elegeu-se senador por Alagoas.
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PAULO MALUF
Responde a processos na Justiça por envio ilegal de dinheiro ao
exterior, formação de quadrilha e desvio de recursos de obras
públicas durante sua gestão como prefeito de São Paulo
(1993-1996). No ano passado, foi eleito como o deputado federal
mais votado de São Paulo.
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JADER BARBALHO
Está sendo processado por lavagem de dinheiro, evasão de
divisas, crime contra a administração pública e desvio de
recursos da Sudam e do Banco do Estado do Pará. Foi campeão de
votos no Pará nas eleições para deputado federal em 2006.
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Fonte: Rev. Veja, Marcelo Carneiro, ed. 2021,
15/8/2007.
Com reportagem de José Edward, de Belo Horizonte, Juliana Linhares,
Camila Pereira, Wanderley Preite Sobrinho e Guilherme Fogaça
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