As fontes e as formas da corrupção

 

O senador Pedro Simon defendeu, certa vez, uma CPI dos Corruptores.
Obteve silêncio como resposta. Por que é mesmo que a mídia e os
partidos não tratam seriamente das fontes privadas
da corrupção  e de seus efeitos sobre a vida política do país?

 

O episódio da CPI dos Correios é extremamente ilustrativo sobre vários temas que estruturam o atual momento da vida política brasileira. Um deles é o modo rasteiro, pragmático e instrumental como o tema da moralidade pública freqüenta o debate político. Outro diz respeito a certas opções feitas pelo PT para construir condições de governabilidade. E um terceiro lança luz sobre o comportamento de alguns parlamentares petistas, do ponto de vista dos objetivos históricos estratégicos da esquerda brasileira. Vamos por partes.

Em primeiro lugar, o tema da moralidade pública. Nas últimas semanas, a população brasileira foi brindada com uma nova safra de denúncias envolvendo políticos, em vários pontos do país. O tema da corrupção, do fisiologismo e da transformação da política em balcão de negócios não é novo na história brasileira, aliás, na história mundial. Uma regra geral acompanha esse debate: normalmente, em anos pré-eleitorais, ele adquire maior força junto à opinião pública. As expressões “crise moral”, “mar de lama” e “crise de governabilidade” passam a freqüentar, com uma assiduidade vitaminada, as manchetes dos meios de comunicação. Agora, PSDB e PFL assumiram as vestes de paladinos da moralidade pública. Quando estavam no poder, com o governo Fernando Henrique Cardoso, trabalhavam arduamente para engavetar as tentativas da oposição de instalar CPIs no Congresso para investigar inúmeras denúncias de corrupção. Por outro lado, o PT e outros partidos que estavam na oposição naquele período, fazem o caminho contrário.

Que conclusões podem ser retiradas desse movimento? A primeira – e talvez a mais óbvia delas – é que o que está em jogo não é a defesa da moralidade pública, mas sim projetos de poder. O fato de ser óbvia não a torna menos importante, muito pelo contrário. Um dos traços marcantes da nossa sociedade é esconder o óbvio sob cortinas de fumaça. Então, procurar identificar o óbvio pode ser um bom começo para qualquer tentativa séria de reflexão sobre esses temas. Em resumo: PSDB e PFL não estão interessados na defesa da moralidade pública, mas sim em provocar o maior sangramento possível junto às bases do governo Lula. Isso exime o PT e o governo de responsabilidade com a chamada “coisa pública”? Obviamente que não. O grande desafio, para quem quiser levar esse assunto a sério, é identificar onde está exatamente o nó do problema.

Há um fato que é normalmente esquecido na cobertura da mídia sobre o envolvimento de agentes públicos em casos de corrupção. Praticamente toda a luz é lançada sobre a esfera pública – como se ela fosse incorrigivelmente corrupta – e o envolvimento do setor privado permanece descansando à sombra. Ora, só há corruptos se houver corruptores. O senador Pedro Simon (PMDB-RS) propôs, certa vez, a instalação de uma CPI dos corruptores. Entre risos abafados e sussurros irônicos no plenário do Senado, sua proposta caiu no esquecimento. Não dói perguntar: por que é mesmo que uma proposta como essa não tem espaço no debate político? Todos estão carecas de saber que, na imensa maioria dos casos, os corruptores de agentes públicos não são pequenos ou médios empresários. Pelo que vemos nos casos mais espetaculares de corrupção, divulgados pela mídia, há sempre grandes somas de dinheiro envolvidas. Outra pergunta singela: e se fôssemos investigar a sério as relações da grande mídia com o poder político na história do Brasil? Uma investigação deste tipo renderia boas manchetes, se bem que, provavelmente, não haveria quem as divulgasse.

Em resumo, qualquer debate sério sobre o tema da corrupção no Brasil dele levar em conta os movimentos das fontes corruptoras que estão sempre na iniciativa privada. Por que é mesmo que isso é sempre negligenciado? Investigar as relações promíscuas entre o setor público e privado no Brasil é uma condição necessária e inadiável para qualquer tentativa séria de democratização do Estado brasileiro. O que vemos hoje, e vimos em governos passados, guarda pouco ou nenhum compromisso com isso. O objetivo é quase sempre eleitoral e tem a disputa de poder como pano de fundo. Não é diferente agora.

O preço da governabilidade

No terreno político, propriamente dito, o fenômeno descrito acima costuma andar de mãos dadas com práticas fisiológicas apontadas, ao mesmo tempo, como “inadequadas”, mas necessárias, para garantir a governabilidade. Deste modo, alianças insólitas surgem a cada governo, sempre acompanhadas de garantias de que, desta vez, é diferente, que elas estão orientadas por compromissos em torno de projetos estratégicos para o país. A repetição chega a ser tediosa. E aqui cabe uma observação sobre o PT. O partido nasceu e cresceu, tendo como uma de suas bandeiras programáticas, a ética na política, princípio aliás que, ao menos em tese, é abraçado com maior ou menor inflexão por todos os partidos. A questão que deve ser colocada diante dessa pretensão de moralidade pública é a seguinte: a ética na política é possível dentro da atual estrutura de poder político e econômico, onde as fontes corruptoras são protegidas e todo o fogo midiático é focado nos agentes públicos corrompidos? Ou, dito de outro modo, o atual modelo de financiamento das campanhas eleitorais é compatível com a ética na política?

Outras perguntas estão associadas a estas. Qual é mesmo o papel da corrupção no processo de acumulação de capital? Quantas e quais fortunas privadas se ergueram tendo a corrupção de agentes públicos como um de seus vetores de acumulação? Como foi mesmo, por exemplo, que se deu o processo de privatização do setor de telefonia no Brasil? Qual foi a relação do setor privado com o setor público neste processo? Como esse padrão de relação afeta as tentativas de construir uma prática política ética? A história do Brasil e de outros países nos ensina que não é possível falar de moralidade pública a sério sem colocar essas questões na esfera do debate público. Sem rupturas com esse modelo, nada vai mudar e vamos continuar assistindo, com tédio e descrédito cada vez maiores, os pedidos de CPI, os espetáculos midiáticos e o desfile dos falsos profetas da moral.

Talvez um dos maiores erros do PT tenha sido esquecer ou menosprezar essas relações e acreditar que é possível construir outro modo de fazer política sem romper com princípios e práticas estruturais de um modelo que é, essencialmente, privatizador do espaço público. Se as fontes corruptoras permanecem intactas, a possibilidade do surgimento de novos corrompidos está sempre na ordem do dia. O modelo de governabilidade que o PT vem tentando construir, em nível federal, está preso a esta armadilha. Muitos petistas acreditam que o escândalo não é ver Roberto Jéferson citado em uma gravação de um burocrata de terceiro escalão pego com a mão na botija. O escândalo, para eles, é tê-lo como um dos principais líderes da base de sustentação do governo. Não pode ser diferente? É ingenuidade pensar nisso? Se é assim, então estamos diante de um beco sem saída e só nos resta contemplar a alternância de posições entre defensores e engavetadores de CPIs, um governo após o outro. Os recentes episódios mostram, mais uma vez, que esse modelo de construção de governabilidade está falido e pode arrastar para a vala comum todos os partidos. Nenhum partido está imune a isso, sem ruptura com o atual modelo.

O que é estratégico mesmo?

Por fim, uma rápida passagem pelo comportamento de alguns parlamentares petistas. Como não serão citados nomes, talvez seja melhor falar de uma certa “cultura política” que está impregnando também o PT. Nas últimas semanas, tem-se falado muito sobre a crise de articulação política do governo, sobre a ausência de liderança na Câmara e no Senado. Há um experimento didático a esse respeito. Quem assistiu às sessões transmitidas ao vivo pelas televisões da Câmara e do Senado nas últimas semanas pode ver uma sucessão de parlamentares da oposição batendo forte no governo. Além disso, pode ver uma inacreditável ausência de parlamentares governistas defendendo o governo. No ranking das intervenções em plenário, o governo vem perdendo de goleada. Como explicar isso?

Um dos motivos é que estamos entrando em um período pré-eleitoral, quando os parlamentares são acometidos de uma síndrome do pânico. Seus projetos particulares – a disputa pela reeleição ou pela indicação de seus nomes como candidatos a governos estaduais – passam a subordinar qualquer outra coisa, inclusive os interesses relacionados à defesa do governo federal. O episódio envolvendo a eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara é um exemplo extremamente didático a respeito.

Os movimentos políticos, as agendas e os pronunciamentos passam a ser medidos pela régua da próxima disputa eleitoral. Projetos e ambições eleitorais, relacionados à próxima reeleição ou à próxima prévia, passam a ser estratégicos. Todo o resto é tático, inclusive a disputa de um projeto para o país. Esse também é um fenômeno comum na história brasileira. A subordinação do maior ao menor, do geral ao particular, que anda de mãos dadas com um modelo político-econômico baseado fortemente em princípios da privatização da esfera pública. Mais uma vez aqui vale lembrar uma tendência velha como a história da humanidade. Em uma estrutura corrompida e potencialmente corruptora, cabe aos virtuosos basicamente três caminhos: trabalhar seriamente para romper com ela, adaptar-se a ela (o que, é importante lembrar, também é uma forma de corrupção), ou tornar-se uma figura folclórica que denuncia esse modelo mas não trabalha efetivamente pela sua superação.

Aqui também temos de levar em conta as fontes corruptoras, neste caso um modelo político preparado para engolir as melhores intenções e trajetórias, alimentando suas pretensões mais egoístas e particularistas e transformando-as em projetos estratégicos. Cada um, assim, acaba se tornando estratégico para si mesmo e para o mundo. E os projetos coletivos que se danem. Essa forma de corrupção também está a exigir uma investigação séria (para não falar da reforma política que, ao que parece, também está indo para a bacia das almas).

Por fim, fica aqui um desafio aos parlamentares petistas: quem está disposto a subordinar seus projetos eleitorais para 2006 aos princípios históricos e estratégicos que trouxeram o partido até aqui, ao longo dos últimos 25 anos, e que, para o bem e para o mal, estão representados hoje na concretude do governo Lula? Afinal de contas, um dos traços definidores da idéia de corrupção, em um sentido amplo, não é justamente a subordinação de interesses gerais a interesses particulares?

 

Fonte: Ag. Carta Maior, Marco Aurélio Weissheimer, 18/05/2005.


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