Flutua, astronauta, flutua
O simpático Marcos Pontes estrelou um show caipira e fraudulento Pouco antes de o programa entrar no ar, o coordenador técnico-científico da Agência Espacial Brasileira, Raimundo Mussi, informou: "Recomendei ao Pontes para flutuar o máximo possível". Era o começo da noite de quarta-feira, e dali a instantes o astronauta brasileiro Marcos Pontes iria aparecer no vídeo, para uma conversa com o presidente Lula. A recomendação do coordenador técnico-científico, transformado naquele momento em diretor de cena, conferiu chancela oficial ao que já se desconfiava: que o objetivo verdadeiro da missão de Marcos Pontes era encenar um showzinho para impressionar os habitantes do trecho do planeta Terra situado entre o Monte Roraima, nas vizinhanças da linha do Equador, e a curva mais meridional do arroio chamado Chuí. Que graça teria, se ele não flutuasse? Se a "videoconferência" do presidente, como foi chamada, com boa dose de licença poética, fosse com Robinho, o diretor de cena recomendaria: "Não se esqueça de pedalar". Se fosse com Carmen Miranda: "Não se esqueça do abacaxi na cabeça". A fala de Mussi vazou pelos microfones esquecidos abertos. O astronauta não poderia se esquecer de flutuar, bambo como palmeira ao vento, instável como bêbado no caminho de volta a casa. Duda Mendonça foi embora, mas a marca marqueteira continua a impregnar o Brasil da era Lula. O tenente-coronel Marcos Pontes até que é um bom sujeito, simpático, e o menos culpado de tudo, mas o fato é que foi escalado para o papel de café-com-leite, na brincadeira de gente grande montada na Estação Espacial Internacional. O trabalho para valer ficou com os russos e americanos. Para ele, sobrou plantar feijão. Nas poses em conjunto, os outros astronautas olhavam entre condescendentes e atônitos para o brasileiro, que, como modelo que se esfalfa para expor o mais possível sua grife, apontava para a bandeirinha gravada na roupa, quando não desfraldava a bandeira que trazia sempre à mão. O que a missão do astronauta brasileiro teve de mais científico foi a tentativa de plantar a semente do ufanismo no coração dos compatriotas. Lula disse que ao ver Marcos Pontes com a bandeira na mão lembrou de Ayrton Senna. Só faltou a locução, inebriante de amor à pátria, de Galvão Bueno. Mas não faltou a Rede Globo. Os apresentadores dos telejornais foram possuídos da euforia das jornadas épicas. Tal como o desfile das escolas de samba e a Copa do Mundo, o astronauta era da Globo. E assim se sucederam as entrevistas exclusivas, anunciadas entre os sorrisos que, como se sabe, são obrigatórios na emissora, para ajudar os distraídos a se convencer de que a notícia é boa. Numa delas, o titular do Jornal Nacional, William Bonner, aventurou-se pelo delicado caminho da "modificação na forma de enxergar a vida, a mudança na espiritualidade", que "muitos astronautas" contrairiam ao enxergar o planeta lá do alto, "girando devagar", e perguntou se Pontes já fora tocado por algo parecido. Foi uma tentativa de acrescentar à história um toque à Paulo Coelho. Noutra ocasião, a irmã e o irmão do astronauta foram postos em contato com ele para dizer do orgulho da família, inclusive do pai octogenário. A Paulo Coelho, somava-se a tentativa de produzir confissões em voz embargada e, se possível, lágrimas. Marcos Pontes saiu-se de tais armadilhas com dignidade. À questão da espiritualidade, respondeu que andava com a cabeça muito tomada de outras coisas para pensar no assunto. Para seu crédito, não ousou dizer que vira o dedo de Deus a fazer girar o planeta nem que vislumbrara a sombra de um anjo a cruzar a galáxia. Com os irmãos, manteve diálogo sóbrio e econômico. Esteve longe do choro, aquele momento que a Globo preza tanto quanto o sorriso dos apresentadores – momento em que a câmera se fecha sobre o rosto do entrevistado, numa apoteose de jornalismo impregnado de telenovela.
A brincadeira de
mandar um astronauta ao espaço custou ao Brasil 10 milhões de dólares. Foi
uma "carona paga", segundo o presidente da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência, Ennio Candotti. Nos meios científicos, o ufanismo não
pegou. "O vôo de Marcos Pontes é na realidade uma grande jogada eleitoreira
do governo", escreveu o astrônomo Ronaldo Rogério de Freiras Mourão. O
biólogo Fernando Reinach, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, calculou
que, com 10 milhões de dólares, o Brasil poderia formar 290 novos doutores,
em universidades do país, ou 150, em universidades estrangeiras. "Cento
e cinqüenta doutores foram para o espaço", era o título do artigo. Em
acréscimo à constatação de que feijão pode crescer no espaço, da mesma forma
como num algodão embebido em água, como sabem as crianças, o Brasil colheu
dois resultados com a aventura espacial do coronel Pontes. Primeiro, a fama
de otário que paga 10 milhões para fazer figuração num foguete. Segundo, o
show caipira e fraudulento em que a mera presença de um simpático brasileiro
no programa espacial dos outros era apresentada como grande conquista da
pátria. Fonte: Rev. Veja, Roberto Pompeu de Toledo, ed. 1951, 12/04/2006. |