A extinção da física das partículas elementares no Brasil
Victor O. Rivelles*

 

“Novamente a ciência brasileira rema contra a maré”

Em 26 de abril, a Academia Nacional de Ciências dos EUA lançou um documento de 140 páginas com o título: "Revealing the Hidden Nature of Space and Time: Charting the Course for Elementary Particle Physics"

O texto está em http://www7.nationalacademies.org/bpa/EPP2010.html.

Nele, a Academia de Ciências faz ao governo americano uma proposta para o desenvolvimento da área da física de partículas elementares para os próximos 15 anos.

Trata-se de texto bem trabalhado, onde os objetivos científicos são detalhados e as ações necessárias para atingi-los são explicitadas.

A física das partículas elementares tem por objetivo estudar os constituintes fundamentais da matéria e do universo e procura responder a perguntas milenares tais como:

Qual a natureza do espaço e do tempo? Qual é a origem da massa? Como foi o princípio do universo? Como ele evoluirá no futuro?

As principais ações recomendadas são a continuação da participação americana no acelerador de partículas LHC (Large Hadron Collider) do Cern (Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire), o laboratório europeu de física de altas energias localizado na Suíça, e a construção de um novo acelerador de partículas denominado ILC (International Linear Collider) nos EUA.

O documento enfatiza que a construção do novo acelerador, que contará com a participação de diversos países, deverá estar necessariamente sediada nos EUA, de forma a resgatar a liderança americana na área de altas energias.

Tal liderança encontra-se ameaçada pois quando o LHC entrar em funcionamento no próximo ano a Europa será o carro chefe da área. A construção do ILC em solo americano é colocada como um assunto estratégico para o governo americano.

O documento é tão importante que foi imediatamente noticiado pelo “The New York Times”, “The Economist” e “Nature”.

Em contraste, a atenção que a área de altas energias desperta no governo e nos órgãos de fomento brasileiros deixa muito a desejar e nem de longe reflete a importância que ela representa para os americanos e europeus.

Apesar da física brasileira ter nascido exatamente na área das partículas elementares na década de 30, e de ter crescido o suficiente a ponto de termos grupos competentes participando de experimentos importantes nos grandes aceleradores, como o Fermilab (Fermi National Accelerator Laboratory) nos EUA e o Cern na Suíça, até hoje não foi definida uma política mínima para área.

Os recursos são sempre escassos e nenhum planejamento de longo termo existe (exceto para os Projetos Temáticos da Fapesp que duram até quatro anos).

Enquanto os EUA fazem planos para os próximos 15 anos, as agências financiadoras federais são incapazes sequer de definir metas de curto prazo para área.

Não é claro, pelo menos para mim, a razão pelo qual a área de partículas elementares recebe tal tratamento.

Na última chamada para Institutos do Milênio, por exemplo, foram apresentados três projetos na área e nenhum deles foi contemplado. 

As propostas vencedoras eram todas em ciência aplicada. Houve a promessa de que haveria um edital exclusivo para a área, no qual os diversos grupos brasileiros disputariam entre si. Novamente, nada se concretizou.

Parece haver uma tendência de se apoiar apenas ciência aplicada no Brasil e isso é um grande erro. Não é possível criar um ambiente de desenvolvimento tecnológico sustentado sem um forte apoio da ciência básica.

Nenhum país conseguiu tal proeza. Os tigres asiáticos e a China investem maciçamente em ciência básica. Alguns colegas chegam ao ponto de defender a posição de que deveríamos enfatizar bastante o retorno social do estudo das partículas elementares.

Obviamente não concordo com essa atitude. Mas de fato, parece haver um desconhecimento generalizado de que a construção de um acelerador gera uma enorme onda de inovação tecnológica.

Exemplo disso é o fato de poucos saberem que a World Wide Web, que usamos cotidianamente, foi criada no Cern. Os feixes de partículas gerados por aceleradores são utilizados na indústria para P&D, produção, testes e controle de qualidade. Muitas aplicações importantes na medicina e em outras áreas da física, química e biologia foram decorrência dos desenvolvimentos gerados pela física das partículas elementares.

Entretanto, deve-se sempre ressaltar que o objetivo da área não é a produção dessas aplicações mas sim a compreensão da natureza.

O estudo das partículas elementares é ciência básica e como tal deve ser tratada. E as agências de fomento têm que dar apoio, independente de qualquer retorno social imediato.

Outro foco de resistência parece ser a forma como os grandes laboratórios de altas energias são organizados. Devido à complexidade dos experimentos, cada um congrega centenas e até milhares de cientistas.

Todos têm o seu nome colocado nos trabalhos publicados, independentemente das atividades exercidas. Fica realmente difícil analisar a contribuição individual de cada cientista nessa situação.

As agências de fomento têm uma grande dificuldade para avaliar a participação dos brasileiros nesses experimentos e isso é compreensível. Afinal, como distinguir entre um físico dedicado que vai ao Cern e trabalha diariamente no acelerador de uma pessoa que quer apenas esquiar e tomar um copo de vinho no Mont Blanc?

Esse não é um problema brasileiro, ele ocorre também nas agências financiadoras americanas e européias. Se eles resolveram o problema nós também podemos fazê-lo.

É necessário que nossas agências de fomento tornem-se familiarizadas com tais procedimentos e estejam equipadas para fazer esse tipo de trabalho e não utilizar a impossibilidade de uma avaliação rigorosa como motivo para negar auxílio para a área.

Outro ponto importante é a alegação de que a participação brasileira nos grandes aceleradores custa caro. Uma conta simples, encaminhada às agências de fomento, mostra que isso não corresponde à verdade.

Em média, o custo de cada pesquisador num grande acelerador está dentro da média do que é gasto para apoiar um pesquisador experimental nas demais áreas da física.

O problema é que na maioria das vezes os recursos são solicitados por um período de tempo longo dando a impressão de que se gasta mais. Por outro lado, na minha opinião, existe uma grande distorção na alocação de recursos.

O acelerador LHC do Cern, que entrará em funcionamento no ano que vem, possui cinco experimentos. Correspondem aos cinco detectores que irão coletar e analisar os dados das colisões.

O Brasil participa atualmente em três experimentos e é quase certo que deverá se envolver em mais um deles. Isso é um exagero. As agências de fomento financiam de forma bastante precária essa participação brasileira.

Os recursos são exíguos e insuficientes para as necessidades, usualmente não se sabe quando serão liberados e não é possível fazer nenhum planejamento de longo prazo, inviabilizando uma participação decente nos experimentos.

O correto seria que o Brasil participasse de apenas um dos experimentos com verbas de longo prazo garantidas e em quantidade suficiente para assegurar uma plena participação.

Os grupos interessados deveriam submeter seus projetos e uma comissão avaliadora deveria recomendar apenas um deles, ou a fusão dos projetos qualificados que apresentem objetivos similares.

Assim é feito na Europa e nos EUA. Porque não pode ser feito aqui? Porque financiar precariamente todos os projetos? É muito mais produtivo dar apoio contínuo e integral a apenas a um projeto bem qualificado do que permanecermos na situação atual.

A física de altas energias está sendo extinta no Brasil. Os pesquisadores estão cansados de explicar suas necessidades às agências financiadoras.

Estão cansados de serem tratados de forma humilhante quando pedem apoio de longo prazo. Estão deixando a área pela pura impossibilidade de manter seus programas de pesquisa nos grandes aceleradores.

É necessária uma linha de auxílio específica para a área, como acontece em outros países.

Não se está pleiteando aumento de verbas mas sim a possibilidade de apoio a projetos de longo prazo. A ciência brasileira corre o risco de perder uma das mais importantes linhas de pesquisa do mundo moderno por não valorizar a pesquisa básica.

Enquanto isso, ocorre exatamente o contrário nos EUA, onde Academia Nacional de Ciências reconhece a importância da área e faz questão de trazer o novo acelerador para solo americano.

Nas palavras da Academia: "Strategic Principle 1: The committee affirms the intrinsic value of elementary particle physics as part of the broader scientific and technological enterprise and identifies it as a key priority within the physical sciences."

Nada mais há a dizer. Novamente a ciência brasileira rema contra a maré.
 

* Victor O. Rivelles, professor titular do Instituto de Física da USP. 

Fonte: JC-email, n. 3007, 3/5/06.


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