Finatec
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investigação da Finatec, uma fundação de Brasília usada para driblar
licitações,
Virou um caso de polícia, mas no começo a Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), ligada à Universidade de Brasília (UnB), tinha objetivos nobres. Ela foi criada em 1992 por 12 professores da UnB para captar recursos para o desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica. Sua inspiração era o bem-sucedido exemplo de instituições tradicionais como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que há 40 anos dá apoio à pesquisa científica em São Paulo. Até 20 dias atrás, desconhecida fora dos meios universitários, a Finatec seguia uma rotina discreta. Ela saltou para as páginas dos jornais depois que uma investigação do Ministério Público do Distrito Federal concluiu que seu dinheiro estava sendo gasto em finalidades nada acadêmicas. Dos cofres da Finatec saíram R$ 389 mil para mobiliar – com artigos como um saca-rolhas de R$ 859 e lixeiras de R$ 1 mil – o apartamento do reitor da UnB, Timothy Mulholland. Depois que a Justiça decretou intervenção na Finatec, afastando os cinco diretores, e sua sede foi cercada por policiais militares para evitar a retirada às pressas de documentos, mais irregularidades e desvios ocorridos na fundação começaram a ser revelados. Na semana passada, ÉPOCA teve acesso a uma série de documentos da investigação do Ministério Público do Distrito Federal e de uma auditoria em um contrato da Finatec com a Prefeitura de São Paulo, que vigorou entre 2003 e 2004. Nesse período, a Prefeitura era comandada pela atual ministra do Turismo, Marta Suplicy (PT). A principal peça desses documentos é uma planilha de controle da Finatec, com uma relação de contratos firmados pela fundação entre 2001 e 2005. Os principais contratos foram assinados com prefeituras e governos administrados pelo PT. Da leitura dos papéis emergem aspectos mais mercantis que científicos, até agora inéditos, da Finatec. Eis os principais deles: A Finatec estaria sendo usada como uma espécie de fachada por empresas de consultoria para fechar contratos com órgãos públicos, sem precisar disputar concorrência. Aproveitava-se uma brecha na legislação, que permite a contratação de fundações ligadas a entidades de ensino sem a necessidade de licitação pública.
No
papel, a contratada sem licitação era a Finatec. Essa brecha foi aproveitada pelas empresas Intercorp Consultoria Empresarial e Camarero & Camarero Consultoria Empresarial Ltda., pertencentes ao casal Luís Antônio Lima e Flávia Maria Camarero. Segundo a planilha em poder do MP, dos R$ 50 milhões em contratos com órgãos públicos amealhados pela Finatec entre 2000 e 2005, R$ 22 milhões foram destinados a pagamentos à Intercorp e à Camarero & Camarero. Segundo testemunhas ouvidas pelo MP e ex-consultores da Finatec entrevistados por ÉPOCA sob a condição de não serem identificados, a ponte com as administrações petistas era feita por Luís Lima, de 42 anos. Gaúcho de Osório, ele foi consultor da administração do PT na Prefeitura de Porto Alegre. Como voluntário, participou da equipe que preparou a transição de governo de Fernando Henrique Cardoso para Lula. Com essas credenciais, segundo o MP, Lima, um sujeito discreto que não gosta de aparições públicas, se aproximava de governos estaduais, prefeituras de capitais e de grandes cidades e firmava contratos milionários.
No papel, a contratada, para prestar assessoria em programas de modernização gerencial, era sempre a Finatec. Mas quem recebia pagamentos na ponta, pelos serviços realizados, era a Intercorp e a Camarero & Camarero. Além da Prefeitura de São Paulo, comandada por Marta Suplicy, fizeram pagamentos à Intercorp e à Camarero & Camarero, por meio da Finatec, as prefeituras de Fortaleza, Vitória, Recife, Nova Iguaçu e Maringá e o governo do Piauí – todos comandados pelo PT. Apesar dos pagamentos em somas milionárias, há indícios de que pelo menos uma parte desses contratos não foi cumprida na íntegra. Em São Paulo, a gestão de Gilberto Kassab (DEM) anulou um contrato de R$ 12,2 milhões fechado na época de Marta Suplicy. De acordo com a administração de Kassab, o acerto foi cancelado porque houve irregularidades na contratação e nos pagamentos à Finatec. O serviço supostamente produzido pela fundação não foi sequer aproveitado. Agora, a Prefeitura de São Paulo quer entrar na Justiça para reaver o dinheiro.
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Finatec recebeu R$ 357.600 para montar um escritório A Finatec foi contratada em 2003 para melhorar a gestão da secretaria que coordena o trabalho das 31 subprefeituras do município de São Paulo. Dos R$ 12,2 milhões previstos no acerto, a Prefeitura pagou R$ 9,3 milhões até 2004 – dos quais R$ 4,49 milhões foram parar no caixa do consórcio Intercorp/Camarero & Camarero. José Serra (PSDB) assumiu a Prefeitura no ano seguinte, suspendeu o pagamento dos R$ 2,8 milhões que faltavam e submeteu o trabalho da Finatec a um pente-fino. Um relatório produzido pelos corregedores da Prefeitura paulistana, ao qual ÉPOCA teve acesso, é demolidor. Ele afirma “que houve negligência dos agentes municipais que atestaram a execução dos serviços”. Pelo contrato, a Finatec seria remunerada por horas trabalhadas. Quando o critério adotado é esse, os manuais de administração pública ensinam que os responsáveis devem avaliar com máxima atenção as prestações de contas. O objetivo é garantir que a empresa contratada não tente cobrar por tarefas não executadas. De acordo com os corregedores, não houve esse cuidado no contrato da Prefeitura de São Paulo com a Finatec. A fundação não informava quantos consultores usava para cada tarefa, não fornecia seus nomes e também não explicava onde o serviço tinha sido executado. Sem isso, a Prefeitura não tinha como conferir se o número de horas cobrado correspondia ao serviço realmente prestado. Mesmo assim, a Prefeitura liberava sem nenhuma contestação os pagamentos à Finatec.
Os corregedores afirmam que o serviço da Finatec, além de caro, sem controle e politicamente enviesado, foi malfeito. Com base no depoimento de 23 funcionários das subprefeituras, os corregedores concluíram que o trabalho desenvolvido pela Finatec não foi implementado e não teve nenhum efeito prático. “O trabalho realizado se mostrou irrelevante”, afirma o relatório. “Os serviços prestados pelas subprefeituras e suas atividades são idênticos àqueles realizados antes da assinatura do contrato em exame.” Numa atividade bizarra para uma fundação de apoio à pesquisa científica, a Finatec também foi contratada em 2003, por R$ 357.600, para montar um escritório de representação da Prefeitura de São Paulo em Brasília. O contrato foi assinado pelo ex-secretário municipal Rui Falcão, hoje deputado estadual pelo PT. Em um relatório de atividades encaminhado à Prefeitura, a Finatec informa que coube ao escritório providenciar a locação de dois veículos para uma visita de Marta Suplicy a Brasília em 14 de outubro de 2003. Nesse dia, ela se reuniu com o presidente Lula e o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, entre outros compromissos. Esse escritório foi desativado pela gestão Serra/Kassab. Procurada por ÉPOCA, Marta Suplicy não quis se manifestar. O vereador paulistano Antônio Donato Madorno (PT), secretário de Subprefeituras por ocasião da contratação da Finatec, diz que o relatório dos corregedores da Prefeitura é um produto político. “Eu nunca fui ouvido por essa corregedoria. Ela foi usada como instrumento de perseguição política pelo José Serra (sucessor de Marta na Prefeitura e atual governador de São Paulo)”, afirma Donato Madorno. “Temos documentos para comprovar que os serviços foram prestados. Eles desenharam as estruturas das subprefeituras, que passaram a incorporar funções de outras secretarias, como Saúde e Educação.” E a Intercorp, a empresa que segundo o Ministério Público era subcontratada às escondidas pela Finatec? “Desconheço”, diz Donato Madorno. E Luís Lima, o sujeito que o Ministério Público suspeita ser a ponte com as administrações do PT? “O Luís Lima eu conheço”, afirma Donato Madorno. “Ele aparecia como quadro da Finatec. Participava de reuniões. Nada especial.” Pela descrição de ex-diretores e funcionários da Finatec, feita em depoimentos prestados ao Ministério Público, Luís Lima desempenhava um papel bem mais ativo. Seria ele o responsável por conseguir os contratos da Finatec junto às prefeituras. Ele tinha também um escritório para ele e a mulher em um dos prédios da Finatec, no campus da UnB. “Os valores dos contratos eram superestimados, supostamente para permitir a distribuição de porcentuais para agentes públicos, para Luís Lima e, provavelmente, para alguns dirigentes da Finatec”, afirmou uma testemunha em depoimento ao Ministério Público.
No Piauí, a passagem da Finatec também levantou suspeitas. Assim que tomou posse, em 2003, o governador Wellington Dias (PT) contratou a fundação para a elaboração de um projeto de reforma administrativa e para a elaboração de um plano de cargos e salários do funcionalismo público. Em um único dia, 3 de abril de 2003, o governo declarou a dispensa de licitação para contratar a Finatec, aceitou o plano de trabalho, assinou o contrato e juntou os comprovantes de publicação no Diário Oficial. A rapidez, incomum no serviço público, levou o Tribunal de Contas do Estado (TCE) a abrir dez processos para investigar a contratação. A secretária de Administração do Piauí, Regina Sousa, nega as acusações. “O TCE acatou a defesa apresentada pelo governo, e as contas foram aprovadas”, afirma a secretária. De acordo com o Ministério Público, a contabilidade da Finatec é um problema antigo. Desde 1999, as contas da fundação não são aprovadas. Em junho de 2007, depois de duas renúncias consecutivas em diretorias da entidade, os promotores resolveram investigar o que estava ocorrendo lá dentro. Primeiro, constataram a atuação em áreas sem qualquer relação com pesquisas científicas. “Encontramos planos até para a construção de um shopping center. Isso é esdrúxulo”, afirma o promotor público Ricardo Souza, responsável pela investigação. No curso da apuração, Souza deparou com contratos firmados com prefeituras e a planilha em que aparecem os registros dos valores repassados às empresas de Luís Lima. O promotor Ricardo Souza afirma que a Finatec não poderia ter subcontratado as empresas de Lima. “Causou-me espanto. Há uma recomendação expressa para que as fundações não façam subcontratações”, diz Souza. “Por que essas empresas foram escolhidas para gerir contratos milionários? Houve um claro direcionamento.”
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um único dia de 2003, o governo do Piauí dispensou Segundo o advogado da Finatec, Francisco Queiroz Caputo Neto, a subcontratação não é irregular nem onera os cofres. A Finatec, por meio de sua assessoria de imprensa, afirma ter feito parcerias com a Intercorp porque era Lima quem tinha um programa de reforma administrativa para atender às prefeituras. Procurado por ÉPOCA, Luís Lima disse que seu acordo com a Finatec tem cláusulas de confidencialidade que os impedem de dar entrevistas. Todas essas explicações não respondem a algumas dúvidas: se a Finatec não tinha o conhecimento necessário para assessorar as prefeituras, por que foi contratada por elas? Se a tecnologia pertencia a Luís Lima, por que ele e suas empresas não se submeteram ao processo de concorrência pública? Quando a lei abriu a possibilidade de dispensa de licitação na contratação de fundações ligadas a universidades, o objetivo era ajudá-las a captar mais recursos públicos para pesquisas científicas. No caso da Finatec, a ciência por trás dos contratos com as prefeituras ainda está longe de ser bem explicada.
Fotos: Rafael Hupsel/Folha Imagem, Joedson Alves/AE, Kid Júnior/Diário do Nordeste, Guga Matos/JC Imagem, Edson Chagas/Jornal A Gazeta/AE, Gustavo Miranda/Ag. O Globo e Leonardo Wen/Folha Imagem Anderson Schneider/ÉPOCA
Fone: Rev. Época, Wálter Nunes, Murilo Ramos e David Friedlander, ed. 510, 22/2/08.
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